Racismo e capitalismo | Especial Novembro Negro
Maria Cristina Longo Dias
Professora do Departamento de Filosofia da UFES e coordenadora do GT de Raça, Gênero e Classe da Anpof
Isabela Aline Oliveira
Doutoranda em Filosofia na UFES e membra do GT de Raça, Gênero e Classe da Anpof
02/12/2024 • Coluna ANPOF
Dizer que novembro deve ser celebrado como o mês da consciência negra, mais do que uma simples proclamação, deve nos fazer refletir sobre a necessidade contínua de enfrentamento do racismo. Nessa data, celebramos a vida e a luta de Zumbi e rememoramos a existência de Palmares, a primeira experiência verdadeiramente democrática da América Latina, oposta à lógica colonial. Se o projeto colonial cercava terras, pilhava povos, estabelecia rígidas hierarquias entre brancos e racializados, por meio da escravidão e da hiperexploração de seus trabalhos, Palmares se firmava como resistência coletiva, na qual mulheres e homens trabalhavam e reproduziam a vida livremente, sem a reprodução de hierarquizações, sem racismo, conforme afirma Lélia Gonzalez (2018, p.37).
Para aqueles a quem não faltava ousadia, foi possível construir um sentido de liberdade em um contexto marcado pela dominação racial, patriarcal e colonial. Por isso, novembro se abre como oportunidade para ressignificar as várias tentativas de esvaziamento da importância de Palmares como um marco histórico contra o domínio colonial, um contraponto à expansão capitalista, capitaneada desde os núcleos europeus, que, entre outras opressões, construíram um sistema racista global.
Reconhecer Palmares é marcar um ponto de partida desde o qual nos propomos a pensar filosofia e política. É um esforço consciente de destacar dois aspectos centrais: a importância das lutas anticoloniais e a epistemologia de resistência que emerge dessas experiências. Isso porque a produção de conceitos, inerente ao fazer filosófico, pode desempenhar tanto o papel de reafirmar e justificar posições de poder e lugares sociais, quanto o de as revelar e as questionar.
Conforme afirma Darcy Ribeiro (1995, p.220), Palmares vivia o drama de quem pode vencer mil batalhas sem poder perder nenhuma, durante quase 100 anos. Destruir Palmares tornou-se a obsessão do projeto colonialista, que disputava um projeto de Brasil onde rígidas hierarquias estavam sendo firmadas. Assim, a memória de sua existência permanece como a possibilidade de um mundo que queremos ver nascer: sem opressões e sem racismo.
Para ver um mundo sem dominações e explorações surgir, precisamos, entretanto, em primeiro lugar, traçar um diagnóstico correto sobre essas mesmas opressões. Quais as suas causas e como se articulam?
Do ponto de vista conceitual, uma interpretação do capitalismo como um mecanismo universal de exploração poderia sugerir que, para o capital, questões como cor, etnia, orientação sexual ou identidade de gênero são irrelevantes. Seu objetivo fundamental é o de sempre maximizar a extração de valor, o que tornaria a relação entre racismo, patriarcado e capitalismo contingencial. Para o capital, qualquer trabalhador ou trabalhadora seria potencialmente útil, qualquer trabalhador seria uma mão de obra explorável. Porém, assim sendo, como poderíamos explicar, concretamente, que no capitalismo o racismo e o patriarcado tornaram-se formas fundamentais de hierarquização social?
De acordo com Saffioti, racismo, sexismo e classes existiam antes do modo de produção capitalista. Em seu livro Gênero, Patriarcado e Violência, Saffioti (2015, p. 132) afirma que povos vencidos de guerra e escravizados eram de alguma forma racializados, mas de uma maneira distinta da que conhecemos hoje pautada no racismo pela cor da pele e em uma escala menor, considerando que a escravização dos povos denominados negros assumiu dimensões globais. O patriarcado e as classes sociais também antecedem a forma social capitalista na qual vivemos hoje.
