Por que deixei de aplicar provas nas disciplinas de filosofia
Daniel Arruda Nascimento
Professor da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo
09/12/2024 • Coluna ANPOF
Aproximamo-nos mais uma vez do final do semestre letivo e nós professores precisamos, invariavelmente, por força do sistema disciplinar que ainda estrutura nossas universidades, atribuir notas aos estudantes que estiveram em nossa companhia nos cursos que lecionamos. Costuma ser esse um ponto crítico. Pior será se, como eu, o professor de filosofia lecionar em outro curso de graduação. Nesse caso, a relevância da filosofia para aquela formação acadêmica e profissional sempre será, estrondosa ou silenciosamente, colocada em questão pelos próprios estudantes.
Atuo como professor da disciplina de filosofia no Curso de Bacharelado em Direito – no nosso caso, disciplina esta deslocada para o quinto período na reforma curricular, para que os estudantes tivessem um contato continuado com as chamadas disciplinas propedêuticas ou humanas e pudessem cursá-la com maior maturidade. Ainda que, por termos retirado os pré-requisitos da disciplina, acabo recebendo em sala de aula estudantes que antecipam ou retardam a sua aplicação, reunindo comumente estudantes de diversos períodos, com majoritária presença a partir do terceiro.
Não precisarmos aqui defender a relevância da filosofia para a formação jurídica, o que é evidente. Todavia, convenhamos, entre estudantes ávidos por se submeter a concursos públicos muito técnicos, colocar um terno, balançar petições no ar e chutar portas, ou criar páginas eletrônicas e conteúdos para redes sociais a fim de se tornarem influenciadores digitais – o que parece ser a tônica do momento – são poucos os que alimentarão um interesse genuíno sobre a discussão proposta em sala de aula. Felizmente, não são tão poucos assim, dependendo de como sejam conduzidas as aulas.
Nessas condições apresentadas, sabendo que as melhores decisões são definidas em situação, sabendo que os estudantes farão outras provas e trabalhos escritos para outras matérias, que serão treinados inclusive para o ameaçador e superestimado exame da entidade de classe, que precisam desenvolver outras habilidades não avaliadas por provas se desejarem ser bons profissionais e, principalmente, considerando em perspectiva a vida profissional e, sobretudo, as extensões ética e política da vida humana, que não terminam com a formatura, mas permanecem e se transformam ao longo do tempo, tomei a decisão de deixar de aplicar provas.
Não apenas há saberes que não estão nas carteiras de uma sala de aula universitária, há outras habilidades que não são avaliadas nas provas escritas ordinárias, como, por exemplo, a capacidade de se relacionar com outros, ou de estabelecer uma conversa na qual o outro pode ter razão, ou de discordar expressando-se com argumentos que respondam ao contraditório e sejam compreensíveis a todos, ou de suportar pressões no instante em que se é confrontado argumentativamente.
Vejo o momento da avaliação como um momento privilegiado no processo de ensino-aprendizagem. Em outras palavras, penso que os procedimentos avaliativos devem ser inseridos no conjunto da disciplina como uma oportunidade de aprender e ensinar. Sendo assim, questionei-me muitas vezes sobre o método a adotar de modo a satisfazer essa intuição e optei por substituir testes por autoavaliação. Uma autoavaliação orientada e constituída por critérios objetivos, naturalmente.
Vejo também que minhas escolhas em sala de aula são políticas.
Não é um fato prático e teórico que filósofos políticos devem enfrentar o conceito de política? Em acordo com uma tradição muito antiga que reúne filósofos, outros pensadores, gente de ação e uma variedade de educadores, concordamos que a política está muito longe de ser apenas a política institucional, essa que se faz através de partidos e cargos. Considero que a atuação de um professor seja sempre política e faz parte das suas atribuições educar para a democracia, já que ainda não inventamos nada melhor em se tratando de distribuição de direitos, gestão do poder político, tomadas de decisão que impactem na vida de várias pessoas e regimes de governo.
Não faz muito tempo, li com entusiasmo o admirável Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, um livro freireano e absolutamente atual de bell hooks, no qual se infere novamente que os estudantes sejam participantes ativos e os professores sejam curadores do hábito de aprender, que seja responsabilidade de todos os envolvidos criar uma comunidade de aprendizado e que as avaliações sejam flexíveis e adequadas. Ser professor é estar com as pessoas e, como não poderia deixar de ser, reiteradamente fazer política. Aliás, seja qual for a disciplina que lecionamos, tendo em vista o mundo que estamos inseridos e constitui as nossas salas de aula, são sempre bem-vindas as atividades antirracistas e antissexistas[1].
