Quem ousa interditar a Mário Mieli?

Thiago Sitoni Gonçalves

Psicólogo e psicoterapeuta; mestre e doutorando em Filosofia pela Unioeste

16/02/2024 • Coluna ANPOF

Na porção meridional do mundo, ouve-se as vaias e chacotas dirigidas a Caetano Veloso no Teatro da PUC-SP em seu discurso afiado ao conservadorismo tupiniquim. Ecoa em suas cordas vocais, a música do vibrante LP Tropicália: “Derrubar as prateleiras/As estátuas, as estantes/ As vidraças, louças, livros... Sim./ E eu digo ‘sim’./ E eu digo não ao ‘não’./ E eu digo: é proibido proibir”. O ato inconstitucional (AI-5) recém decretado em 1968 forja o seu exílio e o de Gilberto Gil para os rumos de lá, sua fria e inédita London, London. Enquanto isso, nós, pessoas da sala de jantar estávamos preocupados em nascer e morrer depois de sua música iluminada de sol.

Semelhante movimento de uma música solar ou de uma ciência bicha, Mario Mieli em 1970, no solo italiano, escreve certa monografia impactante, pioneira na discussão de gênero e sexualidade. A obra Elementos de uma crítica homossexual ganha no segundo semestre de 2023, no Brasil, outro título complementar “Por um comunismo transexual” editado pela Boitempo. O afiado texto de Mieli provoca o leitor numa ousada aliança. Sua intenção é esgarçar os impactos do capital na produção do desejo, compreendendo essa estrutura não só na produção de mais-valia e na alienação do trabalho, mas, cujo alcance dirige-se ao sujeito desejante numa estrutura monossexual. O que hoje discute-se comumente como heterossexualidade compulsória, aos olhos de Mieli, é lido seu peso na estrutura monogâmica, heterossexual, binária e identitária de existir. A existência de produção capitalista é aquela que se reproduz e tem seu peso coisificado (aliás, esse argumento ainda saliva na boca dos brasileiros colonizados).

Estaríamos diante de Mieli, abertos ao debate ou vibramos uma vaia ultrapassada do século passado? Vejamos sua tese inaugurada desde o primeiro capítulo: “o desejo homossexual é universal” (Mieli, 2023, p. 27)[1]. Para construir sua sustentação, Mieli realiza um salto histórico reconhecendo que a revolta heterossexual dirigida ao corpo desejante e subalterno é “causado pelo recalcamento ou ‘quase recalcamento’ da componente homoerótica do desejo em indivíduos heterossexuais manifestos[2].  Essa revolta heterocapitalista ocorre em períodos diferentes na história. No primeiro capítulo da obra, referencia-se tais ações coletivas como psiconazistas. Trata-se de profissionais das ciências médicas e psicológicas que orientam práticas pela rubrica de uma cura gay - como é o caso de Wilhelm Reich e de inúmeros psicólogos que ainda exercem práticas de tortura apesar do posicionamento ético do Conselho Federal de Psicologia. O que se popularizou pela película Laranja Mecânica e as intenções de Kubrick em escancarar os perigos do condicionamento, Mieli põe em cena os tratamentos de eletrochoque, os condicionamentos de dor e medo ao ser exposto por um estímulo reforçador (homens nus, revistas pornográficas) emparelhados com a injeção de éter, terapias hormonais e comunidades de tortura[3].

Em seguida, lê-se sua aliança crítica com a psicanálise de Freud. Nela, o desenvolvimento psicossexual do sujeito aparece em um binarismo (figura materna e figura paterna) à luz de um complexo de Édipo, regulador desse desejo. Mieli realiza uma leitura singular dos primeiros textos psicanalíticos (sejam O Eu e o Id de 1923, Neurose e Psicose de 1924 e outros). Como estabeleceu-se uma diferenciação entre as práticas sexuais (e os desejos) a fim de designar apenas um único modo de desejar? Simbolicamente. Ao invés da figura paterna ser castradora por não inviabilizar a libido dirigida à figura materna, há uma barreira por não poder identificar-se com ela: “a repressão de tendências e traços femininos determina um acúmulo dessas pretensões no inconsciente”[4]. A partir disso, existe uma mutilação de toda performance de feminilidade – e nesse caso, de impulso desejante ao mesmo gênero – latente nas relações com outras mulheres, uma projeção dos elementos femininos residentes na sua psique, em um nível inconsciente. A educastração, conforme Mieli, indica uma pedagogização guiada por uma norma monossexual, impedindo a realização do gozo. Essa castração opera em duas vias sistemáticas: pela família, o núcleo primário da desigualdade dos afetos e a cultura, em que reside a perseguição e a sanção do desejo.

