Qual é o meu lugar de fala?

Genildo Firmino Santana

Mestre em Filosofia da Educação pelo Prof- Filo da UFPR. Graduado em Filosofia pela FAFIC e Pós-graduado em História do Brasil pela FAFOPAI. Professor na Escola Dom Bosco/PE e na FASP.

28/02/2024 • Coluna ANPOF

Reflexão feita a partir do livro O que é Lugar de Fala?, de Djamila Ribeiro

O poeta russo Tolstoi diz em um de seus poemas: “Eu vejo o mundo a partir do jardim de lá de casa.”  Advoga o poeta, com essa assertiva, o lugar onde se põe para contemplar o mundo. Também para no mundo influir. Não só recebe do mundo em seu jardim, como também, a partir do jardim, dá algo ao mundo.

Buscar o meu lugar de fala é também afirmar minha identidade. É buscar aquilo que me identifica e com o qual me identifico. Sem negar as identidades dos outros. Caso as negasse, meu lugar de fala seria tão somente uma reprodução de um sistema que pretende-se combater.

Assim entendendo lugar de fala como diz Djamila Ribeiro, no livro O que é Lugar de Fala? ao relatar que “O lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas.”   Não é tanto o lugar social no qual estou, mas o lugar social que ocupo. E o lugar que ocupo é aquele com o qual me identifico. Há que se ocupar um lugar. Há que se ter uma casa com jardim, como diz o poeta, para, dali, tecer uma fala sobre o mundo. Há que se identificar com algo, para que, tendo-o como referência, dizê-lo e dizê-lo não só a si mesmo, mas também dizê-lo ao mundo.

Entendendo lugar de fala como minha posição em relação ao Outro, sem deixar de ser Eu e sem o Outro deixar de sê-lo, essa fala urge um espaço democrático. O princípio da democracia é essencial para que as diversas falas possam ser ditas e ouvidas. Sem o princípio democrático não se pode nem pensar em lugares de fala.

Outro importante princípio para o lugar de fala é o diálogo. Entendendo que um diálogo só é possível entre duas ou mais pessoas que não tem, ou não levam, consigo, a razão, a verdade. Caso contrário, teremos algo como monólogos, ou mais ainda, como dizia Dom Helder Câmara, “Monólogos Paralelos.” Assim, cumpre que quem fala, fala para ser ouvido. E quem ouve, possa também falar. É a dialética, como dizia o pensador e escritor Chico Pereira, Diale+Gestai, ou seja, “luta dos opostos.”  

Lugar de fala é, ainda, uma disputa de narrativas. São falas sufocadas coletivamente ou individualmente que querem se dizer, porque, em algum tempo e lugar, não foram permitidas. Falas caladas por quem não as quis escutar. Falas que amedrontavam pela possibilidade do que poderiam dizer. E que amedrontam nos dias atuais. Disputar espaços de linguagem, se dizer, mostrar possibilidades outras, revelar uma rebeldia ao caliçado socialmente, fragmentar discursos no sentido de falas diversas, de um poliverso de vozes e não de um universo dito único possível. Sair do centro e olhar para as margens, pois até um rio tem duas margens (ou uma terceira margem, conforme Guimarâes Rosa), duas possibilidades que o fazem ser, pois, sem as quais, rio não é.

Assim me pergunto: Qual é o meu lugar de fala? Reformulo: Quais os meus lugares de fala. Sim! No plural mesmo. Haja vista não ocuparmos um só espaço da imensa teia social, afetiva, cultural, política, religiosa, econômica que nos envolve. Ocupamos vários espaços também porque em nós há várias dimensões que pedem participação e envolvimento. No decorrer de uma vida, podemos ocupar vários espaços, não se restringindo, diminuindo nossa efetiva participação.

Tendo o Lugar de fala como sendo um espaço de luta contra opressão, seja ela de que tipo for e esteja ela onde estiver, podemos concordar com Djamila Ribeiro quando ela diz: “Costumo brincar que não posso dizer que luto contra o racismo e amanhã, às14h25, se der tempo, eu luto contra o machismo, pois essas opressões agem de forma combinada.”  

Falas oprimidas, supressas, disputam espaços, ocupam espaços na ânsia de saírem garganta a fora, gritando suas dores, as mais inconfessáveis. Dizendo do seu mundo, ao mundo. Subvertendo conceitos mesmo. Desemoldurando estéticas fossilizadas. Invertendo valores ditos solidificados.

Pego-me, pois, pensando: Quais lugares ocupei ontem e quais lugares ocupo hoje? Onde gritei dores e subverti, inverti, questionei o dado como certo? Onde está meu lugar de fala hoje?

Filho da seca e da exploração política, contra elas me insurgi. Fadado à ignorância por uma vida inteira, também levantei minha voz e não aceitei o fado de um “destino” imposto a mim e a muitos da minha geração. Para me expressar, fiz da poética meu lugar de fala e construí minha própria narrativa. Nela, tracei minha epopeia onde fui meu próprio Ulisses. Nem sempre tive uma Ítaca para voltar. Também ocupei altares e Cátedras. Nos altares fiz litanias a Deus e ao homem. Nas Cátedras, soletro o homem. Nas lutas populares, também ali, fiz lugares de fala.

Entendo como meu lugar de fala, a minha intimidade, o meu Eu. Esse Eu que se reconhece e me faz ser. Esse Eu que me faz indignar, insurgir em desfavor dos pretensos donos do mundo. Esse Eu que constrói minha identidade de nordestino, sertanejo. Esse Eu que não nasceu pronto, mas que se faz a cada dia e a cada dia se afirma, quixotesca contra os moinhos do ódio, da exploração, da corrupção. Estejam onde estiverem.

Sempre fiz do lugar dos pobres, meu lugar de fala. Dos pobres de ontem, de hoje e de amanhã. Dos pobres materialmente, espiritualmente. Dos pobres reais da vida e dos pobres como Quasímodo, Jean Val Jean, Cosete, Fabiano, Sinhá Vitória e da cadela Baleia.  Tudo isso tem uma força simbólica e real para mim. Por quê?

Porque venho de um povo e de uma realidade que não podia dizer, nem se dizer. Venho de um povo que teve que aprender a calar para sofrer menos. De um povo oprimido pelos poderosos, por políticos, “coronéis” modernos. Opressões físicas e simbólicas. Foi-me dito que não podia estudar. Foi-me apontado que meu lugar seria para sempre aquele. Lugar de submissão financeira. Submissão intelectual. Só quando livre dessas amarras, a muito custo, pude gritar a dor que calei por muitos anos. Gritar a dor de meus antepassados. Pude dizer não ao sistema exclusivista, seleto, cruel e desumano. Dizer não significou não perpetuá-lo, não reproduzi-lo e lutar contra. O que faço há mais de três décadas.

Sendo que o lugar de fala é aquele com o qual me identifico e que me dá identidade, repito que sempre me identifiquei com os pobres do mundo. Estejam onde estiverem. Os pobres findaram por se tornarem meu referencial, pois como dizia Dom Francisco, Bispo da Diocese de Afogados da Ingazeira, “Se está bom para os pobres então, presta. Se não serve para os pobres, pode jogar no mato.”

E do Nordeste? Bem...Do nordeste fiz o meu jardim, como disse Tolstoi.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

DO MESMO AUTOR

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Genildo Firmino Santana

Mestre em Filosofia da Educação pelo Prof- Filo da UFPR. Graduado em Filosofia pela FAFIC e Pós-graduado em História do Brasil pela FAFOPAI. Professor na Escola Dom Bosco/PE e na FASP.

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