Pode uma escritora medieval ser feminista? Um desafio metodológico a partir de Christine de Pizan

Ana Rieger Schmidt

Professora adjunta do Departamento de Filosofia (UFRGS)

15/03/2023 • Coluna ANPOF

Todo estudo de um texto redigido no passado, sobretudo quando o lemos através um arcabouço conceitual contemporâneo, coloca desafios a pesquisadores e estudantes. O caso de Christine de Pizan (c. 1364–1430) é talvez paradigmático nesse sentido. Conhecida como primeira mulher das letras e percursora da defesa literária das mulheres (Querelle des Femmes), Pizan é também vista como uma autora antecipadora do feminismo. No entanto, diversas dificuldades emergem imediatamente a partir dessa atribuição. Podemos chamar algo ou alguém por um termo que não existia naquele momento? Em outras palavras, seria dizer que Pizan é feminista um anacronismo? Certamente, toda historiadora ou historiador das ideias que entende que transformações sociais não constituem rupturas repentinas, mas devem ser analisadas em suas condições e precedentes, coloca diante de si a dificuldade de compreender e descrever cuidadosamente as primeiras manifestações de um movimento de raízes profundas. Mostraremos como essa preocupação deve ser integrada aos estudos que inserem Pizan no cânone filosófico.

As primeiras ocorrências do termo “feminismo” para descrever os movimentos pelos direitos das mulheres são de modo geral atribuídas ao final do século 19 e ao início do século XX. Como sabemos, Pizan escreve nas primeiras décadas do século XV, portanto muito antes de qualquer acepção do temo. Mas para além da discussão sobre a origem do termo, devemos focar na sua concepção e elementos subjacentes. É inegável que a compreensão do que foi e é o movimento feminista sofreu alterações segundo momentos históricos e contextos culturais desde seu surgimento e seria insensato trabalhar aqui com conceitos estáticos ou a-históricos. Empregamos as distinções de ondas feministas para descrever as diferentes fases e naturezas das reinvindicações que acompanham sua trajetória. No entanto, a resposta à questão sobre o feminismo atribuível à Christine de Pizan exige uma reflexão sobre o que seria um pensamento feminista minimamente compatível com o final da Idade Média e que ainda guarde semelhanças com as temáticas feministas que reconhecemos hoje. 

Precipitando nossa solução, propomos um aparente paradoxo: por um lado, Pizan é feminista ao defender a igualdade moral e intelectual entre os sexos e ao refutar a misoginia difundida nos discursos eruditos de seu tempo; por outro lado, Pizan não é feminista na medida em que não associa essa misoginia a uma estrutura de dominação patriarcal e seu discurso não acompanha um desejo ou projeto de transformação social.

A partir da discussão esclarecedora de O’Neil (2019) sobre os elementos metodológicos que orientam sua pesquisa em história da filosofia e a recuperação de mulheres filósofas, esboçamos a seguinte declinação de características de um discurso feminista. Observe que elas não se pretendem condições necessárias e suficientes – notas de uma definição acabada (pois esse propósito que excede largamente as pretensões deste texto) – mas antes rudimentos para introdução de nuances em uma perspectiva histórica:

Em primeiro lugar, uma pensadora que se pretende feminista deve (i) apresentar uma defesa da perfectibilidade do sexo feminino, segundo a qual mulheres não são seres inferiores. Haveria aí uma base teórica mínima sobre as qualidades intelectuais e morais das mulheres. Além disso, espera-se (ii) uma tomada de consciência (no caso de autoras mulheres) sobre as implicações de ser uma mulher na sociedade em que vive. Por exemplo, lucidez sobre sua perspectiva no debate e como porta-voz de seu sexo. O discurso feminista costuma acompanhar ainda um esforço de denúncia, que pode assumir dois aspectos: (iii) o diagnóstico de um pensamento misógino (discursivo ou literário disseminado ou localizado) que ofende injustamente o sexo feminino como um todo; (iv) a identificação de uma estrutura social de opressão do sexo feminino (recortes de classe e raça seriam incrementados posteriormente). O feminismo que identifica uma estrutura de opressão sistemática visaria, como desdobramento final, (v) a passagem do discurso à ação. Referimos a ações concretas e organizadas exigindo participação das mulheres na esfera pública e ampliação de direitos. Feito esse esboço, cabe investigar brevemente “o quão longe” podemos esperar que chegue o feminismo de Pizan?

