Porchat e a lógica e filosofia analítica em São Paulo - Homenagem ao professor Oswaldo Porchat

Prof. Dr. Pablo Rubén Mariconda

08/12/2017 • Coluna ANPOF

Após a divulgação dos resultados do vestibular de 1968, fui à Rua Maria Antônia, onde então ficava o Departamento de Filosofia, para saber se tinha chance de conseguir fazer minha matrícula no curso. Na época, o vestibular não estava unificado (não existia a Fuvest) e os cursos realizavam suas próprias provas de ingresso; costumavam liberar as listas de todos os aprovados, mesmo que seu número ultrapassasse as vagas disponíveis, e isso gerava o que se chamava então de “excedentes” e um movimento pelo aumento de vagas na universidade pública. Eu era um deles, um dos quatro excedentes da Filosofia nesse ano. Subi ao segundo andar e numa porta com um pequeno guichê, que ficava junto à escada, pedi para falar com algum professor do departamento. Pouco depois apareceu um homem de compleição grande, alto, forte, usando um par de óculos de lentes grossas e esverdeadas, com uma barba preta notável que contornava todo o rosto mas o deixava praticamente todo a mostra; o cabelo era preto, curto e penteado para a frente. Cumprimentamo-nos, deu me a mão de maneira franca e antes que eu pudesse dizer a que vinha, adivinhando minha agitação e temores juvenis (eram épocas difíceis), foi logo anunciando que o Departamento de Filosofia não tinha excedentes e que todos os aprovados anunciados podiam efetuar suas matrículas. Fiz a minha matrícula em algum momento de fevereiro de 1968 com a nítida impressão de que tinha conhecido um filósofo e de que ele naquele ato havia cumprido uma decisão filosófica de agir com justiça e acolher na filosofia todos os aprovados no concurso. Agir com justiça e autonomia não era uma prática muito comum em 1968, por isso, senti desde o primeiro contato com Porchat que o curso de filosofia era um lugar onde eu talvez pudesse fazer o que mais desejava que era estudar e aprender sobre os mais diversos assuntos, das ciências às artes.

Tive também o privilégio, um pouco depois, de assistir à aula inaugural de filosofia para o ano letivo de 1968, ministrada por Porchat com o título “O conflito das filosofias”. Logo que a aula começou, com Porchat lendo seu texto, senti que algo importante começava a ser apresentado. À medida que ele continuou a apresentar seus argumentos, com sua fala um pouco arrastada, mas facilmente audível, percebi que não se tratava de uma aula comum, daquelas que seguem um padrão, que cumprem uma etapa, como as que eu estava acostumado a receber no secundário ou mesmo a ministrar a partir dos quinze anos ensinando idosos a ler e escrever, ou “vendendo” aulas particulares a partir dos 16 anos. Percebi, no meio da aula, que era ouvinte de uma conferência na qual, paradoxalmente, apresentava-se a filosofia como um campo aberto ao conflito, marcada por diferenças intransponíveis. Os argumentos delineados já mostravam essa tendência – tão marcante em Porchat, como depois pude comprovar – de a filosofia deixar de tratar de si própria, de sua própria história, e voltar-se para o mundo de nossa realidade comum, abandonando a ideia dogmática de um sistema de filosofia para apresentar-se como uma prática de análise e crítica do que mais nos constrange na vida cotidiana.