Os ecos de Mieli ressoam em outras leituras capazes de desmontar tanto a lógica capitalista de opressão quanto a regulação dos afetos, dentre elas as filósofas, Carole Pateman. Ela indica a família enquanto núcleo primário de desigualdade das relações. Com isso, afirma, antes do direito patriarcal, a denúncia de um contrato sexual que “garantiu aos homens, dessa forma, o acesso regular aos corpos das mulheres, mantendo parte primordial da ordem patriarcal na sociedade civil moderna”[5]. No tocante às vidas dissidentes, contudo, a prova em carne e osso de tal experiência é a de Paul Preciado[6] quando criança, ameaçada de estupro em nome de Deus e expulsa da escola no instante em que se desenhou casada com sua melhor amiga.

Nesse sentido, “a ideologia sustenta a ‘naturalidade’ do atual sistema e modo de produção: ela os absolutiza de maneira a-histórica, ocultando seu substancial transitoriedade”[7]. Os efeitos dessa ideologia são danosos a todos/as/es, embora Mieli não mencione a noção de interseccionalidade pelo recorte teórico adotado em sua monografia. Quando lançado um projeto revolucionário homossexual, ele visa destruir os ideais heterocapitalistas que engendram a máquina-capital e, em seguida, “dar ‘forma’ e ‘essência’ humana e liberdade aos conteúdos da vida e do pensamento”[8].

Num tom essencialista, quais são os primeiros passos a serem dados em seu projeto revolucionário? O primeiro é desconstruir os binarismos (normal/patológico, saudável/adoecido, sexo regular/perverso) direcionados para separar o desejo, nomeado de “homonomia”. Em seguida, reconhecer a repressão da homossexualidade por uma lógica monossexual de produção e, com isso, não convém cativar a benevolência do heterocapitalista em aceitar o Eros, mas, de perturbar esses desejos para que apareçam em sua poliformia. Além disso, reorganizar uma gaia ciência. Curiosamente, este termo é corrente pelos trovadores provençais entre os séculos XI-XIV para designar sua arte, uma gaia scienza, um gay saber. No século XX, o termo rouba a cena pela titulação da obra de Friedrich Nietzsche sob a presença de um canto de convalescença após o sofrimento. Nos termos de Souza[9]: “num plano extrapessoal [o de Nietzsche, a gaia ciência] é aquela que alegremente se impõe limites no questionamento do mundo, para preservar e afirmar a existência”[10]

Na definição de Mieli, essa gaia ciência é: “uma gaia moralização da vida, que combata a mesquinhez, o egoísmo, a hipocrisia, o caráter repressivo e a imoralidade da moralidade comum” – a esse intento, paira uma tarefa a ser feita – “erradicando-se o sentimento de culpa, a falsa culpa que vincula ainda muitos de nós ao status quo, à sua ideologia e aos princípios mortíferos”[11], impedidores desse projeto revolucionário. No fundo, é um posicionamento diante da margem dos sistemas morais, históricos, sociais e epistemológicos.

Esses esforços encontram-se presentes, aliás, na teoria queer orquestrada por autores contemporâneos como Foucault, Deleuze e Derrida. Mieli, uma voz de timbre dissonante, de projeção aguda, canta uma filosofia que pode abrir-se para o Eros por outras vielas da práxis. Ela não se ergue pela coruja de Minerva que tudo observa, tampouco no sobrevoo da águia que tudo contempla. Sua gênese está na coragem de transgredir sem medo das vaias. Entoar, talvez, num corpo não identificado, novamente: é proibido proibir.


Notas

[1] MIELI, M. Por um comunismo transexual: elementos de crítica homossexual. Tradução Rita Coitinho. 1º ed. São Paulo: Boitempo, 2023.

[2] (Mieli, 2023, p. 30, grifos do autor)

[3] (cf. Mieli, 2023, p. 51)

[4] (Mieli, 2023, p. 41)

[5] WELTER, N. K.; SALLES, R. O. Carole Pateman: o patriarcado moderno fraternal. ELEUTHERÍA - Revista do Curso de Filosofia, v. 8, n. 14, 2023, p. 160.

[6] PRECIADO, P. B. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

[7] (Mieli, 2023, p. 132)

[8] (Mieli, 2023, p. 134-135)

[9] SOUZA, P. C. Pósfacio. In: NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 305-312.

[10] (Souza, 2012 p. 306)

[11] (Mieli, 2023, p. 136)


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