Radar Filosófico - Xenotransplantação: Prós e Contras

Gustavo Henrique de Freitas Coelho

Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

09/04/2024 • Coluna ANPOF

Os avanços na ciência e tecnologia, especialmente no campo biomédico, têm levado ao surgimento de dilemas éticos cada vez mais complexos. Um exemplo claro disso é o xenotransplante, técnica que consiste no uso de animais não-humanos como fornecedores de órgãos para seres humanos.

Por um lado, o xenotransplante tem o potencial de mitigar o problema da escassez de órgãos disponíveis para transplante, diminuindo assim as listas de espera. Além disso, a disponibilidade de órgãos de animais poderia permitir que os pacientes se submetessem ao procedimento ainda nos estágios iniciais da doença, antes que seu quadro clínico se agrave, o que melhoraria suas chances de recuperação.

Por outro lado, o xenotransplante suscita uma série de questões éticas novas e complexas que necessitam ser examinadas e discutidas cuidadosamente antes de podermos considerar a técnica como moralmente aceitável. Neste artigo, destacamos seis dessas questões:

1. Xenozoonoses: Considerando que o órgão de origem animal será alojado dentro do organismo humano e conectado à corrente sanguínea, rompendo com todas as barreiras anatômicas que normalmente nos protegem de infecções, existe a possibilidade do surgimento e/ou transmissão de doenças infecciosas específicas de animais para a espécie humana, denominadas xenozoonoses. Ao utilizar órgãos extraídos de porcos, espera-se que o maior distanciamento genético entre as espécies (suíno-humano), além do uso de animais geneticamente modificados (porcos transgênicos), reduza consideravelmente este risco. No entanto, persiste a possibilidade de que vírus suínos desconhecidos, benignos ou latentes, possam se manifestar anos depois ou, mesmo que o órgão transplantado esteja saudável, possa permanecer sensível a organismos infecciosos da espécie de origem. Isso faz com que seja impossível garantir que o xenotransplante não causará mais mortes do que salvará vidas.

2. Uso de animais: A viabilidade do xenotransplante depende intrinsecamente do uso de animais, levantando a questão: temos o direito de usá-los para tal fim? Com os avanços recentes em diversas áreas da ciência, nosso entendimento sobre a senciência em animais não-humanos tem se expandido. Isto faz com que, ao buscarmos um equilíbrio entre os benefícios potenciais para a saúde humana e o respeito pelos interesses e direitos dos animais envolvidos, poderemos chegar à conclusão de que existem limites morais em relação ao que podemos atualmente oferecer aos pacientes que necessitam de um transplante.

3. Limitação de Privacidade: O receptor de um órgão de origem animal necessitará de acompanhamento médico contínuo ao longo da vida, não apenas para assegurar a saúde do órgão transplantado e prevenir sua rejeição pelo sistema imunológico, mas também para monitorar uma possível contaminação por patógenos suínos. Parentes e cuidadores próximos ao paciente também deverão ser monitorados. Além de impor restrições significativas à privacidade dos pacientes e de seus próximos, esse monitoramento apresenta diversos desafios práticos. Adicionalmente, caso o paciente seja infectado por uma xenozoonose, nossa experiência recente com a COVID-19 demonstrou nossa falta de preparo, tanto social quanto político, para controlar possíveis vetores de transmissão da doença.

4. Consentimento livre e informado: Em situações em que os indivíduos se encontram gravemente doentes, o sofrimento e o medo podem afetar sua habilidade de fazer escolhas livres e bem-informadas, dificultando uma avaliação precisa das suas opções. Esse contexto pode levar os pacientes a aceitarem procedimentos que, na prática, talvez não apresentem vantagens reais, baseando-se na noção equivocada de que “não têm nada a perder”. No entanto, o xenotransplante pode agravar ainda mais a condição clínica do paciente, resultando em sofrimento adicional sem oferecer qualquer benefício que o compense.

5. Uso de pacientes com morte cerebral: O uso de seres humanos em experimentos de xenotransplantação pode assegurar resultados mais confiáveis. No entanto, é crucial definir critérios claros para a escolha de pacientes com morte cerebral a serem incluídos nesses estudos. Isso se deve ao fato de que destinar um doador real de órgãos para uma técnica altamente especulativa pode resultar na privação do acesso a órgãos vitais para muitas pessoas que aguardam um transplante.

6. Obstáculos clínicos: Avanços no desenvolvimento de imunossupressores e nas técnicas de manipulação genética atenuaram o desafio da rejeição hiperaguda, mas ainda persistem obstáculos que talvez nunca sejam superados, incluindo diferenças em relação ao metabolismo, imunologia, hormônios reguladores, frequência cardíaca e pressão arterial. Considerando os progressos modestos obtidos após mais de um século de pesquisas, é razoável questionarmos se os recursos e esforços alocados à pesquisa em xenotransplante poderiam ser mais eficazmente empregados em outras linhas de pesquisa, que possam oferecer resultados mais promissores para a escassez de órgãos.

Portanto, mesmo que avanços científicos futuros superem os atuais desafios clínicos e tornem os xenotransplantes viáveis, é essencial realizarmos uma análise detalhada dos prós e contras antes de decidirmos sobre a sua continuidade. Tal decisão deve levar em conta não somente os progressos técnicos e os potenciais benefícios, mas também considerar profundamente as questões éticas relacionadas, assegurando uma abordagem holística que abarque tanto perspectivas individuais quanto coletivas.


Artigo publicado na Revista Problemata - v. 14, n. 5 (2023) | Acesse aqui


Gustavo Henrique de Freitas Coelho é graduado em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pela Universidade de Franca (2015); graduado (licenciatura e bacharelado - 2019) e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (2023). Possui especialização em Ciências da Religião pela Faculdade Famart (2020), e especialização em Direito Animal pelo Centro Universitário Internacional UNINTER (2022). É fundador, coordenador e pesquisador do Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Ética Animal da Universidade Federal de Uberlândia (UFU/CNPq). Atualmente, é doutorando em Filosofia (UFU).