Sobre nós, mulheres

Gislene Vale dos Santos

Profa. Filosofia (UFBA)

11/03/2022 • Coluna ANPOF

Cruze as pernas! Moça direita não pode usar essas roupas curtas, minha filha! Menina não fala isso! Menina tem que ter cabelo cumprido. Fulana, não gostaria de ser a secretária de nossa chapa? Você precisa aprender a cozinhar, para não dizerem que sua mãe não te ensinou. Mulher não precisa ir para a escola. Vão te chamar de puta! Vai trocar de roupa! Esse batom não! tinha que ser mulher! (no trânsito) Hoje é dia de Dinalva! Se continuar assim não vai conseguir casar-se. Conseguiu a bolsa porque abriu as pernas. Se até você conseguiu então eu também posso conseguir. Tá de TPM, é? Ela é tão bonitinha de rosto. Vai ficar para titia. Você passou porque a banca era de homens. Você passou porque na banca tinham mulheres. Não vai ficar muito bêbada para não pensarem que você é uma qualquer, hein! Isso é tarefa de homem, menina. Você era bonita, agora está velha, gasta, transou demais. Você vai chorar? é só o que as mulheres sabem fazer! Como você engravida e não sabe? Eu tenho um futuro profissional pela frente e não posso ter mais filhos. Você precisa assumir a responsabilidade pelos seus atos (caso de aborto). Não se casou ainda? Qual é o seu problema? Para uma mulher, até que você é inteligente [1].

Estas frases foram, e ainda são, rotineiras em nossas vidas. Cabe a nós, mulheres, questionar a falsa naturalidade na qual elas são inconscientes e, muitas vezes, salafrariamente repetidas em nossas formações, desde o berço ao túmulo [2]. Na lida, e criadas com o machismo e com a misoginia, também as repetimos, em muitos casos. Ter a consciência dessa faceta da estrutura não é o suficiente para transformá-la, é parte do processo, mas ele não se esgota aí. É preciso que nossas ações, enquanto comunidade humana, mudem. Mudança esta que só acontecerá no dia em que tivermos de fato uma mudança de valores, que também passa por uma reformulação das semânticas das línguas, então, da cultura, por consequência. A mudança virá no dia em que teoria e prática de vida se alinharem, neste quesito em particular [3]. Parece distante, não? E é. Mas não é impossível, pois os valores que colocam a masculinidade neste lugar de privilégio humano são construções históricas que podem ser apontadas com o dedo. A questão do privilégio masculino não é distante, ao contrário, está incrustrada no modo como nos entendemos individual e coletivamente. Este fenômeno social se fez e se faz por meio de acordos tácitos ou não: no Brasil, por exemplo, é no Código Civil de 2002 que a lei sobre a virgindade é revogada [4].  

Muitos são os valores que poderiam pautar a discussão acerca do modo como as mulheres são interpretadas na vida pública e na privada. Aqui, aponto apenas um. Por ser ele, talvez, um articulador de todos os outros: o valor em questão é a dignidade. De partida, no esquema valorativo vigente, as mulheres são interpretadas a partir de um subvalor: não são dignas da mesma dignidade usufruída pela masculinidade. E isso foi construído ao longo dos tempos. Penso aqui a dignidade como articuladora das relações de homens e mulheres. A figura feminina, não importando em que relação esteja, quando mesurado o seu grau de dignidade, vale menos na relação com o masculino. Uma imposição cultural e não natural. Muitas são as causas deste subvalor. 

Uma das causas que pode ser mobilizada para a compreensão deste fenômeno, uma dignidade em menor grau, é a invisibilidade; que não é novidade alguma enquanto categoria conceitual de análise. Em todas as áreas da atuação humana é possível encontrar o apagamento da obra de mulheres, seja nas ciências, nas artes e na filosofia. Este último caso me (nos) toca sobremaneira, uma vez que, na condição de professora de filosofia, me vi, durante muito tempo, reproduzindo o discurso que oprime não apenas a mim. Como? não questionando a presença de mulheres na História da Filosofia. Nomes como Mia, Esara e Hipátia não foram nem mencionados em minha formação. Por maldade docente? Não. Por ignorância mesmo. Na minha história de filha, irmã, discente, pesquisadora e docente, não ouvi e por muito tempo também eu não debati o tema da ausência das mulheres na História da Filosofia, e também na academia. Onde estamos nesta esteira? Estamos? Sim, estamos. Como nos encontrar? Como tornar visível o que foi apagado pelos tes-x-tículos masculinos? Estas são questões que se, por um lado, não têm respostas prontas, por outro, nos (me) mobilizam a refletir sobre estratégias que subvertam o imposto pelo impostor.

