Pode o Brasil Renunciar a Filosofar?

Renato Janine Ribeiro

30/05/2017 • Coluna ANPOF

Pode o Brasil Renunciar a Filosofar? (PARTE II)

A filosofia, no Brasil, tem sido sobretudo história da filosofia. Por que isso? Há razões que remontam ao período em que eu mesmo estudei na graduação da Usp, isto é, na passagem dos anos 60 para os 70. Tais razões podem referir-se ao prestígio de que então desfrutava o estudo estruturalista do texto, que parecia oferecer a possibilidade de uma leitura definitiva e inconteste da obra. Curiosamente, uma leitura que negava o caráter histórico – precário, sempre passível de mudanças e alterações – de toda leitura terminava por propor o coroamento da história da filosofia, sua possibilidade de proporcionar um fim da história da filosofia ao mesmo tempo que uma história final, terminal, da filosofia. Parece ser esse prestígio do estruturalismo a razão aduzida por Oswaldo Porchat para nosso pouco debate filosófico; elegantemente, ele tem assumido a responsabilidade por haver defendido com tanto vigor, nos anos 60, uma leitura que assim punha fim à escrita – ou à fala, se quisermos ser mais socráticos – da filosofia.

Mas tal causa não me parece, de todo modo, suficiente – e isso por uma simples razão: a renúncia à filosofia era compartilhada, então, até mesmo por marxistas. Ora, eles não deveriam nem poderiam, logicamente, acreditar que uma leitura fosse definitiva ou escapasse às necessidades (não diria as contingências) da História. É provável, porém, que se somassem duas ordens de razões. Uma, instrumental, seria a valorização da leitura estruturalista, como capaz de efetuar uma interpretação rigorosa e segura dos textos clássicos. Outra, mais de conteúdo, seria a dos marxistas: provavelmente eles acreditavam que a filosofia seria superada por algo mais intenso no impacto social; ela teria passado, não mais futuro; estaria reduzida a um patrimônio importante, inspirador, da humanidade, mas cuja capacidade de mudar o mundo seria pequena. Pode ser que levassem tão a sério a XIª Tese sobre Feuerbach que esperassem o fim da filosofia, assim como Nietzsche esperava o fim do homem, Hegel o fim da arte e Heidegger o fim da metafísica.

Seja qual for a razão, ou o conjunto de razões, que levaram vários dos melhores pesquisadores dos anos 60 e 70 a renunciar à filosofia, podemos pelo menos acentuar um ponto de ordem descritiva: se, então, ainda podia parecer que a filosofia fosse um veio exaurido do qual só coubesse analisar o passado, nada disso mais faz sentido, agora que os temas essenciais da filosofia como foi praticada àquela época – o ser, o conhecimento, a ética, a política, a arte – se refizeram por completo, ante o choque com o virtual e com a globalização.

Assim, enquanto discutimos o que significa a soberania no Estado definido por Hobbes, no século XVII, os filósofos alemães hoje debatem a adesão ou não dos países europeus ao projeto de um Estado supra-nacional, e mesmo supra-estatal, que é a União Européia – em nossos dias, a única proposta política que permita enfrentar a hegemonia da superpotência que restou. Os franceses debatem, a cada eleição importante em seu país, projetos que consideram importantes também para o mundo; e, a cada obra cultural relevante que aparece na França, discutem igualmente sua relevância em termos mundiais. E os norte-americanos analisam o que significa a educação, hoje, também a pensando à luz dos desafios na pesquisa e na construção da sociedade.

Para ficarmos num só exemplo das modificações que isso importa para a teoria, notemos duas coisas: primeira, que hoje sobreviveu uma única soberania das convencionais, que é a dos Estados Unidos, Estado nacional que pode continuar a sê-lo apenas porque é uma superpotência; há portanto que rever por completo o significado do que é um Estado; segunda, que a criação da Europa unida abre zonas obscuras que vão sendo clareadas uma a uma – por exemplo, deve haver uma moeda comum? É possível que alguns Estados tenham a mesma moeda e que outros fiquem fora dela? Constrói-se uma moeda para o espaço supra-nacional, antes que exista uma autoridade nessa dimensão (o que parece não ter ocorrido na modernidade, salvo o caso – aqui tão inspirador – do Zollverein bismarckiano)? Como lidar com uma União na qual vários países aceitam a Constituição, mas dois – pelo menos – a recusam? Tudo isso vai sendo definido quase empiricamente, à medida que os desafios se colocam, mas cada escolha afeta e acarreta resultados importantes não só para a Europa, mas para o mundo.

