Radar Filosófico - Construção Social de Tipos Humanos
Valdenor Monteiro Brito Júnior
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
24/01/2024 • Coluna ANPOF
O presente artigo tem como objetivo discutir a literatura contemporânea recente sobre a construção social de tipos humanos no contexto das filósofas e filósofos de tradição filosófica analítica.
A questão da construção social é extensivamente discutida nas ciências humanas. Muitas coisas diferentes são candidatas a serem construções sociais: do gênero e da raça no contexto social humano aos quarks do mundo da física de partículas, entre tantas outras.
Dentro da filosofia analítica contemporânea, dá-se enorme relevância à tarefa de conferir maior precisão e rigor aos termos teóricos empregados. Quando confrontados com a questão da construção social, duas perplexidades saltam à vista:
- se tantas coisas diferentes podem ser objeto de construção social, há uma única forma de construção ou, em verdade, existem diversas maneiras diferentes de algo ser socialmente construído?
- é possível reconhecer que certas coisas ou entidades são construções sociais, ao mesmo tempo que se mantém uma postura realista científica e/ou naturalista segundo a qual há uma realidade objetiva, independente da mente humana, que pode ser conhecida pelos métodos de nossa melhor ciência disponível?
A primeira perplexidade convida uma taxonomia da construção social, distinguindo suas variantes de maneira sistemática. A exposição dessa taxonomia, como formulada em trabalhos recentes de filósofas e filósofos analíticos contemporâneos, norteia a divisão em seções do presente artigo, cada seção do desenvolvimento (exceto a última) dedicada aos pormenores dessa classificação. Já a segunda perplexidade é desmembrada em face das diferentes formas de construção social e suas interpretações, recebendo tratamento transversal ao longo do artigo, mas com especial enfoque na última seção, na qual é analisada uma teoria científica à luz da taxonomia abordada.
A primeira distinção maior na construção social diz respeito à construção social de ideia versus construção social de objeto. A construção social de ideia diz respeito diretamente à questão se as próprias ciências naturais envolvem construções sociais ou não. Em uma interpretação realista das ciências naturais, no máximo as ideias científicas que poderiam ser socialmente construídas, tal como teorias, hipóteses, modelos etc. Já uma leitura antirrealista alegaria que não se trata apenas da construção de ideias, mas sim dos próprios fatos científicos (e, no limite, de todos os fatos, inclusive os da nossa experiência ordinária do mundo). Aqui fica claro que o realismo científico e o naturalismo são compatíveis com a construção social de ideia, desde que não implique na construção social dos próprios fatos científicos envolvidos.
Passando à construção social de objeto, trata-se primordialmente da construção de “tipos humanos”, isto é, de traços individuais e categorias sociais no contexto das sociedades humanas, por exemplo, gênero, raça etc. Aqui é preciso distinguir entre uma leitura causal e uma leitura constitutiva da sobredita construção. Quando falamos em construção constitutiva, isso significa que o objeto da construção, por exemplo, o gênero, é constituído por fatores sociais, sendo, portanto, uma entidade cuja natureza (ontologia) é social. Por outro lado, quando falamos em construção causal, isso significa que o objeto da construção, por exemplo, o sexo, pode ser uma entidade cuja natureza não é social (neste caso, de natureza biológica, segundo a distinção clássica – e muito debatida hoje – dos estudos de gênero), mas cuja causação é controlada em grau substantivo por fatores sociais. Portanto, no caso constitutivo, o próprio ser do objeto é social, enquanto no caso causal, trata-se das causas sociais do objeto, independente se o objeto mesmo é social ou não.
Nesse sentido, traços humanos serem construções sociais é compatível com uma postura amplamente realista científica e naturalista acerca da realidade e da ciência. O debate da construção social de objeto, voltado a questões ontológicas e causais, é independente do debate da construção social de ideia, voltado a questões epistêmicas. Ou seja, enquanto a construção social de ideia pode suscitar questionamentos à objetividade científica, quando interpretada como construção social dos próprios fatos científicos, a construção social de objeto diria respeito a uma ontologia que, apesar de dependente de seres humanos para ser constituída ou causada, pode ser conhecida objetivamente por intermédio da metodologia e teorização científicas. Sob a leitura realista, é um fato científico objetivo que muitos fatos humanos sejam construções sociais.
Também são discutidas outras variantes de construção social encontradas na literatura (como construção pragmática, por dependência social, entre outras) e como elas perfazem subcategorias da construção de ideia, construção constitutiva de objeto e construção causal de objeto, de modo que o leitor possa ter uma visualização rápida e prática de como diferentes noções são empregadas na literatura.
Por fim, examina-se a teoria construtivista biossocial de gênero das psicólogas Wendy Wood e Alice Eagly, à luz da taxonomia da construção social, demonstrando como uma teoria multifatorial a respeito do comportamento humano, com uma miríade de elementos explanatórios, tanto de natureza social como de natureza biológica e psicológica, envolverá múltiplas formas de construção social para dar conta das complexidades teóricas e empíricas envolvidas.
Artigo publicado na Revista Pólemos v. 11 n. 24 (2022) | Acesse aqui
Valdenor Monteiro Brito Júnior possui doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com a tese “Ontologia Social Não-Mentalista: uma abordagem comportamental biocentrada”, e mestrado em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), com a dissertação “Teoria Naturalizada do Direito: um debate metodológico com Brian Leiter e seus críticos”. Experiência na área Filosofia, com ênfase em Ontologia Social e Metafísica Analítica, em desdobramentos interdisciplinares com Teoria da Ação, Biologia Teórica e Filosofia das Ciências Humanas.