Por uma democracia da catástrofe

Yan Gomes

Mestrando (PUCPR)

05/06/2021 • Coluna ANPOF

Há uma afirmação velha e, ao mesmo tempo, hodierna no imaginário brasileiro, sempre da ordem do dia – pois repetidamente aventada em bares de esquina e churrascos de amigos e familiares –, que é a seguinte: quando se trata da real política tupiniquim, existem forças inescrupulosas atuando dentro e fora do parlamento em benefício próprio, cujo resultado prático impede “o Brasil de ir pra frente”. Ou, em poucas palavras, o que reina é a “velha politicagem” que mantém o funcionamento da corrupção elitista.

Essa afirmação fez e faz crescer, em todas as bandas do país, uma insatisfação que é incansavelmente fomentada em círculos sociais e dispositivos de comunicação de massa. Não por acaso a imprensa tradicional, juntamente com as mídias populares, passou a dar enorme destaque a determinadas instituições públicas, dentre elas, e especialmente, os órgãos federais de investigação e persecução penal.

O ápice da insatisfação (a polarização política) fez com que todos os cidadãos se engajassem no “voto consciente” em busca do bem comum. Dessa maneira, longe de ser uma simples obrigação cívica, o voto popular tornou-se instrumento por excelência de possibilidade de transformação da realidade. Um cenário, portanto, tipicamente democrático.

Igualmente democrática foi a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana na Carta Política de 1988, com a efetivação de direitos fundamentais – tema este caro ao constitucionalismo contemporâneo, pois, se por um lado a soberania popular foi instrumentalizada por meio da democracia representativa, de outro houve a necessidade de limitação da vontade da maioria. Uma democracia, assim, entendida como substantiva, limitada por uma jurisdição contramajoritária, em que o representante político, eleito democraticamente, não pode tudo; está limitado a sua competência e ao respeito às garantias fundamentais previstas na Constituição.

Por esse prisma, não há uma crise representativa ou institucional que justifique a manutenção da “velha politicagem”. Ao que parece, outro tipo de corrosão ocorre nos limites do sistema político-jurídico.

Tomemos como exemplo o presidencialismo de coalizão: uma criação brazuca constituída de acordos de cavalheiros, sem os quais não permitiriam o movimento da agenda política, e que quando entram em crise, outros acordos são firmados para ditar um novo modus operandi político. O que chama atenção, nesse exemplo, é que a coalização dificilmente será considerada inconstitucional, visto se tratar de uma prática consensual e historicamente aceita entre os atores políticos e não estar proibida ou prevista na Constituição. Algo como o que Mark Tushnet conceituou de constitutional hardball[1].

Outro padrão corrosivo, agora no plano institucional, são as guerras hermenêuticas travadas no Supremo Tribunal Federal, como o caso da discussão acerca da possibilidade de prisão (definitiva, e não cautelar) após a segunda instância recursal. Guerra desnecessária, bem da verdade, pois basta ler o inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal pra entender que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Simples assim. Por sorte – infelizmente por sorte, e não por mérito – o óbvio foi dito[2]. Porém, como consequência da casuística das decisões dos tribunais, o direito no Brasil virou uma roleta-russa.

A verdade, aliás, não para de ser invocada nos debates públicos, e acaba por sufocar, intencionalmente, os discursos heterogêneos que, desde a Lei de Anistia até o esfacelamento da Comissão da Verdade, vêm sofrendo de um empobrecimento de memória. Algo muito custoso à recém-democracia brasileira, frequentemente agredida por um processo de esquecimento, que realça o sintoma de que a história dos derrotados nunca foi levada a sério, ou ao menos cogitada. Eis, nisto, a promissora camaradagem entre o progresso e fascismo de que avisava Walter Benjamin[3]. E assim, sem muita memória ou parâmetro, a redemocratização causou grande descontentamento na classe média herdeira de um recalcado sentimento ditatorial e moralista. Hoje, ninguém está satisfeito; nem os pobres que se acham classe média, muito menos os classemedianos que se consideram meritórios.

A arena está pronta para os duelos, pois não? Direitas versus esquerdas esbravejam as certezas que têm num cenário carente de sentido; e os perdidos na pancadaria questionam “quem está certo, afinal?”, “incentivar mais políticas públicas afirmativas ou estimular o livre mercado?”. Simultaneamente, e à surdina, os anseios revolucionários se inflamam – sejam eles ancaps, integralistas ou até apoiadores do “fechamento do Congresso e STF” –, ganhando força nos grupos de whatsapp e fóruns de internet. Consequência disso tudo é uma frustação irremediável. E a pergunta fundamental que permanece é: mesmo com tanta insatisfação, a mudança ainda é possível sem revoluções ou profundas modificações nas regras do jogo?