Como observa Joan Kelly (1989), Pizan redesenha o debate medieval sobre o casamento e os vícios femininos em uma discussão aberta sobre a misoginia (ainda que o termo específico não fosse ainda empregado). Podemos ver que Pizan fala explicitamente como porta voz do sexo feminino e se dirige estrategicamente a um público de leitoras mulheres, como é o caso de sua obra mais conhecida, a Cidade das Damas (1405). Ao mesmo tempo em que se dedicam à construção de uma cidade metafórica para abrigar as mulheres virtuosas, as personagens da obra refutam sistematicamente a ideia que as mulheres são seres naturalmente defeituosos. Tal ideia seria uma falácia pois, além de contrapor o fato de mulheres terem sido criadas por um ser perfeito, não resiste às evidências contrárias (são compilados inúmeros relatos de mulheres na história, mitologia e escrituras que servem de exempla de virtudes). A conclusão é clara: “a excelência ou a inferioridade das pessoas não reside no sexo dos seus corpos, mas na perfeição de seus costumes e virtudes (Cidade das Damas, I, 9). “E, não há nenhuma dúvida de que as mulheres também fazem parte do povo de Deus, que são criaturas humanas ao mesmo título que os homens, e não de uma raça diferente, que poderíamos excluir da formação moral” (Cidade das Damas, II, 54).

Pizan também entende que mulheres devem ser participantes ativas dos debates sobre sua própria natureza e comportamento, constatando em Epistre au Dieu d’amour (1399) que a razão da disseminação das ideias negativas sobre as mulheres estaria no fato de os livros serem escritos exclusivamente por homens. Pizan defendia que mulheres deveriam ter sua própria voz nesses debates e reclamava a superioridade de seu conhecimento situado (Schmidt, 2022). Assim, há uma percepção de uma desproporção na produção intelectual de seu tempo e que isso causava distorções em relação à compreensão da natureza feminina. Nesse aspecto, podemos dizer que Pizan denuncia certa dominação masculina nos registros culturais e intelectuais. 

Há nos escritos de Pizan diversos momentos em que é possível perceber uma distinção entre duas esferas do debate sobre o valor das mulheres: a esfera natural (relativa às potencialidades de cada sexo) e a esfera dos costumes (relativa às convenções sociais). O caso mais emblemático é sem dúvida a discussão sobre as diferentes oportunidades de acesso à educação: “se fosse um hábito mandar as meninas à escola e ensinar-lhes as ciências, como o fazem com os meninos, elas aprenderiam e compreenderiam as sutilezas de todas as artes e de todas as ciências tão perfeitamente quanto eles (Cidade das Damas I, 27). Ou ainda em relação a si mesma, quando lamenta em Livro da transformação de Fortuna (1403) por não ter tipo a oportunidade de seguir os caminhos do pai, que possuía formação universitária e era dotado do “tesouro da sabedoria”: Porque nasci menina, não era acertado que eu devesse beneficiar dos bens de meu pai e herdá-los [...]. Se o direito prevalecesse, a mulher não perderia nada disso”. Certas práticas pontuais que prejudicam as mulheres são, assim, passíveis de crítica e, presume-se, poderiam ser revisadas e superadas.

Afirmações como essas são muitas vezes interpretadas como uma defesa do acesso das mulheres à educação formal –  resguardada então a homens –  como um direito a ser conquistado. No entanto, em outros textos Pizan pondera que homens e mulheres devem exercer funções distintas de acordo, justamente, com demandas sociais: “a sociedade [chose publique] não acha necessário que as mulheres se ocupem das tarefas masculinas. Basta que elas cumpram as tarefas que lhes são estabelecidas” (Cidade das Damas I, 27). Mais do que isso, há a compreensão que a divisão do trabalho entre homens e mulheres é fonte de coesão social, onde cada um se insere diferentemente em um esquema interdependente de responsabilidades. Pizan reconhece que homens e mulheres têm inclinações comportamentais distintas que os tornam aptos a contribuir com certas atividades. Assim como a virtude da paciência e a menor agressividade nas mulheres contribuem para a resolução de conflitos e para a diplomacia, homens são mais bem dotados nas qualidades necessárias para aplicar a lei: “por que as mulheres não discutem diante de tribunais, não instruem os processos, nem dão as sentenças? [...] Mas, quanto a essa questão poderíamos, da mesma forma, perguntar-nos por que Deus não ordenou que os homens façam os trabalhos das mulheres e elas façam os dos homens” (Cidade das Damas I, 11). Assim, existem qualidades naturalmente presentes que promovem divisão das responsabilidades entre homens e mulheres,visando o melhor funcionamento do lar, da cidade e do reino. Em última instância, tal organização é chancelada por Deus, cuja racionalidade está por trás de toda boa orientação hierárquica – no cosmos e nas organizações humanas.

