Pobreza menstrual: um problema ético e uma luta política

Susana de Castro

UFRJ/PPGF; Presidente da Anpof; Integrante do GT Filosofia e Gênero da Anpof

Loiane Prado Verbicaro

Prof. UFPA

Juliana Pantoja Machado

Professora Substituta de Direito da UFPA; Mestre em Direitos Humanos, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional; Mestre em Filosofia

05/11/2021 • Coluna ANPOF

No último mês, foi sancionada no Brasil a lei 14.214/21, que instituiu o "Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual", uma lei proveniente de anos de luta de mulheres da sociedade civil para a inclusão dessa pauta na esfera pública. A sanção seria elogiável se o principal ponto prático promovido por ela não tivesse sido vetado pelo Presidente da República, justamente a oferta gratuita de absorventes higiênicos para estudantes e mulheres de baixa renda que, frequentemente, valem-se do isolamento e do improviso com o uso de materiais não adequados para a coleta do sangue menstrual, como pano, papel, jornal, ou até miolo de pão, ou mesmo o uso prolongado de absorventes com consequências na proliferação de doenças e infecções, além dos impactos psicológicos e do comprometimento ao acesso a outros direitos, como o direito à educação, ao trabalho, à saúde e à vida em condições de dignidade.

Essa realidade, que constitui um problema de ordem socioeconômica, infraestrutural e de saúde pública, e que é tão deletéria às mulheres, leva-nos a questionar: A quem serve essa persistente desumanização que atinge 28% das pessoas de baixa renda, o equivalente a 11,3 milhões de habitantes no Brasil?[1] A quem serve a manutenção da pobreza, da falta de acesso a direitos das mulheres majoritariamente atravessadas pelos marcadores de opressão?

Discutir as causas do que hoje se denomina pobreza menstrual perpassa pelo histórico silenciamento das mulheres, suas vivências e necessidades. O modelo de sociedade moderna, patriarcal, universalista e racional que lê os homens como ponto neutro e objeto central do mundo social é indiferente às necessidades que envolvem corpos e narrativas que não são cis, hétero, brancas e patriarcais.

Uma das consequências dessa realidade é que a menstruação, ao ser invisível nos espaços públicos, e, também, censurada no espaço privado, impede muitas vezes que as mulheres conheçam as funcionalidades biológicas de seu próprio corpo, compreendendo-as como uma consequência biológica indigna, que as inferioriza e é motivo de vergonha, gerando o distanciamento de si mesmas, do seu próprio corpo, o não reconhecimento das suas necessidades mais íntimas, sendo levadas a sentir vergonha, com consequências diretas no seu bem-estar, na sua auto-estima e na forma como se relacionam afetivamente, seja consigo mesmas ou com outras pessoas.

Isso acontece primariamente porque nesse mundo governado majoritariamente por homens, os interesses atendidos não são o das mulheres, elaboradas, como bem advertiu Beauvoir (2016), como o outro, o segundo sexo, o indivíduo que é ser relativo e não está localizado no núcleo da existência, da ética dominante ou da moral universal. Deslocar a mulher desse espaço de mero objeto de investigação secundário para sujeito legítimo de conhecimento foi uma necessidade a qual a filósofa se dedicou justamente por compreender que essa era a maneira para tomar o espaço público e, assim, passar a reivindicar políticas passíveis de atender as necessidades das mulheres.

A menstruação e todas as obrigações advindas dessa realidade que atinge exclusivamente mulheres envolve o trabalho de reconhecimento e de descrição de muitas das situações em que os corpos femininos até hoje se encontram e que, da maneira como se apresentam, se configuram como situações opressivas, impedem que possam exercer de fato a liberdade, que possam existir como indivíduos autônomos e livres, cuja presença nos diversos meios deve ser respeitada. A expressão de poder, então, circunscreve-se à maneira como as opressões são desenhadas, entendendo-se opressão como um conceito que se aplica a qualquer circunstância injusta em que, sistematicamente e por um período prolongado, um grupo nega a outro o acesso aos recursos da sociedade (COLLINS, 2019, p. 33).

