Suicídio: um debate urgente para a Filosofia e para o viver ético

Flávia Andrade Almeida

Psicóloga, mestre em Filosofia (PUC-SP) e doutoranda em Psicologia Clínica (USP)

25/09/2023 • Coluna ANPOF

Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois [...] Se eu me pergunto por que julgo que tal questão é mais premente que tal outra, respondo que é pelas ações a que ela se compromete. Nunca vi ninguém morrer pelo argumento ontológico [...]Julgo então que o sentido da vida é a mais premente das perguntas (Camus, 2013, p. 19, grifos nossos).
 

Inicio esse texto com essa passagem de Camus porque considero que ele compreendeu bem o quanto refletir sobre o suicídio é refletir sobre a vida e sobre o quanto pode ser mais ou menos penoso estar vivo. Camus compreendeu de modo brilhante que esta reflexão é, sobretudo, uma reflexão ética. Pensar se a vida vale a pena é, entendo complementando Camus, pensar nas formas e condições do viver, é pensar em como encaramos a vida, individual e a do outro. O suicídio sempre foi tema relevante na discussão filosófica. E apesar de haver diferentes entendimentos de diferentes filósofos sobre o tema, é um assunto intrigante e que possibilita discussões interessantes, especialmente por nos colocar diante da questão de se a vida vale a pena ser vivida, como propos Camus.

Contudo, por se tratar de um assunto sério, de um tema e de um ato que causa dor, que envolve o sofrimento, que envolve, em suma, vida e dignidade de vida, é preciso ter cuidado, responsabilidade e prudência nos debates públicos. A reflexão filosófica sobre o suicídio é profícua, instigante e precisa continuar, mas é preciso lembrar que nem todos que nos leem, nos ouvem, nos assistem, estão em condições psíquicas de seguir na reflexão sobre esse tema sem se afetar ou sem ter seus sofrimentos preexistentes intensificados. Por este motivo, textos curtos e informativos sobre o tema precisam, mais do que quaisquer outros, de prudência, cautela. Estamos lidando com a vida e, especialmente nós, filósofos e/ou interessados na discussão filosófica, precisamos assumir posicionamentos éticos, cuidadosos, prudentes.

Isto significa dizer, por exemplo, que suicídio e suicídio assistido não são a mesma coisa, não são sinônimos, apesar de os entendermos como temas de bioética. Significa dizer também que é preciso levar em consideração o que estudiosos contemporâneos e a própria OMS (Organização Mundial da Saúde), preconizam para tratar do tema, em função do efeito-contágio, isto é, da possibilidade de aspectos da discussão, desencadearem sofrimento em pessoas já emocionalmente vulneráveis. Esses aspectos, essas ressalvas, estão longe de poderem ser considerados censura. São, na verdade, cuidado: de si e do outro. 

Feitas essas ressalvas quero começar essa breve proposta de reflexão dizendo que o suicídio talvez seja um dos temas mais relevantes da atualidade. Isto para a reflexão filosófica, mas também para a reflexão social geral. Seguindo a proposta de Foucault de que a tarefa do filósofo é realizar um diagnóstico de seu presente: olhar ao seu redor e identificar as questões mais relevantes, pensar sobre elas, propor um pensar diferentemente do que se tem pensado sobre elas, sacudir evidências entendo que pensar na atualidade sobre suicídio é enxergar que há modos de vida que precisam ser questionados e transformados. Entendo que olhar ao nosso redor em nosso presente é identificar que há pessoas que tem escolhido morrer em função da precariedade de condições de vida e que, talvez mais do que nunca, o desespero é premente. Isso me faz considerar o suicídio tema relevante para o diagnóstico filosófico do presente e talvez, como disse Camus, ele seja e continue sendo a questão filosófica primeira e a que nunca deverá deixar nosso horizonte. 

Além disso, a tarefa predominante nos últimos escritos de Foucault era a de pensar sobre a estética da existência e isso pressupõe, entendo, cuidado; mais uma vez afirmo, trata-se de cuidado: consigo e com o outro. Trata-se de preocupar-se em construir cuidado, de si e do outro. Com Foucault como percurso e recurso realizo meu trabalho há alguns anos e proponho aqui a reflexão sobre o suicídio, este tema urgente da atualidade, esse tema que nos faz olhar para a maneira como vivemos, como entendemos a vida, individual e coletiva, e nos faz olhar sobre como entendemos, lidamos e enfrentamos o sofrimento, individual e coletivo.

