Sobre e para o filósofo no limbo
Aluizio Couto
Doutor em Filosofia (UFMG) e contratado da rede estadual de ensino de Minas Gerais
19/06/2023 • Coluna ANPOF
Discutimos muito a natureza da filosofia, a importância (ou desimportância) pública da área e, claro, seu financiamento. São discussões amplas e valiosas, mas que não cobrem tudo e nem poderiam fazê-lo. Pretendo tratar, em uma perspectiva individual, de uma figura cada vez mais comum: o filósofo no limbo. Embora não seja tão fácil expressar o que entendo por “filósofo no limbo”, é bom oferecer de saída uma caracterização geral que, assim espero, consiga descrever um personagem cada vez mais comum: do ponto de vista burocrático, trata-se do doutor (em geral doutor há não muito tempo) em filosofia que não atua de modo algum no ensino superior e assim não é remunerado para fazer atividades típicas de pesquisa. Mais substancial e afetivamente, podemos também atribuir a ele características como certo desespero pelo acirramento da competição pelas poucas vagas disponíveis e também prováveis decepções por reprovações em seleções de pós-doutorado ou concursos públicos. Esses sentimentos, obviamente, indicam que sua colocação no mercado está aquém do que ele gostaria. Minha abordagem é “individual” porque quero dizer ao filósofo no limbo algo a respeito do que é racional ou razoável esperar dele, dada a conjuntura geral.
Quero defender que o filósofo no limbo está justificado em adotar uma espécie de distanciamento em relação às atividades típicas de um pesquisador, salvo nos casos em que fazer o contrário serve a fins pragmáticos. Os pontos mais importantes do texto são dois: o primeiro deles, simples e normativo, é uma espécie de princípio antigratuidade; o segundo é uma mistura de raciocínio prudencial e custo de oportunidade. Quanto ao primeiro, trata-se da oposição à prática disseminada de julgar que trabalho intelectual é trabalho gratuito, como se a mera ventura de participar de colóquios ou coletâneas pagasse as contas. “Se você quer meu tempo, remunere-me!” parece ser, afinal, um princípio muito razoável. É importante dizer que nada disso se aplica ao docente efetivo, pois este já recebe um bom salário para supostamente, entre outras coisas, produzir trabalho acadêmico. Porém, a naturalidade com que aceitamos que os filósofos no limbo façam coisas sem receber é talvez derivada do fato de em geral os docentes não receberem diretamente para escrever isto ou apresentar aquilo. Porém, quando aplicamos algo equivalente a quem está no limbo, o que temos é um bocado de gente trabalhando totalmente de graça.
Especulo também que uma das razões pelas quais naturalizamos o trabalho gratuito é uma espécie de preconceito segundo o qual o trabalho intelectual, por ser algo demasiadamente elevado, deve, sempre que possível, distanciar-se do terrestre mundo das transações financeiras imediatas, como se o pagamento direto por um parecer introduzisse uma indesejável mácula na alvíssima pureza da atividade. Essa mentalidade é equivocada por ao menos duas razões. A primeira é o fato de a atividade intelectual não ser nem melhor nem mais nobre do que as outras, como a costura ou a marcenaria. Não há, assim, razão para supor que a remuneração direta poderia manchar a primeira e não as últimas. E caso ela realmente fosse mais nobre, seria difícil não sustentar que, na verdade, ela deveria ser ainda mais remunerada do que as outras. Ironicamente, essa mentalidade não está longe da noção comum e errada de que o professor do ensino básico exerce um sacerdócio cuja pureza depende do pouco interesse pelo dinheiro. Em segundo lugar, há a obviedade já sugerida de que solicitação profissional implica, ou deveria implicar, consideração pela subsistência. Não remunerar por um serviço prestado é dizer “quero o resultado do seu tempo, mas não vou contribuir para que você possa usar esse tempo para mim”. Sugestão à comunidade: pensar em mecanismos que tratem essas pessoas como prestadoras de serviços remuneradas por seu trabalho ocasional. Recebi recentemente algumas gentis propostas para traduzir gratuitamente. Recusei todas. Recomendo que o leitor que está no limbo faça o mesmo. Se o pedido for o de parecer para artigo, estabeleça o seguinte princípio: o número de pareceres escritos nunca deve ser maior do que aqueles que suas submissões geraram por parte dos outros. Ou seja, se você estiver no zero a zero, como não vão te pagar, recuse tudo, salvo razão pragmática e autointeressada em contrário.
Quanto ao segundo ponto, trata-se da reação adequada ao fato de que as perspectivas na área são muito ruins. Tenha em mente que o tempo que você gasta aprimorando aquela apresentação bacana (e gratuita) ou escrevendo aquele ótimo parecer é o tempo em que você poderia tentar arranjar uma rota de saída por meio do aprendizado, quem sabe, de um novo ofício. É triste, mas, dada a conjuntura, isso pode ser um uso melhor do tempo. Além disso, distanciar-se progressivamente da filosofia pode ter o efeito benéfico de tornar a ideia de fazer outra coisa da vida menos insuportável. Não exagero aqui. Gastamos dez anos ou mais da graduação ao doutorado. O divórcio é difícil e é sempre uma boa ideia arranjar maneiras de lidar com ele. Parte do risco de ir para a filosofia é ter de abandonar a filosofia.
