Quando duas crises se encontram: a pandemia e o negacionismo científico
Ernesto Perini-Santos
Professor de Filosofia (UFMG)
08/02/2021 • Coluna ANPOF
Por prof. Dr. Ernesto Perini-Santos (UFMG) a convite da Anpof para a campanha #todospelasvacinas
Texto publicado no Le Monde Diplomatique Brasil no dia 28 de janeiro de 2021.
Quando a pandemia da COVID-19 surgiu, o mundo enfrentava um desafio de um tipo diferente, mas também nefasto, o negacionismo científico. Este tipo de negacionismo resulta de um conflito entre traços profundos da cultura humana: a divisão do trabalho cognitivo, por um lado, e o papel de crenças na coordenação em larga escala, por outro. A pandemia aumenta o valor do conhecimento produzido de maneira cooperativa e distribuído assimetricamente na sociedade, mas também reforça a divisão entre grupos.
Devemos ajustar nossas crenças às evidências disponíveis. No entanto, para qualquer tema sobre o qual não se é especialista, a base evidencial não pode ser avaliada diretamente e deve-se deferir àqueles que têm mais conhecimento. A deferência é, essencialmente, à ciência. Pode-se pensar que, idealmente, cada pessoa deveria tomar como verdadeiro apenas aquilo para o que possui, individualmente, evidências suficientes, ou então ela mesma deve seguir sua investigação. Mas como quem não tem a formação em epidemiologia pode julgar, por si mesmo, a progressão da pandemia? A que tipo de informação ele tem acesso e, supondo que ele tenha acesso às bases evidenciais sobre as quais trabalham especialistas, como ele pode as avaliar?
A melhor resposta epistêmica é a confiança em especialistas. Mesmo se, à primeira vista, esta conclusão pode parecer indesejável, ela se segue de um traço central da cultura humana. Nós evoluímos para aprender de outras pessoas coisas que, frequentemente, nos são opacas (Csibra e Gergely 2011). A evolução segue os benefícios da divisão do trabalho cognitivo: um grupo como um todo sabe mais do que cada um de seus membros, para os quais parte do conhecimento resultante permanece opaco. A ciência leva esta dependência assimétrica a níveis muito altos, mas também traz benefícios enormes aos grupos. Tanto a dependência epistêmica quanto os benefícios da distribuição do saber têm raízes evolutivas profundas. Mas o que entra em conflito com esta dependência também tem raízes profundas.
A coordenação em larga escala requer a identificação de grupos e, portanto, indicadores de pertencimento. Crenças funcionam como indicadores de pertencimento. A recusa da teoria da evolução é um exemplo. Para O’Connor e Wheaterall, recusar a teoria da evolução não tem consequências práticas para a maior parte das pessoas, enquanto aceitar o criacionismo “pode trazer benefícios sociais significativos, dependendo das pessoas com quem se deseja estar de acordo.” (O’Connor e Wheaterall 2018: 90) No entanto, nas palavras de Dobzhansky, “nada em biologia faz sentido, a não ser à luz da evolução”. Não há qualquer razão epistêmica para se adotar o criacionismo, que serve unicamente para assinalar o pertencimento a um grupo.
As pressões de coordenação são tão fortes que se pode pensar que elas sempre vencem os valores epistêmicos. Harari, por exemplo, diz que “o Homo Sapiens é uma espécie da pós-verdade, cujo poder depende de criar ficções e acreditar nelas”. Ficções permitem resolver problemas de coordenação em larga escala (Harari 2018: 289-290). Estas ficções são, essencialmente, as religiões, mas a pressão de coordenação sobre crenças se estende a outros domínios, como é o caso de crenças acerca da pandemia.
O funcionamento de crenças como mapas para nos guiar no mundo e seu funcionamento como marcadores de pertencimento podem entrar em conflito por pelo menos duas razões. A primeira razão é que o que a ciência diz pode entrar em conflito com crenças que têm um papel importante nas ficções que funcionam como marcadores da identidade de um grupo. Além disto, a divisão do trabalho cognitivo tem como consequência a dependência epistêmica assimétrica, enquanto a coordenação parece ter uma solução mais fácil assumindo a simetria epistêmica. Ora, pretender que todos sabem o mesmo equivale ao abandono do conhecimento. Aquele que talvez seja o exemplo paradigmático da escolha da ignorância, o terraplanismo, ilustra estes dois traços: o alinhamento com posições religiosas e a aspiração que cada indivíduo produza o próprio conhecimento (Garwood 2008).
Em temas que funcionam como marcas de pertencimento, a distribuição de opiniões não segue a formação acadêmica. Assim, sobre o aquecimento global, o alinhamento com o consenso dos climatólogos não se segue da formação acadêmica de cada um, mas de sua posição política (Kahan, 2012). Aparentemente, a função de coordenação de crenças nos leva, de maneira inelutável, ao abandono de razões epistêmicas. No entanto, além de resolver problemas de coordenação, a cooperação também deve gerar benefícios, o que Calcott chama “o outro problema da cooperação.” (Calcott 2008). Um benefício essencial da cooperação é o conhecimento. Estes é o caso, por exemplo, da teoria da evolução. Se, do ponto de vista individual, talvez não faça diferença aceitar a teoria da evolução ou o criacionismo, para uma sociedade faz uma grande diferença: apenas à luz da teoria da evolução se compreende o surgimento dos diferentes tipos de vírus, apenas à luz da evolução se compreende o desequilíbrio ecológico na origem da pandemia.
