Solidários com quem?
Filipe Campello
Doutor em filosofia pela Universidade de Frankfurt, pós-doutorado pela New School for Social Research (Nova York). Professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco
07/12/2023 • Coluna ANPOF
O modo como a Alemanha tem lidado com o conflito Israel-Hamas demonstra que questões de memória e reparação estão longe de serem inequívocas. Enquanto nos protestos se viam cartazes dizendo “free palestine from german guilt” (liberte a palestina da culpa alemã), é também verdade que se constata um oportunismo que volta a assumir teores antissemitas. Sobretudo em um país com o passado como o alemão, isso deve ser enfrentado de maneira contundente.
A questão é a de como lidar com esse passado sem renunciar à distinção de quais críticas são legítimas - uma espécie de imanência-transcendência do próprio contexto. Mas o caminho que o debate tem seguido mostra um fenômeno curioso: o que se vê é uma resistência a qualquer coisa que vem sendo chamada de “decolonial” ou do “sul global” por se julgar que elas não oferecem aqueles critérios antes encontrados na Europa esclarecida.
Quando autores como Jürgen Habermas, Rainer Forst, Nicole Deitelhof e Klaus Günter assinam uma nota conjunta com o título de “princípios de solidariedade”, defendendo que “existem alguns princípios que não devem ser disputados” - o que parece se referir a alguma ideia de universalidade - é sintomático que logo a seguir a nota fale em “solidariedade entre Israel e judeus na Alemanha” – ou seja, um contexto específico onde os palestinos sequer são mencionados.
Esse tipo de autoreferencialidade é o que acabou pautando um projeto intitulado sem modéstias do “Normative Orders” (instituição que publicou a nota, onde eu mesmo estive ligado por quase cinco anos durante o doutorado). Mas falar em “ordens normativas” hoje exige uma autocrítica desse lugar que continua pretendendo ser universal. O que muitas das posições do “sul global” têm defendido é que esse universal não é tão universal assim.
O contexto específico no qual a Alemanha lida com sua responsabilização diante de seu passado não impede de reconhecer quem hoje tem sua dignidade negada. Colocando nos termos de afetos políticos, significa um exercício de empatia que não se reduz ao mais próximo (aquilo que Adam Smith chamava de fellow-felling), ou seja, um esforço de ampliação de com quem somos solidários.
A ressonância desse passado na forma de lidar com o presente não implica renunciar aos mesmos critérios de crítica que pudessem ser sensíveis ao que transcende o próprio contexto. Se esses teóricos quisessem de fato mencionar universalidade dos direitos humanos, deveriam se colocar do lado de quem tem sido mais esquecido, invisibilizado, de quem sequer pode disputar seu lugar nessa universalidade. E é disso que se trata as críticas decoloniais. Aqui, ao menos como eu entendo, não se trata de abandonar um sentido de universalidade ou mesmo de razão, sem a qual a própria justificação dessa disputa pouco se sustenta. Sem esse esforço, a teoria crítica está fadada a continuar falando do um lugar que insiste em um universal persistentemente excludente e seletivo, onde algumas vidas importam mais que outras.
A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.