Pizan aceitava a visão hegemônica medieval de uma sociedade ordenada cuja hierarquia se justifica naturalmente com aval divino. Essas estruturas de autoridade não serão objeto de crítica em seus textos. Isso explica o estranhamento que experienciamos ao ler o Livro das Três Virtudes (1405) na sequência da Cidade das Damas. Nessa obra, que se pretende um manual de conduta para mulheres de todos os estratos sociais, vemos Pizan se conformar à ideologia dominante de seu tempo. Pizan instrui mulheres a preservar sua honra e a realizar virtuosamente as tarefas esperadas de sua posição, recomendando humildade e obediência às esposas, modéstia às jovens donzelas e coragem às viúvas. Ainda que a obra preserve a prerrogativa segunda a qual mulheres são iguais perante Deus e capazes de virtude, para o leitor moderno, o tratado se presta a delinear os deveres da mulher medieval, e não seus direitos. Sem hesitar, muitos autores costumam recorrer ao Livro das Três Virtudes para declarar Pizan como pensadora conservadora que reforça o status quo da hierarquia de gênero sem, notoriamente, estimular a dedicação aos estudos para meninas e mulheres. Como compatibilizar essa leituras?

É imprescindível pensar essas colocações sobre a organização social diante da compreensão da noção do “corpo político”. Pizan emprega no Livre du corps de Police (1407) a metáfora, tomada do Policraticus de Salisbury (1159), do reino organizado em um corpo humano: o rei toma o lugar da cabeça que comanda, os cavaleiros os braços que protegem, os nobres o torço que une, o povo as pernas e pés que oferecem sustentação. Cada indivíduo tem um papel a realizar para o funcionamento orgânico do todo e responde por uma função. Cada função depende, por sua vez, da posição social ocupada pelo indivíduo, ou do estado ao qual pertence no reino. Essa compreensão está baseada na importância de responsabilidade mútua entre os diferentes estados ao mesmo tempo em que preserva a hierarquia entre eles, visando o bem comum da comunidade.

A questão que nos interessa aqui é como se dá o recorte de gênero nessa organização, e o que esperar de homens e mulheres no organismo político. O casamento é um ponto de referência para pensarmos a questão. A relação entre esposas e maridos é nuclear no período medieval: os maridos representavam a primeira instância de poder que a sociedade exercia sobre as mulheres – em termos culturais, jurídicos e religiosos. Vimos que para Pizan é coerente que homens e mulheres exerçam diferentes atividades em função de diferenças de comportamentos e de força física. Aqui temos uma explicação sem apelo ao social, não relegada aos costumes, mas natural; ela diz respeito às diferenças sexuais, que incluem diferentes papéis reprodutivos estruturantes da organização social medieval. É difícil vislumbrar que essas diferenças seriam vistas como superáveis sem comprometer o ordenamento do todo político. Pizan deixa claro que não pode haver desrespeito e desonra entre homens e mulheres e por isso a misoginia deve ser combatida, pois traz prejuízo para o casamento e desiquilíbrio para a sociedade. Por outro lado, a mulher, enquanto esposa e mãe, tem uma responsabilidade familiar que é essencial para o funcionamento do lar a nível doméstico e de unidade da a nível político. Como resultado, ela não deve buscar sobrepor seu papel com o do marido. 