Considero, provisoriamente, que o enfrentamento da questão exige, no campo da ética, a assimilação de uma radical práxis democrática. Um agir modulador que não determine qual o meio necessário para se alcançar a democracia, tampouco a coordene a um fim. A ação, nesse âmbito, deve conservar-se como afirmação da incompletude, do inacabado e do não definitivo. Pois, concomitantemente ao sistema democrático, devem existir práticas que dispensem fundamentos (poder constituinte) de validação da vida democrática, isto é, práticas que instituam um viver democrático que valha por si mesmo e se organize como luta democrática que, somente enquanto luta na e pela democracia, assuma o caráter de resistência. Fora disso, a ação inevitavelmente cairá na pretensão revolucionária.

Destaco, ademais, que o desenvolvimento dessa práxis radical ocorrerá, insistentemente, em um espaço intrinsicamente associado à experiência em comunidade, a saber, em uma comunidade que Giorgio Agamben chama de “comunidade de quaisquer”[4], que para escapar do perigo totalitário e do individualismo predatório, é formada pelo conjunto de impropriedades. Por essa via, o habitante da comunidade “não é nem terá de ser ou de realizar nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino biológico”[5]. Será no lugar da diferença ontológica das singularidades que o viver democrático se concretizará circularmente como puro meio sem um fim que o condicione.

Todavia, um entrelaçamento com a noção de comunidade em Maurice Blanchot é imprescindível ao desenvolvimento de nossa tese, no ponto em que: “O ser procura não ser reconhecido, mas contestado: vai, para existir, ao outro que o contesta e, às vezes, o nega, de modo a existir somente nessa privação, que o torna consciente (isto é origem da sua consciência) da impossibilidade de ser ele mesmo, de insistir como ipse ou, se preferir, como indivíduo separado”[6].

Assim, partindo da intersecção entre as comunidades de Agamben e Blanchot, o espaço comunitário é, inevitavelmente, espaço de puro conflito, onde o ser, para existir, precisa ser contestado pelo outro, ou seja, a condição de existência do ser exige a presença do outro que, como singular, contesta o ser singular. A existência é, então, a privação originária da singularidade, que para se tornar inteligível deve obrigatoriamente doar-se ao outro, o qual sempre lhe demandará, contestando-a (a singularidade).

Nesse entendimento, o “outro qualquer” é aquele que sempre demanda do ser, mesmo que o outro esteja completamente oculto (o virtual comunitário). O “outro qualquer” é, ainda, condição do ser-algo que, antes do fundamento que institui qualquer regra de vida, mostra-se puramente vivo em comunidade. A liberdade, portanto, é posterior ao confronto com o outro, e sua realização se dá no interior da vivência democrática, cuja potência não pode ser instrumentalizada em delegações de qualquer natureza, vez que está dissipada na comunidade que não conhece qualquer tipo de definição. Os atos de resistência, aqui entendidos como luta democrática, têm a função de contestar/demandar o ser, no instante em que a ontologia e ética coincidem. Assim é o viver democrático que, enquanto “não-fundamento” (negação), é puro embate com o outro, e que, por meio de sua luta, pretende restituir o mesmo processo de contestação originária, a fim de que o ser tome consciência da própria privação.

E se é verdade que “o homem moderno é um animal em cuja política sua vida de ser vivo está em questão”[7], uma biopolítica positiva poderá ser feita – e já é feita – pela resistência nas margens de rios, nas florestas, nos latifúndios improdutivos, de viventes (radicalmente vivos) que demandam em comunidade a impossibilidade do vir-a-ser-por-si-só no horizonte da catástrofe ambiental. Pois é a modulação do “não-fundamento” que constitui o limite da sobrevivência humana. A luta democrática se insere aqui como catalizador comunitário, puro meio de manifestação, que se rende ao ser-outro circunscrito nas barreiras já em ruínas da biosfera. Uma nova fronteira definida pelos limites do amanhã; uma categoria ontológica que pode ser definida como “o ser ameaçado”.

 


[1] TUSHNET, Mark. Constitutional Hardball. The John Marshall Law Review, v. 37, n. 7, p. 523-553, 2004.

[2] Ver Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43, 44 e 45 (DF), STF.

[3] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história [Obras escolhidas, v. 1]. 3ª ed. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 226.

[4] AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 63.

[5] Ibid., p. 45.

[6] BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable. Paris: Minuit, 1983, p. 16.

[7] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 9ª ed. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro e São Paulo: Paz e Terra, 2019, p. 155.