Sobre a relevância da consciência histórica acerca das "ÁFRICA´S" no fortalecimento da consciência negra | Especial Novembro Negro
Manuel Cochole Paulo Gomane
Doutorando em Filosofia UFBA e Professor Substituto no Instituto Federal Baiano
18/11/2024 • Coluna ANPOF
Bénédicte Savoy (2021) afirma que há 40 anos a Europa já discutia a restituição de acervos museológicos coloniais à África. Os debates não chegaram a lugar algum. Foram esquecidos ou, melhor dizendo, foram recalcados com sucesso. Acredito que o maior temor da Europa na reconstrução da história de África e do negro não é a reconstrução material dos museus e centros de produção de conhecimento em África, e sim, a reconstrução da memória coletiva que irá potencialmente criar (ou fortalecer) uma nova consciência histórica dos povos negros em oposição à “biblioteca colonial” deixada pelo legado neocolonial, ou simplesmente, da “colonização mental”, ora em curso.
Para a perspectiva colonial, é fundamental que a África e o Negro no mundo continue sendo pensado a partir de um interdiscurso formado de estereótipos e preconceitos, que resvalava, muitas vezes para o que Michel Wieviorka (1992), em “A França Racista” designou de ódio formal ou instrumental, na medida em que configurava numa atroz materialidade significante do discurso racista. Até porque, “acercar-se a um pensamento que se debruça sobre o continente africano é uma tarefa árdua, tão tenazes são os estereótipos, os clichês e as pseudocertezas que, como um halo nebulosa, cinge sua realidade” (Sarr, 2019).
A entrada do negro na escrita pode por analogia significar a sua abertura “dentro dos muros” das universidades histórica e estruturalmente coloniais, se considerarmos que ocorre uma mudança na posição-sujeito. Ou seja, o negro foi se impondo, nessas instituições, como sujeito e não objeto da sua própria história. Neste sentido, a entrada do negro através da apropriação dos modelos normativos da escrita ocidental na “literatura mundo” constitui uma vantagem histórica e epistêmica, um marco fundamental desde os projetos do renascimento negro com os movimentos como a negritude e o panafricanismo até o projeto atual de resistência epistêmica contra o silenciamento, projeto decolonial do Séc. XX à XXI.
Os movimentos intelectuais negro-africanos e diaspóricos despertaram no “povo negro” a ideia da consciência histórica. Estou dizendo que é entrada do negro na “literatura ocidental”, dentro das suas condições de possibilidade, foi e continua sendo fundamental para o despertar da consciência histórica no campo do movimento negro no mundo, inclusive na fundamentação da teoria crítica racial, entre outras formas de construção e produção das epistemologias negras. É necessário desmistificar a ideia de raça.
Em relação a desmistificar a ideia de raça, por hipótese, pensemos no negro como uma categoria universal não racializada; aliás, como um sujeito ainda em construção na sua “nova identidade negra” em oposição à identidade estereotipada pela invenção colonial da raça negra. Para tal, tracemos agora uma hipotética biografia da invenção da raça negra como forma de rebuscar na história os estereótipos que caracterizam a acepção do “Ser Negro na história”.
Segundo Achille Mbembe (2015), no livro Crítica da Razão Negra, três momentos marcariam a biografia deste vertiginoso conjunto da “invenção da figura do negro e seus estereótipos”: O primeiro foi a Espoliação do Séc. XVI ao XIX, conhecido como o tráfico do atlântico (homens e mulheres da África foram transformados em objetos, homens-mercadorias e homens-moeda). O segundo momento, corresponde ao acesso à escrita e tem início no final do século XVIII. Neste, o negro, em particular o africano, só teve acesso a escrita normativa colonial há três séculos. Isto é, os negros só puderam escrever a sua história articulando uma linguagem para si, reivindicando o seu estatuto de sujeitos depois de ter acesso a “escrita ocidentalizada” (podemos hipoteticamente imaginar as primeiras pesquisas dos negros ao modelo ocidental a partir deste período – como foi o caso dos surgimentos de enormes revoltas, independência do Haiti em 1804, combates por abolição da escravatura, pelas descolonizações africanas e a luta pelos direitos cívicos nos EUA). O terceiro momento inicia no Séc. XXI, refere-se à globalização dos mercados, do complexo militar pós-imperial, e das tecnologias eletrônicas e digitais. Para o nosso contexto, de países africanos saídos do sistema colonial português, faz-se necessário destacar que o momentum do fortalecimento da nossa consciência histórica coincide com o marco referente ao o surgimento das epistemologias pós independentistas e decoloniais – que tem como marco a “teoria crítica na ciência, em particular, as Epistemologias do Sul [Boaventura de Sousa Santos, 2017] e as traduções de temáticas acerca da literatura sobre a teoria crítica racial [Charles Mills, 1997].