Já no Brasil, a maior parte dos filósofos que vão à cena comum trocar idéias sobre a política o faz a título pessoal, como cidadãos – o que é plenamente legítimo – mas perdendo a oportunidade de articular suas posições políticas com uma proposta filosófica. O que se usa da filosofia aqui, na ágora que temos, em nossa ágora realmente existente, costuma ser o sabido e consabido – não o que o pesquisador tenha de mais novo e interessante. Discute-se, com freqüência, em termos de liberalismo e socialismo. Pouco se inventa, pouco se cria. Em outras palavras, torna-se infecunda nossa ágora. Ela não é o lugar em que se colocam à prova as idéias. Estas são expostas, no que pretendam ter de inovador, entre quatro paredes: na tese, no livro, ante uns poucos pares. (Aliás, também nossa discussão entre pares é pobre) (2). Porém, se a praça pública não é lugar em que se debatem as idéias – ou pelo menos aquelas, da ética e da política, que dizem respeito a projetos de sociedade – no que apresentem de novo e mesmo de contestável, mas se reduz a um espaço em que se divulga, difunde, reitera o que já é consagrado, então isso implica que nossos pensadores acabem mostrando da filosofia uma visão mais técnica do que criativa.

É o que explica todo esse panorama: que a filosofia, quando chega à praça – e por esta última não entendo apenas a dos artigos nas páginas de opinião na imprensa, mas já a do diálogo com os pesquisadores de outras áreas, como os historiadores, os cientistas sociais, os psicanalistas, que lendo-nos são os nossos leigos cultos, assim como quando com eles debatemos ou conversamos somos os seus leigos cultos, uns se tornando pares ímpares dos outros (3)–, se contente com divulgar o conhecimento já sabido; e que o pesquisar mais comum em nossos dias, no Brasil mas não no Primeiro Mundo, seja o que se satisfaz em propor uma nova leitura dos clássicos.

O filósofo europeu, dizia acima, debate a União Européia; mas que lugar dará nossa comunidade filosófica ao colega que se propuser a uma discussão séria sobre o Mercosul? Este projeto de integração coloca problemas relevantes. Articula quatro países de dimensão e poder desiguais, com histórias entre si de guerras que chegaram a ser ferozes, embora tenham terminado há um século e meio ou mais. Une países de línguas e culturas distintas. É ele um projeto econômico? Tem uma dimensão cultural? Propõe uma identidade comum ou próxima? Sobrevive aos choques, quase todos de matriz econômica? Quando muito, parece que se respeitará que nosso filósofo retome, a propósito do Mercosul ou de nossa cultura, os debates europeus sobre a Europa – mas não que tematize nosso próprio espaço público em termos filosóficos. Ou seja, se nossa ágora não é o lar da nossa discussão, é porque também ela não é o objeto de nosso debate.

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Por isso mesmo, o que é o trabalho-padrão em filosofia hoje empreendido no Brasil (e por padrão não me refiro apenas a mestrados e doutorados, mas mesmo a obras pós-doutorais) ? Ele se sustenta em algumas pressuposições fundamentais, ou numa sucessão de passos. O primeiro é ditado pela ambição dos pesquisadores, por aquilo que os define, aquilo que os orienta a tomar o caminho da pesquisa. Esta ambição quase sempre consiste em rever a interpretação de um grande pensador. Pretende-se inovar na leitura deles. Daí que se busque lê-los diretamente, sem passar pela mediação dos comentadores.

Há nesse empenho algo bastante positivo, que faz os jovens pesquisadores medirem forças já com os textos canônicos. Mas há também dois problemas: um, de ordem teórica, outro, de ordem mais prática. Do ponto de vista teórico, é bastante duvidoso que se possa ler um texto sem mediações. Ele chega a nós lido, pensado, revisado. Limpá-lo de toda a pátina que sobre ele se acumulou pode ser muito bom, mas exige um trabalho de vulto – que nem sempre é realizado, e que, para dizer com toda a clareza, não é o da refutação, não é o do acerto triunfando sobre o erro, mas o do conhecimento de uma cultura que, mesmo se errou, em seu errar foi produtiva, foi fecunda, gerando um mundo que podemos desaprovar, mas devemos levar em conta. Já do ponto de vista prático, com isso se termina por ignorar, quase acintosamente, o que sobre esses autores canônicos se escreveu, sobretudo no Brasil. Daí, um enorme problema: que nossa comunidade filosófica dialogue muito pouco.