Contudo, apesar de estarem presentes antes do capitalismo, este modo de produção se apropriou dessas opressões e as remodelou. De acordo com Silvia Federici, houve um aumento na correlação de forças da classe trabalhadora europeia do século XV devido à redução populacional causada pela peste bubônica e pelos fortes movimentos sociais daquele período (FEDERICI, 2017, p.96). Esse aumento da correlação de forças da classe trabalhadora fez com que as classes dominantes (a burguesia nascente e a aristocracia vigente) reduzissem seu poder de mando sobre os trabalhadores, ao ponto de que em alguns locais da Europa do século XV, como a região da Inglaterra, a servidão foi praticamente abolida (FEDERICI, 2017, p.102).
Segundo Federici, as classes dominantes se organizaram para recuperar o poder de comando sobre a classe trabalhadora, lançando uma contra-ofensiva em múltiplas frentes que gerou o processo de acumulação primitiva de capital. Terras começaram a ser cercadas e comunidades inteiras passaram a ser expulsas de seus locais como forma de cortar seu acesso à subsistência, como maneira de vulnerabilizá-las para serem mais facilmente exploradas (FEDERICI, 2017, pp.120 -121).
As mulheres foram as que mais sofreram com os cercamentos, tendo em vista que poderiam ter mais dificuldade de mobilidade por poderem estar grávidas ou com filhos pequenos ou pela possibilidade de sofrerem ataques sexuais nas estradas. Ao mesmo tempo, uma campanha de terror contra elas, intitulada caça às bruxas, foi instaurada com a finalidade de cercar seus corpos para a reprodução, instaurando uma nova ordem patriarcal, em que elas seriam colocadas sob mando e vigilância de seus maridos.
Se as mulheres passaram a ser retratadas inicialmente como selvagens que deveriam ser controladas e domesticadas, a figura da mulher passiva e dócil passou a ser o objetivo desse projeto de domesticação.
Concomitantemente ao avanço dos cercamentos de terra e da caça às bruxas, a ofensiva para controlar e pilhar a força de trabalho fora da Europa, gerava o impulso das grandes navegações e a colonização das Américas e da África. Nesse processo, foram instauradas hierarquias raciais como forma de justicar a escravidão de certos corpos, assim como maneira de legislar sobre quem teria direitos e quem não teria.
Assim, Federici afirma que a acumulação primitiva de capital constituiu-se como um processo de formação do racismo como o conhecemos, de aprofundamento das classes sociais, a partir dos cercamentos de terra, de destruição de vidas comunais e da privatização dos intrumentos de produção, bem como por intermédio do remodelamento do patriarcado pautado em uma vida familiar muito restrita, em que o homem seria o chefe da família e controlaria os gestos e ações das mulheres, garantindo que a reprodução da força de trabalho e os trabalhos reprodutivos seriam realizados por elas.
No que concerne ao racismo no Brasil, como observa Lélia Gonzalez, impõe-se uma divisão racial do trabalho muito efetiva em determinar socialmente os lugares de cada um. Dessa forma, por um lado, o racismo possui uma dimensão ideológica que sustenta e naturaliza essas hierarquias; por outro, trata-se de uma estrutura objetiva que organiza as relações capitalistas. Uma divisão racial do trabalho que também delimita muito bem o lugar das mulheres negras, sob as quais as relações sociais raciais, patriarcais e classistas imporão uma dominação ainda mais violenta. As mulheres negras se viram reproduzindo ciclos como empregadas domésticas, babás e diaristas, funções que podem ser vistas como herança direta do período colonial, na figura da mucama, além de terem seus corpos explorados sexualmente pelo domínio masculino. (GONZALEZ, 2016, p. 75).
Na sociedade capitalista nascente, inúmeras hierarquias (como racismo, sexismo e classes) são remodeladas e colocadas agora à serviço da lógica de valorização do valor. As classes são remodeladas a partir da privatização das terras e dos instrumentos de produção em que alguns passarão a ser os detentores do poder de comando sobre o trabalho e outros não terão nada para vender além de sua força de trabalho. O sexismo é remodelado com o objetivo de, principalmente, garantir a reprodução da força de trabalho e que os trabalhos reprodutivos sejam feitos sem nenhuma remuneração. O racismo pautado na desvalorização de certos grupos populacionais pelos traços fenotípicos passa a ser fomentado com o intuito de hiperexplorar a força de trabalho lida como não branca, de vulnerabilizá-la, jogando-a para trabalhos de baixo prestígio social, intermitentes e mal remunerados.
