Por uma Utopia Ecofeminista

Tânia Kuhnen

Profa. UFOB

Daniela Rosendo

Doutora e pesquisadora de pós-doc (UFSC)

10/09/2021 • Coluna ANPOF

Ó donos do agrobiz, ó reis do agronegócio, 

Ó produtores de alimento com veneno, 

Vocês que aumentam todo ano sua posse, 

E que poluem cada palmo de terreno, 

 

E que possuem cada qual um latifúndio, 

E que destratam e destroem o ambiente, 

De cada mente de vocês olhei no fundo 

E vi o quanto cada um, no fundo, mente. 

Reis do agronegócio, Carlos Rennó/Chico César 
 

No início de agosto, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) publicou seu sexto relatório (AR6 - Climate Change 2021: The Physical Science Basis). Nele, afirma-se que as mudanças climáticas que enfrentamos hoje estão inequivocamente relacionadas à influência humana, responsável por aumentar a temperatura na atmosfera, nos oceanos e na terra. As alterações no clima são, portanto, antropogênicas e não há precedentes de mudanças nessa escala há milhares de anos. As consequências do aumento da temperatura já causam efeitos em várias regiões do mundo e são sentidas, como temos acompanhado nos últimos meses pelos noticiários, por meio de ondas de calor extremas, chuvas e alagamentos cada vez mais drásticos, secas e ciclones tropicais, os quais aumentaram sua incidência desde o relatório anterior (AR5), publicado em 2013. A partir desse cenário, estima-se que a temperatura na Terra continue aumentando, inclusive para além do acordado entre os países nas cúpulas do clima, entre 1,5º C e 2º C, caso as emissões de CO2 e outros gases de efeito estufa não sejam reduzidas nas próximas décadas. Contudo, mesmo que haja redução, várias mudanças já são irreversíveis por séculos ou até mesmo milênios, especialmente nos oceanos, glaciares e no nível do mar.

Apesar de algumas dessas informações e fatos serem novos, o aquecimento global não é, tampouco a previsão de que enfrentaríamos uma crise climática. A novidade, quem sabe, é que não temos mais tanto tempo quanto já foi estimado num passado bem recente. Enquanto alguns países do Norte global dizem que irão reduzir suas emissões de CO2 até 2050, cientistas têm sido categóricos/as ao alertar que não temos mais esse tempo. No campo filosófico, ecofeministas não têm sido as únicas a tratarem sobre os problemas ambientais, mas temos, hoje, uma construção de pelo menos cinco décadas articulando questões sociais, ambientais e, por vezes, interespécies (as quais nomeamos também de 'animalistas'). Diante do presente pandêmico, para que serve a filosofia ecofeminista? Nossa missão, talvez, seja transformar esse futuro apocalíptico de longa duração em utópico. Nesse exercício, gostaríamos de voltar um pouquinho mais e questionar: para qual mundo estamos fazendo filosofia? Ou a questão seria transformar o próprio mundo?

Como filósofas ecofeministas animalistas, estamos apostando na transformação. Por isso, o ecofeminismo se torna um projeto ético-político por meio do qual nos engajamos com uma práxis que se situa no mundo, mas não de maneira supostamente neutra ou abstrata. Nos situamos localmente e nos entendemos parte do contexto no qual estamos inseridas. Conhecendo nosso redor, percebemos a materialidade das diferenças que compõem a diversidade, condição necessária para o florescimento de cada indivíduo, tenha ele a constituição biológica que tiver.

Reconhecemo-nos como imersas em redes de interdependência que ultrapassam a fronteira da espécie humana e, por isso, implicam em obrigações de responsabilidade e cuidado para com todo indivíduo, humano e não humano. Esse pressuposto é a base para se construir um mundo no qual essas relações de responsabilidade e cuidado, sustentadas de forma horizontal, possam ser a fonte ético-política para a construção de modos de viver em comunidade, inclusivos, que substituam os sistemas de dominação e exploração históricos - os diferentes “ismos” de dominação apontados por Karen Warren (sexismo, racismo, heterosexismo, especismo, capacitismo etc.) que homogeneízam, subjugam e reduzem toda a (bio)diversidade.

Como parte desse processo, a utopia ecofeminista parte do entendimento de que somos seres inerentemente vulneráveis. A todo momento, nossas relações de interdependência são atravessadas por pessoas ou não pessoas com maior ou menor sujeição aos impactos negativos dessa condição de vulnerabilidade. A pandemia expôs essa situação compartilhada por certos grupos humanos, devido às categorias de exclusão e opressão socialmente construídas que os marcam, ao passo que os incontroláveis incêndios do Pantanal no ano de 2020, que se repetem agora, evidenciam a vulnerabilidade da vida de seres não humanos, plantas e vegetais. No contexto das mudanças climáticas, as demandas por cuidado serão intensificadas e não podem ficar a cargo, apenas, como tem sido historicamente, de um grupo de pessoas.

Se assumimos, a partir das relações de interdependência, a responsabilidade por cuidar, precisamos agir de modo a prevenir o advento de situações que afetam de maneira drástica a vida de seres humanos e não humanos, quando não ocasionam sua morte, sobretudo daqueles que têm menores chances de obter o cuidado de que necessitam. Para tanto, a organização social e política precisa ser sensível ao cuidado situado, receptiva às particularidades das demandas por cuidado, como parte de um sistema de justiça social e interespécies que protege a vida em geral das condições de precariedade, sobretudo daqueles corpos e populações-alvo, que, conforme Judith Butler afirma em Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? (2019), são mais destrutíveis do que outros na nossa sociedade. Podemos expandir essa noção para a vida dos animais não humanos apinhados nas celas, gaiolas e jaulas dos sistemas de produção em confinamento, cujos vidas extinguidas aos milhares a cada dia são invisíveis e, por conseguinte, não passíveis de luto.