Contudo, se esses trabalhos de leitura, que resultam em tese ou em obra, assim pretendem ser de alguma forma inaugurais, assumindo o impacto de realizar uma leitura que pouco deva à tradição, eles não a ignoram por completo. Isto é, parecem ignorar o débito que tenham com ela, mas a assumem como alvo de seus ataques. Ela não existe para o que seja positivo, mas é visada enquanto algo negativo. Muitos trabalhos que li assim começam tomando alguma tese que circule a respeito do autor estudado – por exemplo, que entre duas passagens de sua obra, ou duas etapas de sua vida, haja oposição ou diferença. O que se mostrará, então, é que tal oposição é apenas aparente. Também pode suceder de se comparar dois autores: também entre eles se provará que a oposição que se costuma traçar é falsa. Mas discutamos o que é esse fortíssimo parti pris da leitura estrutural, ou seja, de que a obra do autor tratado é coerente.

Acredita-se que a coerência do autor é algo que tem de existir e ser demonstrado, como se militasse contra ele ter sido contraditório, ou ter sido levado, pela força das coisas ou por sabe-se lá o quê (mas isso o pesquisador deveria tentar esclarecer), a ser contraditório. Essa é provavelmente a maior dívida que se conserva com o estruturalismo: mostrar que tudo se articula. Mas – contra esse estruturalismo um tanto simplificado – há um estudo que reputo admirável e que dá conta do conflito intenso, que pode ser interno à obra: “A unidade do pensamento de Rousseau”, artigo que Robert Dérathé escreveu em 1962, sustenta que as inegáveis contradições entre a via do Emilio e a do Contrato Social se devem a um ponto de partida, ou a uma forma, comum de pensar (4). Essas duas vias são mutuamente excludentes, mas isso não quer dizer que não as inspire o mesmo modelo de pensamento. Há uma isomorfia, uma Gestalt comum na matriz do pensamento de Rousseau, que dá conta até mesmo das bifurcações em que ele se mete. Dérathé assim sabe, sem negar o conflito interno à obra, perguntar por suas razões (5). Infelizmente, não é o que temos visto na maior parte de nossos trabalhos. Boa parte dos que hoje se realizam em nosso país o que pretende é manifestar uma coerência que, repito, poderia ou não existir, sem maiores danos para a imagem do autor.

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No que diz respeito à filosofia política, esse procedimento acarreta um problema adicional: supõe-se que a filosofia prática em geral, seja ela ética ou política, se entenda melhor à luz da ontologia ou da teoria do conhecimento daquele autor. Tem sido esse, por exemplo, um dos pontos principais apontados, ultimamente, em Hobbes. Nunca regateei meu aplauso aos estudos sérios que, nas últimas décadas, recuperaram a ciência física hobbesiana, antes tida por simplesmente tola; mas nada disso pode eliminar o fato de que, não houvesse Hobbes escrito sua filosofia política, não passaria de um rodapé às histórias do pensamento do século XVII, alguém tão pouco conhecido, talvez, como Christian Wolff. Uma coisa é mostrar o vínculo que une a filosofia política de um autor a suas teorias sobre o ser ou o conhecimento – digamos, seu materialismo, espiritualismo, racionalismo, empirismo; nada contra essa atitude; outra, completamente diferente, é reduzir o que mais o movia – ou aquilo pelo que ele mais se celebrizou – a epifenômeno de um discurso que, para ele ou para sua posterior reputação, se tornou secundário.

O que assim sucede é que a filosofia que trata da ação – do que deve ser (a ética, sobretudo kantiana) ou do que pode ser (a política, sobretudo democrática) – se veja subordinada à filosofia que lida com o conhecimento ou com o ser. Pode estar aqui uma das chaves para o problema que vimos apontando. A ação é mais frágil, ou crê-se que seja mais frágil, que o ser. Mesmo quando a reflexão sobre ela é movida por convicções bastante fortes (as do dever), pode ou não suceder que a ação se produza. Já o que enunciamos sobre o que é, ou sobre como o conhecemos, desfruta de maior prestígio. Talvez por isso, nossos cursos de história da filosofia valorizem tanto o que os pensadores mais prestigiados disseram sobre o conhecimento ou, então, sua ontologia – e penso que seria bastante positivo rever esses currículos. São muito poucos, quando os há, os cursos de história da filosofia que na coluna vertebral dessa disciplina incluam o pensamento de um autor, mesmo tratando-se de um Rousseau, um Hobbes ou um Aristóteles, acerca da sociedade, da polis ou do ethos.

