Por que a interseccionalidade deveria interessar à filosofia? | Especial Novembro Negro

Rahfa Borges da Silva Vitorio

Mestranda em Filosofia na UFBA

15/11/2024 • Coluna ANPOF

GT Raça, Gênero e Classe

Este texto, escrito em tempos de pandemia e de desesperança, agora recebe nova roupagem e sai do armário como uma resposta ao pensamento fascista vindo (não surpreendentemente) de alguns acadêmicos ditos de esquerda, que culpam o fantasma do identitarismo pela ascensão da direita. Este pequeno texto também é inspirado pelas experiências que vivi durante os anos de graduação e de pós-graduação, em que minha capacidade intelectual e minha pesquisa foram descredibilizadas por tratarem de assuntos “transversais demais” à filosofia. Escrevo também em resposta aos professores homens cis brancos que confortavelmente espreguiçam-se em suas cátedras e não se dispõem a acolher as novas formas de se fazer filosofia.

Eu falo e escrevo por e com meu corpo, enquanto mulher negra, trans, candomblecista, professora da educação básica, entre tantas outras coisas que me atravessam, mas não me definem, embora não possa negar o quanto elas foram determinantes na escolha de estudar filósofa.o.s que não estão no famigerado cânone filosófico: Fanon, Mbembe, Sueli Carneiro, Lélia Gonzales, bell hooks, Patrícia Hill Collins entre tanto.a.s outro.a.s. Foram essa.e.s que me possibilitaram enxergar que a filosofia que foi ensinada em sala de aula, os livros que estavam no currículo das disciplinas e a maioria dos professores que ministraram esses cursos, não falavam de nada mais além deles mesmos. O “identitarismo”, por esse viés, começa pelo próprio homem que teve o poder de escrever e dizer o que era filosofia. Esqueçam aquela regra básica do ceticismo que o seu professor de filosofia lhe ensinou: suspenda os juízos! Todos os filósofos escreveram por um ponto de partida: o seu próprio.

Como antídoto, a interseccionalidade se tornou uma ferramenta analítica, instrumento e metodologia filosófica de valor inestimável, pois me fez compreender enquanto professora de filosofia atravessada por identidades cruzadas que estou na encruzilhada epistêmica buscando “alimento… para a fome histórica de justiça” (AKOTIRENE, 2018, p. 18), e que também tenho aluna.o.s inserida.o.s no locus da matriz colonial desse sistema de opressão.

A interseccionalidade está no coração das mulheres negras, pois elas nunca partem de si e nem se encerram em si mesmas, mas, com um olhar atento à coletividade, compartilham experiências e lutam por suas e outras existências. Esse modo de pensar é o que me dá forças para continuar exercendo minha profissão, mesmo em meio a tantas violências que me cercam, sejam diretas ou indiretas. Interseccionalidade é a oferenda que eu dou para Exu, senhor da comunicação e das encruzilhadas, para que ele não se alimente mais de teorias euro-referenciadas. Para que toda vez que eu abra minha boca para falar, continue comunicando quem sou e para o que eu vim, rompendo questionamentos que duvidam ser este ou aquele o meu lugar, lutando contra o racismo, a misoginia, a transfobia e a intolerância religiosa.

Vivemos em tempos sombrios para a prática do ensino e da pesquisa filosófica. A carga horária de filosofia e sociologia no Ensino Médio é de apenas 1h aula semanal, o que não nos possibilita aprofundar questões que são caras para o desenvolvimento dos jovens e nos deparamos, constantemente, com questionamentos infundados sobre a real “utilidade” da filosofia.

O pensamento crítico interseccional, como já disse, atualmente tem sido bastante reconhecido em diversas áreas do conhecimento, mas ainda lidamos com uma pergunta frequente: isto é uma filosofia? Apesar da abertura recente e do fenômeno crescente de pesquisas voltadas a esses temas, o preconceito ainda está instalado quanto à legitimidade e a veracidade das epistemes desenvolvidas fora dos muros – à terceira margem, da Europa e América do Norte, mais conhecidas como o Eixo Norte Global. Cabia aqui destacar temas como o do epistemicídio, tão bem colocados por Sueli Carneiro “para quem o epistemicídio se constituiu e se constitui num dos instrumentos mais eficazes e duradouros da dominação étnica/racial e pela negação que empreende da legitimidade das formas de conhecimento” (CARNEIRO, 2005, p. 96), e o da injustiça epistêmica, inferidos por Miranda Fricker (2007) em que a prática epistêmica pode excluir arbitrariamente o Outro. No entanto, a minha tarefa aqui é a tentativa de responder o porquê de a interseccionalidade interessar a filósofa.o.s.