No período medieval mulheres tomavam parte em praticamente todas as atividades econômicas (no cultivo da terra e no comércio), mas sua esfera de influência era primariamente resguardada ao lar. Conforme a classe social, as responsabilidades aumentam em função da complexidade do lar a ser administrado (influência, servos e propriedades). Em casos específicos, mulheres assumiam postos de autoridade sem estarem submetidas ao marido (como no caso de rainhas regentes e de líderes de abadias e conventos). Mas de modo geral, a instituição do casamento assegura à mulher a posição de sujeito em todos os estados onde ela está presente. Isso não é criticado por Pizan, nem mesmo na Cidade das Damas. Esposas devem obediência e, mesmo diante de maus maridos, a dissolução do casamento não é jamais encorajada: “aquelas que tiveram maridos perversos, traidores e malvados devem fazer todo o possível para suportá-los, [...] sua alma será recompensada por essa corajosa paciência, e todos a louvarão e tomarão sua defesa” (Cidade das Damas, III, 19). Note-se que o divórcio, tal como o entendemos hoje (previsto na lei e sancionado pela Igreja), não existia na Idade Média. No entanto, é preciso sublinhar vemos em sua obra que a obediência devida pela esposa é racional, onde servir visa a unidade do tecido social e o bem comum. Não se trata de uma submissão que revele uma diferença de valor entre homens e mulheres. Analogamente à relação entre a cabeça e os pés do corpo político, espera-se reciprocidade entre maridos e esposas, mas isso não anula o componente hierárquico dessa relação. 

Como esclarece Brown-Grant (2003), para o descontentamento do leitor moderno, Pizan não oferece alternativas radicais aos valores tradicionais de conduta esperados de mulheres (baseados nos códigos de castidade e modéstia). No entanto, que Pizan não tenha desejado modificar estruturas masculinas de poder não prejudica os esforços compreender seu projeto de defesa moral das mulheres. Assim, Pizan pode ser considerada feminista em seus próprios termos medievais. Na boa tradição da filosofia escolástica, a solução de um problema envolve a constatação de sua complexidade e da proposição de qualitativos. Assim, podemos evitar as armadilhas de qualificar Pizan como pensadora feminista aderindo à noção de proto-feminismo. A partir dos elementos-base para mensuração do feminismo que esboçamos acima, podemos encontrar em seus textos os elementos relativos aos fundamentos teóricos de um discurso pela igualdade entre os sexos, a uma tomada de consciência enquanto autora-mulher e à denúncia da misoginia (ponto i, ii e iii). Esses configuram as condições de possibilidade para qualquer reivindicação de direitos e justiça social. Pizan decididamente antecipa diversos elementos do pensamento feminista, ainda que chegue a denunciar as estruturas dominação vigentes como desdobramento da disputa teórica (ponto iv). Não podemos falar propriamente em combate ao patriarcado em Pizan, ou de engajamento político com esse propósito (ponto v).

Percebe-se, assim, que uma apreciação adequada do feminismo de uma escritora medieval como Christine de Pizan passa por uma metodologia cara à história da filosofia, que a insere em seu contexto histórico, reconstrói os debates doutrinais travados pela autora e se debruça sobre o seu corpus como um todo, considerando-a como uma autora relevante em si mesma.


Referências:

BROWN-GRANT, Rosalind. Christine De Pizan and the Moral Defence of Women: Reading Beyond Gender. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

KELLY, Joan. Early Feminist Theory and the ‘Querelle Des Femmes’, 1400-1789. Signs, vol. 8, no. 1, 1982, pp. 4–28. 

O’NEILL, Eileen., Lascano M. (eds) Feminist History of Philosophy: The Recovery and Evaluation of Women's Philosophical Thought. Springer, Cham: 2019.

PIZAN, Christine de. A Cidade das Damas. Trad. e apresentação de Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne, Editora Mulheres, Florianópolis: 2012.

PIZAN, Christine de 'Livro da Transformação de Fortuna'. Trad. parcial em Schmidt, A. R.  O 'Livro da Transformação de Fortuna' de Christine de Pizan. Philia. 2(2): 2020, p. 578-600.

SCHMIDT, Ana R. 'Pour ce que femme sui': female perspective and argumentation in Christine de Pizan’s writings, in Latin American Perspectives: Women in the History of Philosophy and Sciences, ed. K. Peixoto, P. Pricladnitzky and C. Lopes: Springer.. Latin American Perspectives on Women Philosophers in Modern History. Cham: Springer, 2022.