A consciência histórica e a consciência psicológica em termo de acepção são diferentes. A primeira refere-se à capacidade que temos para compreender eventos, processos e dinâmicas que ocorreram no passado, sua influência no presente ajudando a prever o futuro (é uma percepção coletiva dos eventos históricos). A segunda, ligada a acepção da consciência negra, é uma percepção interna de si mesmo, incluindo o pensamento, emoções, comportamentos e a compreensão de como esses aspectos influenciam as decisões e ações (é uma percepção identitária).
Do ponto de vista histórico e da consciência histórica, considero o século XXI, o século da resistência das “epistemologias do sul” em relação às epistemologias do “Norte Global” (o século da dupla consciência negra). Trata-se, pois, do período da irrupção de uma literatura de resistência por parte da geração não independentista (africana), da geração denominada geração decolonial (na américa latina), que lutava contra o silenciamento e invisibilização de que eram alvos dentro dos murros das universidades e das agências de produção de conhecimento. Uma geração que luta igualmente com a consciência de serem sujeitos identitáriamente negros, com o “orgulho da raça negra” e enfrentando os estereótipos da colonialidade. Esta geração pode ser denominada historicamente por “geração da vigilância epistemológica” – estou falando da “vigilância e coerência na produção de dados científicos” (Bourdieu, 2015).
Mediante uma geração caraterizada pela resistência epistêmica, o povo negro através de um grupo de pesquisadores engajados na reconstrução histórica, colocou-se a construir e vem construindo um espólio bibliográfico relevante para a reconstrução da nossa história como povos negros. Neste sentido, urge politicamente, através de políticas fortes, recolocar o portifólio da nossa “biblioteca crítica” entre os nossos povos, de fortalecendo a nossa memória histórica.
Fortalecer a consciência histórica significa curar as feridas diárias da subalternização e exclusão psicológica e material do negro na sociedade. Falar da consciência histórica no cotidiano é uma forma de resistência contra a violência psicológica sobre o povo negro que é a mais visível face da “Necropolítica” e do “Brutalismo” (Mbembe, 2021- 2020).
O debate sobre a necessidade da “consciência histórica” como corolário da “consciência negra” na luta contra o racismo é um convite para pensarmos uma perspectiva decolonial que visa descolonizar as nossas mentes e fortificar os argumentos da causa do negro contra o racismo estrutural. O que significa, por sua vez, a “revisão da biblioteca colonial” e a reconstrução de novos “locais epistêmicos”, reconstruindo a cada dia a “biblioteca crítica” que visa produzir e sistematizar nossas próprias narrativas e epistemologias. Isto é, a consciência histórica implica fundamentalmente, antes das políticas que visam o despertar da consciência negra através de datas comemorativas, uma revisão das políticas curriculares; a contestação das epistemologias universalistas dentro das instituições que albergam o racismo estrutural conservando “os resquícios dos colonialismos”. A consciência negra visa, neste sentido, uma verdadeira educação inclusiva no quadro temático curricular, a necessidade de deslocar e retirar dos nossos alunos e estudantes um quadro curricular que continua perpetuando o protetorado colonial na escola e no sistema ou planos nacionais de educação.
A “descolonização mental” proposta por Ngugi Wa Thiong´o (2021) significa que no contexto da consciência negra, se quisermos pensar a luta antirracista como um ativismo presente na esfera e nas políticas públicas, o caminho para um ativismo embasado numa consciência negra emancipadora, devemos ter em conta as acepções de “consciência histórica”.
No contexto da américa latina, para Dussel (1993), a resistência contra o “mito da violência” significou um processo de luta contra o “encobrimento do Outro”, o não-europeu (historicamente). O ativismo para consciência histórica por parte dos negros e brancos (humanidades), é o despertar para a urgência da emancipação e reconstrução de identidades conscientes do seu passado, sua ancestralidade como forma de vencer o mito da modernidade e da violência colonial, a cura das feridas físicas e espirituais provocadas pelo silenciamento e invisibilização dos corpos e vozes negras na história. É o caminho para a reconstrução dos mitos africanos e de reconstrução de novas identidades através do legado deixado pelos nossos ancestrais, um legado material e imaterial presente no quotidiano de um Brasil que na sua estrutura institucional e estrutural continua sendo colonial. A pergunta é: como os sujeitos negros “decoloniais” podem construir suas identidades negras “em estruturas totalmente coloniais’?
Tomando e considerando que segundo Charles Mills (2022) “o contrato racial pode ser pensado como uma intervenção filosófica negra que toma o eminentemente responsável aparato político e teórico do contrato social e tenta adaptá-lo de forma radical a fim de trazer a raça para a discussão”, a minha proposta é de que para além da consciência negra (simbolizada e materializada nas comemorações de 20 de novembro de cada ano) é necessário ensinar as “áfricas” não estereotipadas, como forma de fortalecer a consciência negra através do ensino formal da consciência histórica; pois, que fique manifesto que não há consciência negra sem a consciência histórica. Por exemplo: para a celebração de uma “consciência negra com consciência” é necessário colocar em prática a “prática da lei nº 10.639/03 na sala de aula” – estou falando da obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afrobrasileira no currículo como forma de preservação do patrimônio imaterial e material de África no Brasil.