Trago três justificativas. Primeira: porque pensar na matriz colonial de opressão que nos circunda nos incomoda. Segunda: porque é necessária para reparar histórica e criticamente produções desumanas e racistas da tradição científica e filosófica de pensadores clássicos. Terceiro: porque a filosofia deveria afirmar a vida e não fundamentar o direito de matar. Dessa forma, proponho uma filosofia como prática ou modo de vida, não apenas exegese ou hermenêutica que muitas das vezes sucumbe à masturbação intelectual do pensamento europeu e torna nossas universidades departamentos ultramarinos das instituições europeias.

O tema da raça, por exemplo, nos incomoda porque nos contraria. É uma noção complexa que não pode ser tão bem explicada e apropriada do modo como nós gostaríamos e pensamos. Contudo, o racismo é sempre anti-humano. Assim como o sexismo, a misoginia e o machismo que atinge todas as mulheres, principalmente se atravessadas por outros marcadores identitários.

Partindo do incômodo, saímos para um desejo de reparação e um olhar crítico sobre a produção teórica de filósofos e cientistas que foram fundantes para correntes de pensamento que até hoje circulam academicamente como cânones. O que exponho e proponho não é uma espécie de novo index librorum prohibitorum, mas, pelo contrário, meu anseio é de que estes livros devem ser lidos e criticados como um pensamento a ser rebaixado e idiotizado, por serem anti-humanos. A misoginia aristotélica, o racismo e o etnocentrismo de Kant, Hegel, Locke, entre tantos, devem ser apontados sem salvaguardar ou justificar pelo anacronismo. Não precisamos queimar os livros, precisamos queimar esses caras!

Consequentemente, pensar a filosofia como afirmação e valorização da vida é inscrevê-la nos termos da ética como modo de viver. Afirmar a vida é a procura incessante de se autocriar, reinventar e produzir modos novos de vida, sem universalizar ou tornar as existências estáticas. A morte, enquanto negação, é a cultura do enquadramento, fixação e da sujeição do Outro. O que seria a fundamentação pela raça senão um desejo de morte do Outro? Nos termos que uso acima, geralmente a raça e o gênero estão atrelados a hierarquização e dominação. Os seus usos ainda não foram dissociados da prática constante de destruição do Outro.

A questão principal que permanece é a de que, ao nos debruçarmos sobre a interseccionalidade, não conseguimos distingui-la do tema da subjetividade humana. Segundo Collins e Bilge (2021, p. 16), pessoas reivindicam e usam cada vez mais o termo “interseccionalidade” em projetos políticos e intelectuais, adotam-no para transformar questões sociais pertinentes. Se você, que leu esse texto até aqui esperando uma conceituação filosófica de interseccionalidade, lamento, o que importa não é o que define interseccionalidade e sim o que ela faz.

As noções aferidas pela interseccionalidade, contém nelas mesmas uma fluidez que foge a um caráter fixo e essencial. Em cada território ou lócus é possível pensar como raça, gênero e classe se definem de modo diferente e como em cada momento histórico é possível diagnosticar os seus efeitos. Pensar a filosofia analiticamente pela interseccionalidade não é uma tarefa fácil de cumprir, no entanto, cabe aqui considerá-la um aparato imprescindível para os novos modos do fazer filosófico.

Penso a interseccionalidade, colocando-me no campo de perspectiva enquanto agente da educação e estudante, na relação dialógica entre quem ensina e aprende ao mesmo tempo. No processo de escuta e olhar, uso de todos os sentidos, corporais ou não, como leitora. A leitura que faço ao estar num colégio localizado na periferia de Salvador (BA), com estudantes de diversas realidades, atravessadas por identidades: de maioria negra, trabalhadora, feminina e lgbt+, etc. Atravessamentos que também dizem sobre mim, sendo quase impossível não me ater a um modo de fazer filosofia, se não pela lente interseccional.

Observo testemunhos como: “pela primeira vez estou ouvindo falar de filósofas mulheres, de intelectuais negros, de pessoas como a gente.” Um misto de dor e alegria me consomem, pois vejo que há tanto tempo que perdemos em não falar sobre nossas vivências, experiências compartilhadas.

Sendo uma professora negra e trans num colégio público, me dá a sensação de estar no lócus do representativo, mesmo que não seja essa a minha intenção. É a mudança de um ethos, de um imaginário sobre nossos corpos, um transformar compassado. Interseccionalidade é um fazer, mais do que um definir. Isso seria o modo de praticar a filosofia como vida, como encarnação. Uma filosofia que rompe com as cadeias de quem pode falar, de quem pode escrever, ou como nos diz Spivak (2010), escutando vozes subalternas.


Referências

AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade?. Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018.

CARNEIRO, Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. São Paulo: Feusp, 2005. (Tese de doutorado).

COLLINS. Patrícia H. BILGE. Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2020.

FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. New York: Oxford University Press, 2007.

SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: UFMG, 2010.