Já sugeri em outro lugar que essa maneira de viver a filosofia poderia estar ligada a uma dependência que aqui se constituiu em face da filosofia de Primeiro Mundo (6), aquela que enuncia o universal, sentindo-nos enquanto isso como que condenados ao particular – a menos que aceitemos o papel subalterno ante os centros de filosofia que estão nos países mais ricos. Proponho aqui um acréscimo: sendo tão problemática, tão difícil a ação emancipadora em países como o nosso, pode ser que refletir sobre ela constitua um desafio tão grande – e tão frustrante – que por isso prefiramos o conforto do ser, escolhendo a paciência do conceito e a passividade ante a ação. Contudo, se não lancetarmos esse abscesso, não nos será fácil filosofar, pelo menos em matéria de ação.

Ora, hoje a própria discussão sobre o ser envolve-o nas questões da ação. Vivemos num mundo atravessado por duas grandes famílias de inovação científica. A primeira se refere à crescente primazia dos estudos biológicos, entre os quais as neurociências e, cada vez mais, a genômica, que permitem decodificar o que antes eram segredos. A fronteira entre natureza e cultura é cada vez mais permeada pelos avanços dos estudos sobre o nosso bios. Ora, ao contrário do que antes se imaginava – isto é, que o avanço de uma perspectiva naturalizante sobre o humano reduziria a dimensão da ação, que tradicionalmente se vincula ao que chamamos de cultura, de educação, de Bildung – em nossos dias se nota que a decodificação do genoma propiciará saltos qualitativos em termos de escolhas humanas. Questões importantes assim são revistas, como até mesmo a da eugenia, que não podem mais ser formuladas na linguagem anterior.

A segunda diz respeito aos progressos da informática e da informatização do mundo. Muito do que era res se tornou virtus, a grande questão sobre o real sendo, hoje, que ele se torna cada vez mais virtual. Também essa família de inovações permite novas formas de decisão e de interferência no que antes era visto como dado ou como incompreensível. Disso decorre que o próprio estudo do que é se mostra cada vez mais articulado com capacidades – ou capacitações – para a ação humana. Não é, então, que a ação – frágil que é – se veja subordinada ou subsumida pelo pensamento do ser. A própria palavra-chave, “virtual”, será por acaso que ela remete por contigüidade àquela virtù na qual Maquiavel localizou a cifra da ação humana deliberada, voluntária, apta a mudar ao mundo, em suma, à virtù da qual nasce o que nosso mundo conserva e desenvolve de moderno?

 

1 Este artigo dá continuidade a outro que foi a versão escrita de uma palestra proferida em 2002, no encontro nacional da Anpof, a associação nacional de pós-graduação em filosofia, e no qual o prof. Renato Janine desenvolveu algumas críticas ao espírito que tem norteado a pesquisa na área, em nosso país. Ver “Erros e desafios da filosofia no Brasil, hoje”, em seu A universidade e a vida atual – Fellini não via filmes, Rio de Janeiro: Elsevier/Campus, 2003, p. 132-49.

2 Ver, a este respeito, o artigo citado acima.

3 Sobre o leigo culto, ver “Memória precoce”, em meu A universidade e a vida atual, p. 164-201.

4 “L'unité de la pensée de Rousseau”, in Jean-Jacques Rousseau. Neuchâtel, 1962, pp. 203-218.

5 Também merece nota Machiavel – le travail de l’oeuvre, o importante livro em que Claude Lefort analisa as diversas leituras da obra de Maquiavel, certamente chegando a uma leitura que ele considera a mais correta, mas com enorme respeito à diversidade de enfoques que o pensador renascentista abriu.

6 Ver A sociedade contra o social, abertura: “O Brasil e a filosofia política”.

 

ANPOF (2017-2018)

30 de Maio de 2017

DO MESMO AUTOR

Pode o Brasil Renunciar a Filosofar? (PARTE II)

Renato Janine Ribeiro

05/06/2017 • Coluna ANPOF