Aqui vale abrir espaço para aprofundar a reflexão sobre as mulheres negras. Sabe-se que, ainda hoje, são submetidas a uma lógica que as relega aos menores índices de escolarização, aos piores postos de trabalho e remuneração, e, muitas vezes, ao acúmulo do trabalho assalariado, formal ou informal, com o trabalho doméstico, sofrendo jornadas extenuantes. Isso quando não perdem seus filhos para violência policial, tornando-se muitas vezes as principais sujeitas políticas de enfrentamento das políticas de segurança que massacram e implementam um verdadeiro genocídio da juventude negra no Brasil.
Para se ter uma noção empírica sobre as condições da mulher negra, o relatório que cruza dados da PNAD contínua de 2023 e do IBGE mostram que as mulheres negras ganham 47% a menos que a média dos brasileiros. Enquanto a sua renda média é de R$ 1.582,00, a renda média dos brasileiros é de R$ 2.982,00 e a renda média dos homens brancos é de R$ 4.270,00[1]. É importante considerar, que como seus companheiros estão sujeitos a constantes perseguições policiais, encarceramento e assassinato, muito frequentemente, elas se tornam os arrimos de suas famílias. Como sua renda é insuficiente, seus filhos precisam ingressar no mercado de trabalho muito cedo, prejudicando seu processo de educação formal.
Segundo Lélia Gonzalez, mesmo após a abolição da escravidão, o racismo continuou a ser reproduzido, pois cumpriria um papel importante dentro da lógica de valorização do valor ligado à vulnerabilização e hiperexploração da população lida como não branca. Essa hiperexploração levou à construção de uma verdadeira divisão racial do trabalho, em que os trabalhos de menor remuneração, de menor prestígio social, de menor proteção legal e intermitentes seriam destinados à população negra, quando não estaria permanentemente desempregada, formando, o que Lélia denominou de massa marginal ou parte não funcional do exército de reserva de mão-de-obra (GONZALEZ, 2018, p.57).
Em outras palavras, racismo e sexismo estariam a serviço da dominação impessoal do valor, em que as classes seriam produzidas e reproduzidas, constantemente, a cada novo ciclo de produção capitalista, sempre de maneira não homogênea, considerando que a população racializada ocupa lugares mais subalternos dentro da divisão do trabalho. Outras discriminações como o etarismo, a homofobia e a transfobia seriam produzidas e reproduzidas dentro deste modo de produção, pois relacionamentos afetivos e modos de se expressar no mundo que desafiam a lógica reprodutiva seriam taxados como doentios ou anormais, enquanto pessoas idosas seriam vistas como fardos não produtivos para o capital.
Desvendar a relação entre as várias opressões e perceber que elas formam um só sistema de dominação-exploração como ressaltava Saffioti (1987, p.60), é fundamental para articularmos a potência da luta antirracista e anticapitalista.
A definição de capitalismo não pode ser feita sem considerar a opressão racial como um de seus determinantes fundamentais. E, nesse contexto, colocamos em suspensão até mesmo a ideia de 'desenvolvimento', uma vez que a exploração colonial e a brutalidade da escravização não foram exceções, mas parte estrutural dessa história que se mantém até hoje pela reprodução do racismo como seu componente.
Nesse aspecto, a filosofia tem um papel importante pois pode contribuir para a construção de uma base teórica capaz de refletir sobre a interconexão entre racismo, patriarcado e capitalismo. Sobretudo, porque a destruição do complexo racista supõe a destituição da forma social capitalista forjada sob as bases do racismo como dinâmica de poder.
Por isso, nesse novembro, a memória de Palmares nos inspira a lutar para destruir a divisão racial do trabalho, a divisão racial do espaço, a ideologia do branqueamento, a hiperexploração do trabalho de pele negra, em algumas palavras: o racismo e todas as opressões que fazem parte do emaranhado sistema de opressões que compõem a relação capital.
Referências
FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
GONZALEZ, L. Primavera para as Rosas Negras. Diáspora Africana, 2018.
MARX, K. O Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.
RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SAFFIOTI, H. O Poder do Macho. São Paulo: Moderna, 1987.
SAFFIOTI, H. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
[1] Dados disponíveis em: https://www.mulheressocialistas.org.br/mulheres-negras-recebem-salario-47-menor-que-a-media-da-populacao-brasileira/