Uma dessas estratégias é a revisão curricular. É trazer o debate para a ágora e começar a incluir o que foi paulatinamente excluído. Este movimento não traz apenas visibilidade para as invisibilizadas, ele é crucial para que possamos nos enxergar e fazer ver às nossas filhas e filhos, alunas e alunos que, assim como os homens, as mulheres estão presentes neste lugar filológico que é a História da Filosofia. Incluir mulheres no currículo não é coisa fácil, quando temos cânones nas disciplinas históricas que nunca as pensaram. Em Filosofia Antiga, conhecemos Platão, mas não Esara; em Filosofia Medieval, conhecemos Tomás de Aquino, mas não Christine de Pizan; em Filosofia Moderna, conhecemos Descartes, mas não Elisabeth da Boêmia; em Filosofia Contemporânea respiramos um pouco, mas nem tanto assim. Se lembramos que a maior parte do corpo acadêmico da filosofia é masculina, é importante notar que nem sempre, salvo raríssimas exceções, há a preocupação em apresentar uma pensadora, começando sempre pelo já conhecido bordão de Nietzsche, Heidegger e seus filhos franceses e alemães. Saliento que este não é um discurso de retirada, senão de inclusão. 

Promover a inclusão das filósofas na História da Filosofia é parte da tarefa de todas e todos nós. Isoladamente, isso ainda não resolve o problema de uma estrutura que aparece desde o entrelaçamento do machismo, do racismo e do classismo. Essa tarefa pede comprometimento verdadeiro. Chamo de comprometimento verdadeiro um alinhamento entre o discurso e a ação. O que Pierre Hadot chamou de Modo de Vida. No caso específico da inclusão curricular, da tradução de mulheres filósofas para a nossa língua portuguesa, da promoção de espaços para a exposição do pensamento de mulheres filósofas, é possível contemplar uma educação lato sensu, objetivando uma formação humana mais inclusiva, no âmbito doméstico e no público. É preciso também exigir a reparação do Estado, é preciso educar com vista à equiparação da dignidade anunciada. Mulheres e homens são dignos de igual modo. E aqui, entendo a dignidade não como o digno de, mas a dignidade por ela mesma. A dignidade de sermos enxergadas e nos enxergarmos com a mesma dignidade oferecida ao masculino, mudando, assim, o imaginário estruturante do psiquismo público e, portanto, do privado.

Termino este texto com uma das frases que nós mulheres mais escutamos da comunidade masculina: Você não entendeu o que eu quero dizer, deixa eu te explicar. Não! Nós entendemos! Vocês é que ainda não entenderam! 

[1]  Agradeço a minha mãe, a minha irmã e todas as minhas amigas que ajudaram na formação desta lista. Com vocês, eu me construo mais forte.

[2] Digo que cabe a nós, mulheres, porque não partirá da comunidade masculina tal ação. Aos que, porventura, desconfiarem do contrário, é simples, analise as relações de poder com a sua comunidade masculina mais próxima: pai, irmão, marido, namorado, rolo do Tinder, colega de trabalho, amigo... Perceba criticamente o grotesco e as nuances.

[3]  Não excluo desta discussão a conexão com as questões de raça e classe. Nós mulheres estamos encarnadas em um tecido social que nos impõe valores, também, a partir da raça e da classe, além do gênero. Não somos mulheres e ponto, somos mulheres trans, pretas, brancas, periféricas, mães, lésbicas...

[4] Vide: https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u35006.shtml#:~:text=De%20acordo%20com%20o%20texto,como%20motivo%20para%20deserd%C3%A1%2Dla.