Redes sociais e a tentativa de subverter o olhar do outro

Débora Fátima Gregorini

Doutoranda em Filosofia pela UNIOESTE

10/07/2024 • Coluna ANPOF

Coexistir com os outros é parte inextrincável da condição humana, e, portanto, fora tema de reflexão para vários filósofos e pensadores. Dentre eles está Jean-Paul Sartre, e um de seus postulados mais interessantes acerca desse tema é a ideia de que outrem é o único que pode acessar minha face objetiva.

Sob a ótica existencial, todo o ser humano é tido como um ser que é na mesma medida sujeito e objeto. Sartre compõe a ideia de realidade humana como possuidora de duas faces distintas:  em-si e para-si. Veja, não somos apenas para-si, intencionalidade ou nadificação da consciência, há em nós a face em-si que corresponde à nossa dimensão enquanto objetos. O para-si só tem sentido enquanto negação de um em-si, logo se não houvesse em-si, não haveria sequer o que negar. Não há novidade em uma leitura sartriana do homem como nadificação, como um ser que não é o que é, todavia, por vezes esquecemos de que em alguma medida existe algo que é dado como encerrado, justamente a imagem que outrem possui de nós.

Ao tratar o encontro do eu com outrem, Sartre dirá que esse outro é um ‘mediador de mim a mim mesmo’ e isso ocorre porque apenas outrem tem acesso ao meu caráter em-si, à minha dimensão de objeto. Quando vejo a mim mesmo tenho acesso à minha face nadificada, sei que não sou completo, que há algo de vazio no cerne da minha existência. Ora, quando olho para outra pessoa não tenho acesso ao vazio dela, e, assim, logo a preencho com minhas impressões a seu respeito. Simone de Beauvoir (2005, p. 171) descreve muito bem essa ideia quando nos diz que: “por mais que eu me olhe num espelho, me conte minha própria história, jamais me apreendo como um objeto pleno, sinto em mim esse vazio que é eu mesmo, sinto que não sou”. E completa: “outrem reveste facilmente este caráter maravilhoso e inacessível, pois apenas ele experimenta para si esse vazio que está em seu âmago; para mim, ele é no mundo um objeto, uma plenitude: eu que não sou nada, creio em seu ser; (Beauvoir, 2005, p. 172).

Logo, podemos depreender que um eu não tem acesso por si mesmo à sua dimensão objetal, porque essa dimensão diz respeito ao modo como ele aparece ao outro. Dessa maneira, o outro funciona como ‘mediador de mim a mim mesmo’ porque é apenas por meio do olhar do outro, e do que esse outro me fornece da forma como eu apareço para ele, que eu posso ter uma imagem encerrada de mim mesmo.

Sartre utilizará a vergonha como demonstrativo dessa mediação de outrem até mim, ao me perceber sendo observado por outra pessoa enquanto faço algo considerado errado – como espiar alguém pelo buraco da fechadura – sinto vergonha, pois percebo que o outro está me vendo como alguém que faz algo errado. Dessa maneira surge o reconhecimento de si mesmo, “reconheço que sou como outro me vê” (Sartre, 2003, p.276). Em outras emoções pode-se perceber um esquema semelhante, na culpa, na decepção, no orgulho e naquilo que comumente entendemos como autoestima (estimar, gostar de si mesmo). Em todas essas manifestações emocionais podemos notar um reconhecimento da maneira como percebo que sou visto por outrem, noto essa imagem objetal que é captada a meu respeito e me aproprio dela.

Diante de tudo isso, e da observação acerca da forma como a coexistência se compõe no século XXI, uma questão se faz presente: nesse mundo atravessado pela realidade virtual, no qual muitas relações se estabelecem apenas online, a noção do outro como detentor da minha imagem se mantém inalterada? Veja, quando nos encontramos frente a frente com o outro não há como escapar de seu olhar, mas quando publico algo sobre mim em uma rede social, é possível subvertê-lo?

Me parece que em muitos momentos buscamos nas redes sociais uma maneira de escapar da sentença proferida pelo olhar alheio, ou ainda, nos colocamos numa tentativa de controlar a maneira como esse olhar irá nos captar. Se em uma vida inteiramente presencial eu me reconheço através do olhar do outro, em uma vida online eu posso escolher a quais partes de mim o outro terá acesso. Assim, não é o outro que primeiro me vê para que então eu me veja, mas sim, sou eu quem me vendo escolho o que quero que o outro veja a meu respeito.

Não se pode afirmar que a ideia do outro como mediador de mim a mim está totalmente subvertida, porque não teremos nunca o poder de escolher como o outro irá significar o que ele vê. Ainda que veja apenas recortes da minha realidade, outrem irá dar suas próprias significações àquilo que vê. Não obstante, é inegável que há uma modificação na maneira como a coexistência se compõe, o olhar de outrem sobre mim, e assim, o meu olhar sobre outrem, está obnubilado.

O quanto do reconhecimento acerca de nós mesmos podemos estar perdendo nessa tentativa de subverter a mediação de outrem em direção a mim mesmo? Essa é uma pergunta para a qual não encontro resposta, assim como não encontro resposta para o questionamento acerca de haver de fato uma modificação nesse esquema de mediação. O que me parece é que a virtualidade das relações pode alimentar uma sensação presente em muitas pessoas: a vontade de agradar, uma vez que agora a minha imagem de mim mesmo passaria a estar mediada pela expectativa acerca do que será captado pelo olhar do outro.

O olhar alheio não desaparece, ele se mantém, todavia, parece que nessa nova lógica do encontro podemos estar perdendo o que há de mais outro no olhar do outro. Se nos mantivermos constantemente lidando com nossas próprias expectativas e tentando direcionar o olhar alheio para que preencha as carências de amor que possuímos, perderemos o que há de mais mágico em ser visto por outra pessoa que é precisamente ser confrontado com uma nova imagem de nós mesmos à qual nós nunca teremos acesso diante do espelho.


Referências

ALVES, P.M.S. Empatia e ser-para-outrem: Husserl e Sartre perante o problema da intersubjectividade. Estudos e pesquisa em psicologia. Rio de Janeiro: UERJ, n2 pp. 224-257, 2008

BEAUVOIR, S. Pirro e Cinéias. In: Por uma moral da ambiguidade. Tradução de Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

GONÇALVES, A.I. O encontro com o outro em Jean-Paul Sartre. Griot: Revista de Filosofia, [S. l.], v. 8, n. 2, p. 55–71, 2013. DOI: 10.31977/grirfi.v8i2.570

SARTRE, J.P. Entre quatro paredes. Tradução de Guilherme de Almeida. São Paulo: Abril Cultural, 1977

SARTRE, J.P. O Ser e o Nada. Tradução de Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997


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