Radar Filosófico - Entre o conhecer e o deixar ser: uma abertura para a epistemologia do amor

Érico Andrade

Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco

Felipe Nogueira de Carvalho

Pesquisador de pós-doutorado em Filosofia (UFMG) e Doutor em Filosofia e Ciências Sociais (École des Hautes Études em Sciences Sociales/Institut Jean Nicod)

28/02/2023 • Coluna ANPOF

Testemunhamos durante a última década um intenso debate sobre o papel das emoções na epistemologia e filosofia da ciência. Será que elas atrapalham ou auxiliam a aquisição de conhecimento sobre o mundo? Existem emoções epistemicamente melhores ou piores nesse sentido? Embora a filosofia já tenha reconhecido um papel positivo para emoções como curiosidade e surpresa como forças motivadoras que nos impelem em direção a objetos de conhecimento,  análises sobre o papel epistêmico do amor ainda não raras na literatura, e predominantemente negativas.

Isso pode ser explicado por uma certa concepção do amor segundo a qual este constrói uma imagem ilusória de seu objeto, tornando o amante insensível a evidências que possam contrariar esta imagem. Pensemos, por exemplo, em uma mãe ou pai cujo filho se envolveu em atividades criminosas, mas que é visto pelos pais amorosos como um agente moralmente íntegro. Mesmo que testemunhos confiáveis cheguem aos ouvidos dos pais sobre este envolvimento, o amor ainda assim pode fazer com que estes se fechem epistemicamente a estes testemunhos.

Nesse artigo nós argumentamos que esta concepção está equivocada, e que, ao contrário, o amor pode desempenhar um papel importante em nossas práticas de aquisição e transmissão de conhecimento. Para isso, apresentamos uma outra concepção, baseada no trabalho da filósofa Hanne de Jaegher, segundo o qual o amor não é um sentimento epistemicamente cego mas um modo de engajamento intersubjetivo, caracterizado por uma busca constante pelo equilíbrio dinâmico entre a subdeterminação e a sobredeterminação do objeto amado. 

Vamos entender o que isso quer dizer. Quando amamos alguém nos interessamos pela pessoa e nos engajamos de alguma forma com sua vida. Ora, se interessar, se engajar, envolvem sempre alguma forma de determinação; esta pessoa é desta forma, tem tais características, tais talentos e defeitos, etc. No entanto, o ser amado reage constantemente a estas determinações, frustrando-as ou modificando-as, e caso o amante não seja sensível a estas reações, ele terá então sobredeterminado o amado, e a relação de amor se transformou em dominação. Por exemplo, quando um pai exige que seu filho siga uma determinada carreira mesmo face às súplicas e resistências do filho. Ao mesmo tempo, temos de estar atentos para não subdeterminar demais o ser amado, que ocorre quando perdemos totalmente o interesse por seus projetos, seu desenvolvimento e seu bem-estar. Quando isso ocorre a relação de amor é quebrada. Ou seja, o amor aqui é concebido como um saber-fazer prático, em que amar alguém é estar sempre engajado na busca pelo equilíbrio entre a subdeterminação e a sobredeterminação de seu objeto.

Após apresentar esta concepção do amor, nos valemos dos escritos de bell hooks para argumentar que o amor não deve ser concebido de maneira individualista mas sim como uma propriedade social e uma força coletiva, que é colocado em ação por toda uma comunidade e estabelece laços de confiança entre seus membros, nos ajudando a superar crenças individualistas em favor de crenças comunitárias que englobam diversos pontos de vistas e dizem respeito ao bem-estar coletivo.

Mas se amar é saber se engajar desta forma com o restante da comunidade, como entender o papel do amor na aquisição e transmissão de conhecimento? Para esclarecer esse ponto nos valemos de uma conhecida teoria em epistemologia, a saber, a vertente responsabilista da epistemologia das virtudes. Segundo esta perspectiva, o conhecimento é obtido através do cultivo de virtudes epistêmicas, como conscienciosidade, mente aberta, humildade intelectual, etc., que devem ser incorporadas como traços duradouros de caráter pelo agente virtuoso. No caso do amor, estas virtudes são habilidades e disposições que auxiliam o amante a se engajar com o amado da forma descrita acima, como escuta, sensibilidade a outros pontos de vista, etc.

Mas como em nosso quadro teórico o amor é uma propriedade social e não individual, isso significa que o objeto primário de avaliação será a comunidade e não o indivíduo. Isso significa que um conhecedor deve estabelecer relações amorosas não apenas com o objeto amado mas com toda a comunidade, isto é, com outros conhecedores e outros transmissores e receptores de conhecimento. Mais do que isso, o conhecedor deve incorporar estas virtudes amorosas em traços duradouros de caráter, para que seja um membro confiável de sua comunidade e estabeleça laços de confiança com todas e todos os envolvidos em uma determinada prática epistêmica.

Com essa proposta esperamos fazer uma contribuição positiva para o debate filosófico sobre o papel  das emoções na aquisição e transmissão de conhecimento. Nessa proposta, o amor pode nos ajudar a formular descrições verdadeiras sobre nossos objetos de conhecimento ao fazer com que a escuta e a sensibilidade a outros pontos de vista, que são marcas constitutivas do amor em nossa concepção, sejam centrais em práticas epistêmicas, que vão desde investigações das ciências empíricas ao conhecimento prático das emoções e necessidades de outras pessoas.

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