Só voltei a encontrar Porchat dois anos mais tarde quando ele retornou de seu pós-doutorado em Berkeley. Tive então o privilégio de ser seu aluno, nos anos letivos de 1970 e 1971, nos cursos de graduação com os quais introduziu no Departamento de Filosofia a lógica matemática. Fui então introduzido, de modo extremamente rigoroso do ponto de vista formal e matemático, ao Cálculo proposicional e ao Cálculo de predicados de primeira ordem com identidade e função. Nesses dois anos, convivi intensamente com Porchat, primeiro, como estudante, e logo depois, como discípulo, sendo durante 1971 um dos monitores do curso de lógica, encarregado da correção das provas. Os cursos de lógica de Porchat eram o terror para uma parte dos estudantes de filosofia, que se abrigavam na filosofia para fugir das ciências, em especial da matemática, e que agora se viam às voltas com um filósofo que se abrigava na lógica e na matemática para proteger-se do conflito das filosofias. Os cursos tinham como marca bem característica as listas de exercícios semanais, formuladas por Porchat para avaliar minuciosamente o conteúdo ministrado, mas que tinha o efeito de permitir ao estudante o acesso ao entendimento completo do assunto desenvolvido na aula correspondente. Ele tinha uma especial predileção pelos casos difíceis, paradoxais, e que obrigavam a pensar segundo as definições formuladas e os teoremas demonstrados. Dezesseis semanas de aula, com 14 listas e duas provas, uma no meio do curso, outra no final. Era preciso dedicar-se integralmente ao curso para conseguir a aprovação. Formavam-se grupos de estudo e desenvolvia-se a colaboração.

No final de 1971, obtive o bacharelado em filosofia. Naquele ano, pressionado pela premência de encontrar algum trabalho, uma vez que a possibilidade da docência no secundário havia sido destruída pela ditadura, com a supressão das disciplinas de história, geografia, filosofia, psicologia, sociologia, amalgamadas todas no que se chamou “Educação moral e cívica”, fiz um curso de programação em computadores, aproveitando a lógica matemática que Porchat ensinava para abrir essa possibilidade de atuação. Também aqui Porchat teve sua influência facilitando meu primeiro contato com as máquinas de Turing. Foi então que ocorreu, em algum momento (que agora não me lembro) entre o final de 1971 e o começo de 1972, o que considero o feito mais impressionante de Porchat, principalmente em virtude da consequência que teve para toda uma geração do departamento. Em uma audiência com o então reitor Miguel Reale, alinhado ao regime militar, para tratar da situação do Departamento de Filosofia, Porchat usando, sem dúvida, toda sua arte de argumentação e persuasão, consegue “trocar” os dois cargos de professores cassados pela ditadura em 1969 – Bento Prado e Giannotti – por 10 postos de auxiliar de ensino. Assim, indicado por Hugh Lacey, que introduziu no departamento, em sua estadia de dois anos (1970 e 1971), a Filosofia da ciência, e apoiado por Porchat, fui contratado pelo Departamento de Filosofia a partir de março de 1972, ao mesmo tempo em que me inscrevia para o mestrado sob a orientação de Porchat. Na época, e dada a excepcionalidade da ocorrência, os contratos costumavam demorar, mas para não deixar a chance escapar, todos começamos a trabalhar sem receber. Obtive então uma das primeiras bolsas de mestrado da Fapesp, sempre sob a orientação de Porchat, o que permitiu que eu me sustentasse até a efetivação do contrato que ocorreu em agosto de 1972.

A primeira parte do mestrado foi muito intensa e era impossível não sofrer a influência do trabalho desenvolvido por Porchat no período de pós-graduação. Não só aprofundou o estudo da lógica matemática, com a teoria dos modelos e a lógica modal e sua respectiva semântica. Mas além dos cursos, Porchat desenvolveu uma série de seminários sobre filosofia da linguagem e filosofia da lógica, dos quais participei ativamente daquele que discutiu o livro de Quine, From a logical point of view. Guardo ainda, e por vezes retorno a elas, as extraordinárias análises estruturais e lógicas de “On what there is?” e “Two dogmas of empiricism”. Não havia parte alguma do texto e da argumentação que não fosse detalhada; a análise do texto era total e detalhada. Nada era considerado irrelevante; cumpria encontrar a função exata de cada parte no conjunto da argumentação do autor. Depois, em algum momento de 1976, Porchat partiu para a Unicamp, para fundar o CLE (Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência), tornando decisiva institucionalmente sua contribuição para a lógica e a filosofia analítica. Nossos contatos tornaram-se então esporádicos, mas já estava sedimentada a filia filosófica que permanece intensa na memória para além do desaparecimento físico do grande mestre.

ANPOF 2017/2018