Mesmo assim, você é doutor. Seu título ao menos anuncia uma chance. E de fato seria irracional e demasiadamente derrotista de minha parte sugerir o abandono definitivo de tudo, ainda mais se você consegue se dedicar de alguma maneira à filosofia. Porém, uma vez que sua posição é desfavorável, penso que você está, desde que não incorra em fraude ou trapaça, autorizado a certas manobras para as quais muitos torceriam (não sei se com sinceridade) o nariz. E aqui começo, como dizem os americanos, a dizer the quiet part loud. A primeira manobra é quantitativa. Como sabemos, dada a dificuldade de fazer avaliações qualitativas e individualizadas do trabalho alheio, apelamos para coisas como os baremas. É muito comum que a contagem de pontos seja feita levando-se em consideração o valor numérico de uma dada unidade de trabalho, como um artigo. Se a quantidade de pontos é o que mais conta nessa etapa, o incentivo posto torna racional angariar a maior quantidade possível de pontos. E uma das melhores maneiras de fazê-lo é recortar um artigo grande (ou um capítulo da tese) em duas ou três partes e mandar para revistas de médio porte. Como o último Qualis estabeleceu que várias revistas são nota A, não é tão difícil fazer com que todos esses textos consigam uma boa pontuação. Pode-se argumentar que proponho aqui uma espécie de “sacanagem” que manipula o sistema em detrimento do excelso espírito que deveria nortear a produção acadêmica. Resposta: não é razoável exigir uma postura idealista perante um sistema de incentivos que separa quem entra de quem é barrado por critérios como os já conhecidos. O sistema não é ideal, e não é razoável esperar que atuemos como se ele fosse. Quantitativamente, é melhor publicar um punhado de artigos menores em revistas menores do que se dedicar com afinco a uma contribuição mais demorada e substancial, que ainda por cima tem mais chances de rejeição.
Uma segunda recomendação a quem não quer largar tudo porque vislumbra alguma chance é adotar uma postura igualmente pragmática relativa ao estudo da filosofia. Esta recomendação, claro, não tem a intenção de mudar o comportamento de quem pode ter o luxo de estudar algo por prazer, mas sim o de quem o faz por um senso de obrigação ou dever ou mesmo por hábito adquirido no doutorado. Pelo já mencionado custo de oportunidade, talvez valha mais a pena estudar desde já o que costuma cair em concursos e não tanto aquele tema que você adora. Eu mesmo, no começo do ano, estava me sentindo, por hábito, obrigado a produzir um novo artigo sobre agência coletiva, tema do qual gosto bastante. O artigo ofereceria organização e um fio unificador interessante ao último capítulo da minha tese. Porém, pensei: qual o motivo? A trabalheira monstruosa de estudar dezenas de artigos para depois escrever um material que vale a pena ser lido me daria uma imensa dor de cabeça, tudo isso para chegar a resultados incertos em um contexto pessoal ruim. Deixei para lá. Muito melhor, nos tempos livres, decorar a passagem do mito ao logos ou a crítica de fulano à racionalidade iluminista, coisas que costumam cair em prova de Instituto Federal. Em suma, pense bem antes de fazer um esforço que, idealmente, tem como pressuposto boa remuneração e estabilidade financeira, coisa que você pode não ter. Eu nunca achei que fosse dizer isso, mas aja como um concurseiro do tipo que decora leis remotíssimas. Um concurseiro raramente estuda o que gosta. Ele estuda o que vai maximizar as chances de conseguir um cargo. Se isso não te convence, saiba que há muita gente com boas condições familiares disposta a prestar concursos indefinidamente. Concursos são empreitadas elitizadas que pressupõem dinheiro para viagens e a disponibilidade de “parar” a vida por alguns dias ou até semanas. Nessas condições, é mais vantajoso ter o conteúdo habitual das provas de cor do que ter dedicado horas por dia a seu tema favorito. Pesquisador é profissional pago. Se você não está sendo pago, considere alterar seu foco para aumentar as chances de sê-lo.
Antes de encerrar, vale a pena esclarecer algumas coisas. O argumento não se aplica ou pouco se aplica a pós-doutorandos, substitutos e outros em condição parecida. Aqui, há contrato e remuneração, caso em que obrigações correspondentes são geradas. Pós-docs, por exemplo, costumam respeitar o princípio da antigratuidade. Cargos de substituto também, embora não haja aqui tanto compromisso com publicações. E não tenho aqui a intenção de tratar o filósofo no limbo como vítima. Escolhemos esse caminho porque quisemos e o mundo é o que é. Celebramos a quantidade cada vez maior de doutores lançados no mercado a cada ano. Porém, era claro que, uma hora, a absorção não acompanharia o fluxo, gerando esse exército de desempregados qualificados. Sabíamos disso ou deveríamos ter sabido.
Em suma, acredito que, para o filósofo no limbo, uma postura menos apaixonada ou mais realista ao lidar com a filosofia pode melhorar suas chances de retorno profissional e financeiro (e até emocional). Seja por razões normativas (o princípio da antigratuidade), por razões pragmáticas (dedicar-se a outra área ou, dentro da filosofia, àquilo que oferece mais chances de aprovação) ou pela mistura de ambas, o distanciamento da filosofia enquanto prática acadêmica está justificado. E também está, acredito, seu desempenho de acordo com alguns critérios que não gostaríamos de admitir publicamente.
Para você, a não ser que sua condição seja boa, a filosofia é uma promessa distante de ascensão. Se você for aprovado, poderá ter o luxo de tratá-la como matéria puramente intelectual. A dedicação ao mundo das abstrações exige, na base, bastante concretude material.