O pano de fundo que sustenta a pobreza menstrual como realidade até os dias de hoje é justamente o projeto político imposto, atuante na introdução e na manutenção dos mecanismos presentes em leis, costumes, ações sociais, civis e institucionais que visam controlar o comportamento das mulheres, dentro e fora do espaço privado, com o objetivo de privar as mulheres de autonomia e do poder social, alijando-as da esfera pública.

É central no pensamento descrito a importância da luta pela inclusão de pautas na agenda pública, passíveis de contemplar os grupos pluralizados de indivíduos que compõem as sociedades, em razão de se entender a reivindicação por participação como o reconhecimento de uma luta por justiça e liberdade, diretamente vinculada aquilo que se espera de uma sociedade mais igualitária, cuja ética não conserve tabus e impedimentos morais que limitam a existência humana plena para as mulheres. Não deve haver distinção entre o social e o político, “[...] não porque toda a política se tornou administração e porque a economia se tornou o ‘público’ por excelência, como Hannah Arendt pensava, mas principalmente porque a luta para tornar algo público é uma luta pela justiça” (BENHABIB, 1992, p. 94, tradução nossa)[2].

Portanto, compreender a marginalização da menstruação é, também, compreender todo esse complexo desenho social que silencia o corpo feminino, que secundariza as suas necessidades, ainda que elas sejam puramente naturais, biológicas. Esse circuito determina um padrão de desinformação, desassistência, indignidade e vergonha, que circunscrevem a realidade de tantas mulheres diversamente expostas às explorações e expropriações do sistema social, comprometendo de maneira direta o acesso a direitos indiscutíveis, como o da saúde.

A erradicação e diminuição da incidência da pobreza menstrual são tratadas nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, previstos na Agenda 2030 da ONU, que estabelecem: educação menstrual para promoção do autoconhecimento; ampliação do acesso à informação; o acesso aos sistemas públicos de saúde; ampliação das redes de saneamento básico; desenvolvimento e aplicação de políticas públicas que visem a garantia do fornecimento de itens de higiene menstrual para as pessoas em situação de pobreza menstrual; participação em projetos sociais voltados à arrecadação e distribuição de produtos de higiene menstrual. Para além dessas medidas, é urgente a construção de uma sociedade que se alije dos tabus patriarcais, cegos às necessidades que fogem aos seus interesses e realidades, insensíveis às vivências de milhões de seres humanos que lutam por espaços mais igualitários e dignificados para viver.

O desejo para que a vida e as necessidades de todas as mulheres sejam atendidas e se realizem em meio a uma sociedade mais justa, combativa em relação às tão diversas formas de opressão que incorporam questões de classe, de raça, de gênero, dependem de indivíduos mais conscientes quanto às suas responsabilidades e à sua própria liberdade, pois dependem do respeito à existência do outro, como condição da sua própria liberdade e esse objetivo só é alcançado com mudança prática, advinda de movimentações políticas e ocupação do terreno público, passíveis de mudar apagamentos sociais tão violentos e relevantes como o da pobreza menstrual.

 

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. 3 ed. vol 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

BENHABIB, Seyla. Situating the self. Gender, community and postmodernism in contemporary ethics. New York: Routledge, 1992.

COLLINS, Patricia. Pensamento Feminista Negro. São Paulo, Boitempo, 2019.

RELATÓRIO POBREZA MENSTRUAL NO BRASIL: DESIGUALDADE E VIOLAÇÕES DE DIREITOS. Publicado pelo Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) em maio de 2021.

 

 


[1] Segundo informações publicadas no Relatório Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos, publicado pelo Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) em maio de 2021.

[2] “[...] not because all politics has become administration and because the economy has become the quintessential“public,” as Hannah Arendt thought, but primarily because the struggle to make something public is a struggle for justice”. (BENHABIB, 1992, p. 94).