Os dois fatores cujo conflito é exposto no negacionismo científico são exacerbados pela pandemia. O valor do conhecimento aumenta muito. Precisamos da ciência para compreender a pandemia, para enfrenta-la e para projetar o futuro. De fato, pesquisas mostram que o valor da ciência aumentou. Ao mesmo tempo, o valor do que entra em conflito com a distribuição social do conhecimento também aumenta. Em momentos de crise, apelos identitários crescem em valor. Um dos efeitos do aumento da desconfiança e dos apelos identitários é bloquear a transmissão do conhecimento através de diferentes grupos.
Além disto, a pandemia chega no momento em que o mundo já conhecia um aumento do negacionismo científico. A negação da ciência sempre existiu. A internet torna esta atitude negacionista mais visível e mais forte. Os custos reputacionais e financeiros da difusão da informação diminuem muito, o que favorece grupos que estão, por uma razão ou por outra, à margem. Este deslocamento tem diferentes consequências, sobre as quais se pode ter diferentes avaliações normativas. Uma consequência é que teorias conspiracionistas de todo tipo são fortalecidas. Além disto, filtros morais desaparecem, de maneira que discursos movidos pelo ódio, que sempre existiram, se tornam mais visíveis e mais fortes.
Existem duas outras razões para o aumento do negacionismo científico. O aumento da desigualdade leva ao aumento dos níveis de ansiedade ligada ao estatuto social e à redução da confiança (Pickett e Wilkinson 2018), o que reforça o apelo dos fatores identitários que estão no centro do negacionismo. Lewandowsky sugere por estas razões que o aumento da desigualdade reforça o negacionismo cientifico (Lewandowsky et al. 2017). O terceiro fator é que o apelo identitário de grupos depende de como estes grupos são coordenados e de suas lideranças. As religiões, por exemplo, podem insular crenças que servem à coordenação e construir o que Atran chama de “mundos minimamente impossíveis”, diminuindo o impacto de suas narrativas sobre teorias epistemicamente motivadas (Atran 2002). Mas religiões também podem recusar qualquer acomodação, tratando ficções construídas para a coordenação de grupos como teorias verdadeiras. No mundo todo, a extrema-direita decidiu jogar o jogo da coordenação contra as instituições que produzem o conhecimento (Stanley 2018).
Assim como estas duas crises se alimentam mutuamente, elas também podem apontar para um novo caminho, de solidariedade e de construção de um ambiente que aumente a confiança na ciência. Em sociedades marcadas pela desigualdade, não se constrói um ambiente de confiança. O Brasil é, ao mesmo tempo, um dos países mais desiguais do mundo e um dos países com índices mais baixos de confiança. Uma sociedade tão desigual não tem as ferramentas para enfrentar desafios que exigem, cada vez mais, o conhecimento científico e, ao exigir o conhecimento científico, exigem a confiança. Talvez a pandemia seja capaz de mostrar o valor do conhecimento e, deste modo, mostrar que um governo ataca as instituições que o produzem não está capacitado para conduzir o país diante dos desafios presentes e futuros. Talvez ela nos mostre também que, numa sociedade tão desigual, não há como construir um ambiente de confiança que é necessário para enfrentar estes desafios.
References
· Atran, S. 2002. In Gods We Trust: The Evolutionary Landscape of Religion, Oxford UP.
· Calcott, B. 2008. The Other Cooperation Problem: Generating Benefit. Biol Philos 23: 179–203
· Csibra, G e G Gergely. 2011. Natural Pedagogy as Evolutionary Adaptation. Phil. Trans. R. Soc. B 366 : 1149-1157.
· Garwood, C. 2008. Flat Earth – The History of an Infamous Idea. Thomas Dunne.
· Harari, Y. 2018. 21 Lições para o Século XXI. Companhia das Letras.
· Kahan, D et al. 2012. The polarizing impact of science literacy and numeracy on perceived climate change risks. Nature Climate Change 2. 732- 735.
· Lewandowsky, S et al. 2017. Beyond Misinformation: Understanding and Coping with the “PostTruth” Era. J. Appl. Res. Mem. 6: 353–369
· O´Connor, C e J Weatherall 2019. The Misinformation Age. Yale University Press.
· Perini-Santos, Ernesto. 2021. What is Post-Truth? A Tentative Answer with Brazil as a Case Study. In Bianchi, B. et al. (eds.) Democracy and Brazil. Routledge. 226-249.
· Pickett, K e R Wilkinson 2018. The Inner Level. Penguin.
· Stanley, J. 2018. Como Funciona o Fascismo. L & PM.