Radar Filosófico - A lei do feminicídio e a invisibilidade de mulheres trans: uma discussão hermenêutica entre identidade de gênero e a teoria crítica dos direitos humanos

Raniella Ferreira Leal

Mestranda em Direito Processual (UFES)

Brunela Vieira de Vincenzi

Professora de Filosofia (UFES)

29/03/2023 • Coluna ANPOF

A violência contra mulheres é um problema presente em vários países, sendo motivada pela simples condição feminina. Essa situação tem gerado discussões sobre a criminalização do homicídio contra mulheres.

No Brasil, este debate se materializou no reconhecimento do crime de feminicídio. No entanto, a lei não esclarece se mulheres trans podem ser consideradas vítimas desse crime, já que a sua aplicação é condicionada ao sexo e não ao gênero, conforme visto em uma leitura descontextualizada.

O conceito de gênero é construído culturalmente e se refere a diferentes interpretações do sexo, com significados culturais atribuídos ao corpo. Como qualquer conceito, tem limitações e requer uma definição de suas possibilidades dentro de um contexto cultural, influenciado por discursos dominantes. A proteção baseada no gênero feminino visa proteger pessoas que se identificam como mulheres, mesmo que tenham nascido com um sexo biológico diferente, como pessoas trans. Essa é a relevância da discussão sobre gênero e sexo.

A identidade pessoal é baseada em conceitos e percepções relacionados ao sexo, gênero e sexualidade. A crença em uma "verdade" absoluta sobre o sexo leva à criação de regulamentações que promovem identidades de gênero coerentes, mas que geram desigualdades entre as normas do "feminino" e do "masculino".

Durante muito tempo, a perspectiva de gênero foi limitada à experiência da mulher cis, heterossexual, branca, de classe média, magra e sem deficiências, considerada como ideal performativo. Isso levanta a questão se as pessoas trans podem ou não ser reconhecidas como mulheres.

Uma vez que gênero não está necessariamente ligado ao sexo, não reconhecer a diversidade de performances e experiências relacionadas à identidade de gênero pode marginalizar as mulheres trans. Isso apenas perpetua a cultura da heterossexualidade compulsória, mantendo uma ordem política dominante que pressupõe que a heterossexualidade é a norma natural para homens e mulheres.

Ser uma mulher vai além do aspecto biológico, depende do reconhecimento de si mesma como sujeito dentro do contexto histórico, social e cultural em que se vive. Infelizmente, essa liberdade e autonomia são frequentemente vistas como uma ameaça à família, religião, Estado e outras instituições que tradicionalmente buscam controlar os corpos. Esse simbolismo afeta todas as áreas de conhecimento, resultado de um longo período de dominação irrefletida.

No Brasil, a violência de gênero é uma consequência histórica da violência cultural que remonta aos tempos coloniais. É possível ver seus reflexos através de comportamentos patriarcais que criam uma estrutura de discriminação e desigualdade de gênero, confinando a mulher a uma posição de inferioridade. Onde se considera o gênero masculino como sendo o "gênero humano", enquanto o feminino foi visto como sua "antítese mais radical", inferior e dominado. Levando a normatização do comportamento e procedimentos que as mulheres deveriam seguir, com questões relacionadas à honra e virtude da vida feminina sendo determinadas.

O que leva a criação de uma estrutura que promove a desigualdade de gênero. A falta de políticas públicas do Estado dificulta a emancipação das mulheres trans. O Estado pode contribuir para o aumento da desigualdade de gênero ao se omitir no acesso aos direitos básicos, excluir as pessoas trans estruturalmente e permitir atos de violência, incluindo a "transfobia" e assassinatos de mulheres trans – crimes que vão além do simbolismo e refletem padrões de crimes de ódio e genocídio.

A violência contra mulheres trans é mais do que o silenciamento daquelas que se reconhecem como mulheres, é também a recusa em reconhecer sua dignidade e identidade, motivado pela misoginia, transfobia e violência de gênero, o que representa uma violação dos Direitos Humanos que não atinge todas as mulheres de maneira igualitária.

A omissão do Estado é reforçada pelas instituições do sistema de justiça, que atuam como um mecanismo de exclusão e desestímulo por estarem em descompasso com as demandas sociais, o que é um efeito dos problemas da modernidade e a abordagem normativa e dogmática dos direitos e garantias tem afetado sua efetividade.

Ao olhar para a violência de gênero como motivação dos crimes transfóbicos, é importante considerar que a Associação Nacional de Travestis e Transexuais aponta altos índices de violência contra mulheres trans. No entanto, há ainda um quadro de subnotificação de denúncias, devido ao atual contexto de aumento da violência e insegurança no Brasil, especialmente pela falta de ações do Estado.

Nesse sentido, a compreensão restrita dos Direitos Humanos apenas sob a perspectiva literal da lei dificulta a percepção da identidade das mulheres trans: ao condicionar a aplicação do crime de feminicídio à perspectiva biológica acaba-se aprisionando uma ideia abstrata de mulher singular.

Essa perspectiva considera que as mulheres são oprimidas de forma homogênea e universal, ignorando a complexidade da violência de gênero e seus diferentes marcadores sociais e culturais como o racial e o socioeconômico, o que perpetua uma cultura de heterossexualidade compulsória e viola os processos de luta e percepção de identidade, afetando diretamente os Direitos Humanos.

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