Radicalizando Fernando Sá Moreira: Não Existe Descolonização Parcial

Murilo Seabra

Doutor em Filosofia (La Trobe University)

Arthur de Moura Dantas

Graduando em Administração Pública (FGV)

25/01/2023 • Coluna ANPOF

Em um brilhante artigo publicado recentemente na Coluna Anpof, Fernando de Sá Moreira tenta assegurar a comunidade brasileira dominante de filosofia acadêmica de que ela não precisa se alarmar tanto com as recentes críticas ao colonialismo epistêmico: o fato de que há um número crescente de pessoas perguntando “Por que praticamente só lemos obras escritas na Europa e nos EUA?” não significa que haja uma demanda crescente para se parar de ler obras escritas na Europa e nos EUA. O pânico civilizacional—que se mostra na passagem de “Querer ler obras escritas na América Latina, na África, na Ásia e na Oceania” para “Querer parar de ler obras escritas na Europa e nos EUA”—é uma reação apressada, exagerada e injustificada. 

O artigo de Sá Moreira poderia ter se beneficiado da seguinte distinção. Imaginemos que uma criança se vista de fantasma e pule na sua frente gritando com uma voz tenebrosa “Hoje é seu último dia de vida!” Naturalmente, você vai se assustar. Mas também vai perceber logo em seguida que se tratava de uma brincadeira. No entanto, você poderia ter levado a brincadeira a sério; você poderia ter saído de casa correndo e gritando a plenos pulmões que fantasmas realmente existem. Nesse caso, você teria exibido um comportamento análogo ao pânico civilizacional descrito por Sá Moreira. E o que ele está tentando dizer à comunidade brasileira dominante de filosofia acadêmica é precisamente que o pânico civilizacional é injustificado: ela não precisa sair gritando que querem acabar com a filosofia ocidental. A inclusão de obras escritas na América Latina, na África, na Ásia e na Oceania não implica na exclusão de obras escritas na Europa e nos EUA. O sobressalto—o medo momentâneo, passageiro—é plenamente justificado. O pânico, não. 

Mas será que Sá Moreira não está apenas querendo cobrir a fissura aberta pelo deslocamento de placas tectônicas com band aid? Os cursos de filosofia têm duração limitada. Os programas de pós-graduação também. Eles não podem—por uma questão de tempo, por uma questão de espaço, por uma questão de recursos—abarcar toda diversidade do pensamento humano. Para se fazer justiça ao pensamento produzido na América Latina, na África, na Ásia e na Oceania é preciso, sim, ferir tanto a exclusividade quanto a centralidade de que a Europa e os EUA atualmente desfrutam. É preciso reduzir drasticamente a quantidade de energia dedicada à assimilação e à difusão do pensamento produzido pelos membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Evidentemente, a comunidade brasileira dominante de filosofia acadêmica—firmemente alinhada à OTAN—não precisa reagir apaixonadamente contra propostas modestas de reformas curriculares. É perfeitamente possível incluir de maneira tímida e controlada obras produzidas na periferia do mundo sem infringir a hegemonia filosófica do Atlântico Norte. Mas talvez o pânico civilizacional esteja, sim, plenamente justificado diante de propostas que não se contentam com inclusões meramente perfunctórias, meramente tokenísticas. Talvez o pânico civilizacional esteja, sim, plenamente justificado diante de propostas que visam realmente solucionar o problema do colonialismo acadêmico e não apenas aliviar a crescente pressão exercida pela tomada de consciência de que o mundo é maior do que a OTAN.

As propostas verdadeiramente consequentes não podem ser equacionadas a crianças querendo assustar a academia. Elas buscam mudanças estruturais e estruturantes. Elas demandam não reformas pontuais, mas reconfigurações profundas, radicais e de longo alcance. Se elas provocam pânico, é porque elas não se contentam com pouco. É porque elas não querem apenas criar cotas para obras saídas de cabeças negras, mestizas e femininas. É porque elas querem efetivamente acabar com a Ku Klux Klan. Elas querem efetivamente acabar com o alinhamento intelectual à OTAN. Elas querem fechar as veias abertas do colonialismo acadêmico. 

 

Proposta

Implementação

Reação

Diversificação

 

Introduzir de forma controlada e moderada obras de agentes epistêmicos marginalizados, inferiorizados e racializados, sem forçar uma completa reconfiguração do currículo

Como se trata de uma proposta estruturalmente inofensiva, o pânico civilizacional não é justificado

Revolução

 

Abrir espaço para agentes epistêmicos marginalizados, inferiorizados e racializados de forma genuína, eliminando o destaque concedido às obras produzidas na Europa e nos EUA

Como se trata uma proposta radical e estruturante, o pânico civilizacional é plenamente justificado

Há uma grande diferença entre diversificar o currículo e revolucionar o currículo. Diversificar o currículo é colocar um ou outro latino-americano, um ou outro africano, um ou outro indígena no meio de um exército de autores do Atlântico Norte. Diversificar o currículo é continuar primariamente reverenciando o cânone ocidental, isto é, batendo continência para Locke, Kant, Hegel, Nietzsche, Heidegger, Deleuze, Agamben etc.—e mencionando Lélia Gonzalez ou Davi Kopenawa apenas ocasionalmente, apenas en passant. Revolucionar o currículo implica necessariamente no reconhecimento de que não há como tratar as obras de Lélia Gonzalez, Davi Kopenawa, Julio Cabrera, Amílcar Cabral, Ken Saro-Wiwa, Ailton Krenak, Viveiros de Castro, Rafael Haddock-Lobo e Antônio Bispo—a lista pode ser expandida quase indefinidamente—com a atenção e o cuidado que merecem sem escandalizar a OTAN. Revolucionar o currículo é democratizar o palco do pensamento—e não iremos nunca democratizá-lo se não sacrificarmos um ou outro pensador do Atlântico Norte no altar de Quetzalcoatl.