Os filósofos que tive a oportunidade de estudar com mais afinco não fogem à regra. Desde cedo nos escritos de Giorgio Agamben, a política arrebata os menores detalhes da nossa vida. Recentemente, provocado por um grupo acalorado de estudantes, ele respondeu que a política em tempos obscuros pode encontrar um fundamento na amizade[2]. Lemos em Achille Mbembe que “a política, deve-se lembrar, consiste no esforço interminável de imaginar e criar um mundo e um futuro comuns”. Em um mundo onde todos somos passantes e desafiamos com a condição humana as fronteiras impostas pela repressão estatal, emerge naturalmente a ideia da constituição de uma vida comum, de um em-comum. “O projeto do em-comum abre caminho para o passante. O passante remete, em última instância, àquilo que constitui nossa condição comum, a de mortal, no caminho de um futuro que, por definição, está aberto. Estar de passagem é, enfim, a condição humana terrena. Assegurar, organizar e governar a passagem e não instruir novos fechamentos, eis a tarefa da democracia na era global”[3].
Há alguns anos tenho adotado um plano de curso que o divide em duas partes[4]. Depois de uma primeira parte consubstanciada no desenvolvimento de aulas expositivas e dialógicas, centrada na exploração filosófica do conceito de justiça, com a visita guiada a ideias de alguns autores clássicos selecionados na história da filosofia, seguimos a segunda parte que denominei de disputatio, na qual sugiro que as alunas e alunos matriculados façam a defesa oral, argumentativa e circular de teses e pontos de vista dissonantes tendo como ancoragem a exposição de projetos de leis em tramitação ou recentemente tramitados no Congresso Nacional, sem olvidar da articulação teórica com o que fora trabalhado em sala de aula. Os temas dos encontros destinados à disputatio, que devem ser quentes, são escolhidos pela turma e expositores voluntários definidos previamente fazem uma primeira apresentação desses temas, deixando posteriormente a fala circular mediante inscrição e marcação do tempo. Nessa dinâmica, o professor participa como os outros e do mesmo modo.
A autoavaliação proposta, que não depende necessariamente da disputatio e havia sido acordada desde o início da disciplina, ocorre ao final dos encontros. Iniciando-se com a avaliação do curso e do professor, tem o seu ponto de culminância em uma atividade coletiva de autoavaliação. Cada estudante deve, então, realizar publicamente a sua autoavaliação, tendo como objeto de análise a sua participação ao longo do semestre, com a aplicação dos seguintes critérios, entre outros, participação efetiva, protagonismo do discente, capacidade de construção coletiva, honestidade intelectual. Trocando em miúdos, se a aluna ou o aluno frequentou as aulas, se leu os textos da bibliografia básica discutidos em sala de aula, se leu outros textos sugeridos no plano de curso, se buscou espontaneamente outras fontes, se foi capaz de articular as ideias filosóficas com notícias do nosso cotidiano, se fez os exercícios de síntese, se participou do diálogo em sala de aula, se interferiu ou elaborou questões, se participou bem das discussões circulares, escutando, falando e se posicionando sobre os temas como expositor ou integrante, se recuperou e construiu argumentos, se pesquisou e levou adiante as discussões realizadas.
Tem funcionado bem assim. Temos a possibilidade de desenvolver outras habilidades essenciais, como a aptidão para escutar até o fim, sem interromper, mesmo que discordando, como a aptidão de falar em público e organizadamente, dentro do tempo disponível, extrair os melhores argumentos, em uma relação agonística na qual a discordância motiva o debate e não significa a identificação de um inimigo ou um chamado para a guerra. No retorno dos estudantes, tenho escutado que embora a disciplina seja mais leve, ela consegue retirá-los positivamente da zona de conforto, que toda a dinâmica permite que se expressem como não havia acontecido antes, ajuda no entrosamento entre eles e no reconhecimento da diversidade, faz conhecer assuntos novos e resulta muitas vezes na troca de perspectiva sobre eles.
Como escreveu certa vez o professor patrono da educação brasileira, “a pior coisa que existe é estar dentro de uma sala de aula onde os estudantes estão em silêncio, ou onde falam e escrevem naquela linguagem falsa e defensiva que inventam para tratar com os professores e outras autoridades”[5]. Implicando-se em um processo de transformação da educação e da realidade com os estudantes, renovamos a esperança. Em tempos nos quais o bom senso que orienta o debate público parece distante, nos quais a democracia se enfraquece e corre perigo, é preciso dobrar a aposta.
Notas
[1] Cf. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, tradução de Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.
[2] Cf. Intervento al convegno degli studenti veneziani contro il greenpass l’11 novembre 2021 a Ca’ Sagredo, publicado em 11 de novembro de 2021, no site da editora Quodlibet.
[3] Cf. Brutalismo, tradução de Sebastião Nascimento, São Paulo: n-1 edições, 2021, pp. 54 e 63.
[4] Elaborei uma primeira abordagem escrita sobre o assunto em Disciplinas e avaliações na universidade do nosso tempo in Em torno de Giorgio Agamben: sobre a política que não se vê, São Paulo: LiberArs, 2018.
[5] Cf. FREIRE, P. Medo e Ousadia, escrito em parceria com Ira Shor, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 14.
A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.