Poesia em aula de filosofia: o sabor no saber

Genildo Firmino Santana

Mestre em Filosofia da Educação pela UFPR; professor da Rede Particular de Ensino em Tabira e da FASP (Faculdade do Sertão do Pajeú).

15/10/2024 • Coluna ANPOF

A expressão aludida no título a aprendi com Frei Betto: Educar com Saber e com Sabor.

Ensinar é saber. Ensinar bem é sabor. Para ensinar, há técnicas. Técnicas humanas aprendidas nas faculdades. As tendências pedagógicas que o digam. Podemos aprendê-las e, apreendendo-as, ensinar. Essa nota faz o ato de ensinar ao alcance de todos.

Ensinar em sala de aula é fato aprendível. Podemos aprender como trabalhar com os(as) estudantes. Como fazer para que eles(as) alcancem, por si mesmos, o saber.

Sendo a filosofia, como diz Antonio Gomes, professor na UFCG (Universidade Federal de Campina Grande),“um ato de pensar sem economia de perguntas e respostas”, podemos nos perguntar sobre o que é ser professor, o que é ensinar, o que é estar em sala de aula. Hemos que pensar a sala de aula, o ato de ensinar, pensar a relação intrínseca entre professor-aluno-aprendizagem. O que implica, por si, pensar a Educação.

Uma rua na cidade onde moro traz o título de “Mestre Tota”. “Mestre Tota”, um sertanejo simples, não frequentou a academia. Porém, ensinou toda uma região a ler, contar e escrever, em meados do século passado. São famosas as histórias de suas lições, sua metodologia, pelos que foram seus alunos, ainda vivos. E não poucos. Histórias também contadas por seus filhos, hoje residentes na cidade do Rio de Janeiro.

Foi digno de um capítulo no livro do escritor Ulisses Lins, uma glória das letras pernambucanas, no livro Um Sertanejo e o Sertão. Ulisses Lins ficou impressionado com aquela figura quando a ela apresentado, nos anos 50. Ele, Mestre Tota, sem o conhecimento acadêmico ganhou o título de “Mestre”.  Foi Mestre? Não foi? Se foi, em qual sentido? Se não foi, por quê? É próprio a ele esse título de Mestre? O que tinha ele para tamanho título, que não foi dado a um Presidente da República?

Para ensinar há saber. Para ensinar bem, há que ter sabor. A filosofia é um saber que, associado ao sabor da poesia e, principalmente, da literatura de cordel, pode fornecer algo novo aos(às) estudantes.

Ao propormos o cordel em sala de aula, para auxiliar nas aulas de filosofia, mais propriamente, propusemos dar sabor ao saber. O sabor da poética popular nordestina. Poética tão presente nas almas dos sertanejos. E é o sertão nosso espaço de prática pedagógica. Embora possa ter aplicação também fora dele. O sertão de onde brota a poesia rimada, a cantoria de viola, a glosa de improviso, o cordel. Todo esse uni(multi)verso cultural é íntimo do sertanejo. Em algum momento da vida, ele já teve contato com essa cultura. E nossos(as) estudantes também. Abundam poetas e cordelistas nas cidades sertanejas. São os autores conhecidos (e desconhecidos) da população. Vez por outra, ouvimos essa pergunta; “- E você também é poeta?”.  Por vez, não poucas vezes, vem carregada de preconceitos e desdém.

Essa cultura já foi dita, e continua sendo dita, inferior. Subcultura, subliteratura, por carregar o nome de popular. Popular porque feita pelo povo, não por acadêmicos seletos. Popular por não carregar conceitos abstratos, de complexa definição. Se é que se pode definir conceitos. Talvez desse fato venha o preconceito maior. Advoga essa cláusula o fato de não termos um cordelista na Academia Brasileira de Letras. O mais próximo foi Ariano Suassuna. Porém, Ariano Suassuna foi imortal pelo Romance da Pedra do Reino e o sangue do Principe que vai-e-volta, sua obra mais clássica, e não pelo Auto da Compadecida, obra produzida a partir dos folhetos de cordel.

Propusemos o cordel na sala de aula como instrumento pedagógico. Essa atividade já a realizamos em sala de aula e em oficinas culturais. Nenhuma novidade, uma vez que professores outros já o fizeram. Novidade talvez seja o fato de o utilizarmos para as aulas de Filosofia. De onde podemos e devemos nos perguntar, sem economia de perguntas e respostas, como diz Antonio Gomes. É possível ensinar Filosofia através de cordel? Não empobreceria a Filosofia? Os textos filosóficos já não são suficientes para o aprendizado dessa ciência? Em que o cordel vem a contribuir? Como, por exemplo, ensinar o Esclarecimento (aufklärung) de Kant através de cordel? O cordel vem substituir os textos filosóficos? Se não, em que pode complementá-los?

Perguntas demais para respostas de menos. Muitas dessas respostas serão oriundas da prática do cordel em sala de aula. Não podemos, pois, a priori, respondê-las. Se é possível ensinar o Esclarecimento kantiano através do cordel, veremos. Se o cordel pode ser útil à filosofia, cremos que sim. Assim como a Filosofia pode também ser útil ao cordel. São, se podemos assim nos expressar, entidades que não se excluem. Mas que podem se complementar pela mediação pedagógica. “Comece tudo o que pode fazer, ou que sonha que pode fazer. Há gênio, poder e mágica na Ousadia”, diz Goethe. Não pretendemos a genialidade. Nem o poder ou a magia. Mas a ousadia. Começamos. E como diz o poeta alemão, podemos fazer.

Sendo que o cordel já foi largamente utilizado para ensinar Geografia, História, Ciência, Literatura, uma pergunta salta aos olhos: Por que não o utilizar na Filosofia? É a Filosofia tão suprema que não possa ser apetecida pela linguagem cordelística?

Propondo o cordel como possibilidade de ensino de filosofia, o que propomos também é um método de ensinar filosofia. Metodologicamente, através de textos poéticos do cordel, cremos poder ensinar filosofia. “A prática é o critério da verdade”, afirma Frei Betto. Veremos na prática em sala de aula se é possível. Em teoria, cremos que sim. Como a prática confirma a teoria, será a prática que nos mostrará a viabilidade ou não dessa empreitada.

Para além do método, propomos também uma linguagem. A linguagem poética, rítmica, metrificada, rimada. Nada de novo na história da filosofia, uma vez que mais de um filósofo lançou mão da linguagem poética como estilo para seu filosofar. Que dizer do poema Sobre a Natureza de Parmênides? Que dizer dos vários poemas de Nietzsche, tais como Ecce Homo, Moral Estelar ou Contra as Leis? Não seria Filosofia? Não tem teor filosófico, porque escritos em linguagem filosófica?

Mais uma vez, perguntas demais para respostas de menos. O filósofo e o poeta são como irmãos vindos do ventre da admiração. Ambos buscam ver o invisível, atingir o inatingível, conquanto contraditórias sejam essas afirmações. O Filósofo alemão Hegel afirma que “a Poesia é a mais bela forma de expressão, porque não carece de materialidade para existir”.

E, como diz María Zambrano, filósofa espanhola: No se encuentra el hombre entero en la Filosofía. No se encuentra la totalidad de lo humano en la Poesía.”

A poesia pode, pois, prestar esse contributo pedagógico à Filosofia.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

DO MESMO AUTOR

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Genildo Firmino Santana

Mestre em Filosofia da Educação pela UFPR; professor da Rede Particular de Ensino em Tabira e da FASP (Faculdade do Sertão do Pajeú).

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