Dentro da utopia ecofeminista, acreditamos na construção de um modo de produzir alimentos não assentado na exploração da vida humana e não humana. É importante destacar que o modelo do agronegócio vigente e a devastação ambiental por ele promovido estão entre as causas relacionadas às mudanças climáticas. Mas antes disso ser conhecido, muitos outros problemas sociais já podiam ser associados ao agronegócio, a exemplo da concentração de terras, da grilagem, do trabalho escravo, da expulsão e assassinato de povos tradicionais etc. É um modelo de produção baseado na destruição de diferentes formas de vida, de modos de ser de comunidades humanas e de seres não humanos. Ele promove e acentua a vulnerabilidade da existência de diferentes seres em nome da produção de commodities, cujo modo de produção se assenta na raiz autoritária da monocultura que inicia na mente e se estende ao solo, como explica Vandana Shiva no livro Monoculturas da Mente (2003). Mesmo batendo recordes de produção agrícola, com todo o aporte tecnológico das sementes transgênicas e da agricultura mecanizada, a fome só tem aumentado no Brasil durante a pandemia de Covid 19. Percebemos assim como um sistema de dominação e exploração da natureza e da vida em geral, com todos os recursos tecnológicos e científicos, afeta de diferentes modos, negativamente, às condições de sustentação e florescimento da vida. Por isso, a produção de alimentos precisa ser transformada a partir de práticas que coloquem no centro a agricultura familiar e de pequena propriedade, que tenham como fim a sustentação da vida e não sua subjugação e precarização.

Na utopia ecofeminista, queremos nos distanciar do imaginário do progresso, que chega com as cercas, os arames, os cadeados, que surgem da noite para o dia, e são as marcas do projeto hegemônico da colonialidade – do estabelecimento de fronteiras antes inexistentes nos modos de ser e viver na resistência. O progresso enviesado do capitalismo desenvolvimentista para as comunidades tradicionais representa o ‘roubo’ dos bens coletivos – a extinção de suas existências construída por meio de relações não hierárquico-dualistas ou de dominação com o espaço ambiental no qual se inserem. Nesse contexto, as atividades desenvolvidas por mulheres, protagonistas na agricultura familiar e na agroecologia, no fazer da vida comunitária, ainda que invisibilizadas também nas suas relações de interdependência com a terra, ensinam como produzir alimentos para garantir a soberania e autonomia alimentar.

A utopia ecofeminista parte dos territórios de resistência à atividade bélica do agronegócio - alia-se à luta coletiva dos povos locais contra a prática exploratória e violenta do agronegócio, que ameaça todas as vidas, humanas e não humanas, parte da comunidade de vida da Terra. Nss palavras da filósofa argentina María Lugones, em Rumo a um feminismo decolonial (2014) sobre a produção do cotidiano nos espaços de resistência coletiva à colonialidade:

[... ]esses modos de vida, que não podem ser apenas considerados diferentes incluem a afirmação da vida ao invés do lucro, o comunalismo ao invés do individualismo, o “estar” ao invés do empreender, seres em relação em vez de seres em constantes divisões dicotômicas, em fragmentos ordenados hierárquica e violentamente. Estes modos de ser, valorar e acreditar têm persistido na oposição à colonialidade. (LUGONES, 2014, p. 949).

No documentário Gerações Geraizeiras (2017), que retrata o conflito entre o mega-latifúnfio “Condomínio Estrondo” e as comunidades geraizeiras no município de Formosa do Rio Preto, Oeste baiano, encontramos a oposição à colonialidade, tecida com os fios do capim dourado, nas cabeceiras do Rio Preto, sob a sombra das palmeiras buritis e mantida pela tradição da memória oral. As em torno de 100 famílias que vivem nesse território, em diferentes comunidades tradicionais situadas ao longo das margens do Rio Preto, têm seus modos de vida inspirados nos ancestrais que lá chegaram. Mas tais comunidades enfrentam processos de etnocídio e epistemicídio, que as encurralam e limitam o acesso a áreas antes de livre circulação e agora perpassadas pelos cercamentos que pretendem introduzir ali a ideia de “posse privada” – uma noção não presente na vida dessas famílias organizadas em torno de práticas de sustento coletivas.

Dona Cirila Gomes, da Comunidade de Cachoeira, quando avista pela primeira vez a chegada de um grande trator, vê uma máquina que vem para comê-los – uma máquina que derruba árvores e florestas em instantes, devorando, concomitantemente, as condições que sustentam a vida coletiva de comunidades tradicionais naqueles espaços. As palavras de vanguarda de Dona Cirila nos ensinam sobre a tecnologia de destruição que temos produzido no nosso modo ocidental de fazer ciência, política e economia. Dona Cirila não dormiu sossegada diante da imagem do trator – pois nós também não deveríamos diante do desmatamento, dos incêndios que destroem as florestas, da contaminação de rios, da produção de alimentos transgênicos com agrotóxicos. A máquina já está diante de nós. O que ainda faremos para impedir que ela devore tudo que está pela frente?