Pesquiso o tema do suicídio e trabalho escutando pessoas que pensam em suicídio há mais de dez anos. E costumo sempre iniciar meus textos ou cursos/aulas dizendo que o suicídio não é um tema exclusivo da saúde, menos ainda da saúde mental. O tema do suicídio passa por, mas ultrapassa a área da saúde mental. O suicídio não é um tema exclusivo das áreas da saúde, mas um tema da vida, das formas de vida sobre as quais precisamos pensar, repensar, transformar.

Esse aspecto, ou seja, o aspecto do suicídio como um tema da vida, é um dos pontos que discuto no livro Suicídio e Medicalização da vida - reflexões a partir de Foucault. Nesse trabalho, discuto a questão da medicalização e atual patologização do suicídio, já que parece cada vez mais naturalizada a ideia de que suicídio é sinônimo de transtorno mental. E não, alguém que pense em abandonar a vida não necessariamente está com algum transtorno. Às vezes sim, está adoecido psiquicamente e necessita de tratamento, mas esse aspecto não reduz a questão e a discussão sobre suicídio à perspectiva da saúde mental. Isto porque quem pensa em suicídio sofre, na maior parte das vezes, quem quer abandonar a vida na maioria das vezes está em sofrimento extremo. E não podemos e nem precisamos de uma catalogação patológica, psiquiátrica, para cuidar de alguém que sofre. Na verdade, não precisaríamos que fosse assim, mas em nosso contexto sociopolítico atual, atravessado pelo ethos neoliberal é em geral, somente a partir de uma catalogação psiquiátrica que se legítima de algum modo o sofrimento.

O risco de patologizar o suicídio é individualizar um problema muito maior do que um diagnóstico, muito maior do que uma patologia, um adoecimento. Reduzir o pensamento suicida a uma questão patológica é recortar o fenômeno e enviesar a discussão. Quem quer abandonar a vida, quer abandonar certas condições de vida. Uma prova disto é que as populações que têm maior incidência de tentativas de suicídio são as populações vulneráveis: jovens negros, lgbtqia+, indígenas, população de rua, mulheres vítimas de violência doméstica e idosos. Isto nos mostra que o sofrimento e as vezes até o adoecimento psíquico estão intimamente relacionados a questões sociais. A precariedade de condições de vida e, em resumo, a violência estrutural, provocam desespero, sofrimento intenso e podem culminar em desejo de encontrar a saída na morte. Portanto, outro dos temas que discuto em minha trajetória como pesquisadora do tema é que patologizar o suicídio, transformá-lo em doença é individualizar um problema que não é do campo do individual. O suicídio é um fenômeno multifatorial e, por isso, é impossível dizer que há causa única para ele.Individualizar o problema não vai nos ajudar a cuidar. Vai reduzir a discussão, enviesar, como já dito e, o mais preocupante, não será suficiente na prevenção, no cuidado, no amparo dessas pessoas que sofrem e para as quais precisamos olhar.

Atualmente também vemos o quanto a violência estrutural causa sofrimento no âmbito acadêmico. É cada vez mais frequente, infelizmente, as tentativas e os suicídios consumados nas universidades, desde os cursos de graduação, até os de pós-graduação. Neste sentido, entendo que não se pode mais naturalizar, encobrir, fingir que não vemos ou que é natural que ocorra no universo acadêmico tantas violências. Sabemos e, ás vezes, somos alvo e/ou testemunhas de abuso nesses ambientes e há ainda um potencial elitista e excludente no ingresso e na manutenção dos discentes nas universidades. Além disso, o ethos neoliberal de produtividade e exigência de máximo desempenho afeta o ambiente acadêmico produzindo cobranças muitas vezes sobre-humanas por publicações e participação em eventos científicos. Muitas vezes, a exigência é desrespeitosa, violenta, abusiva, praticada a luz do dia e tratada como algo natural. No entanto, nada disso pode ser natural ou naturalizado. Pessoas estão literalmente morrendo, escolhendo morrer, por não encontrar saída em um meio potencialmente violento, excludente, abusivo.

Como estamos ainda no mês de setembro, falar sobre esse tema, o tema do suicídio, é fundamental. A campanha setembro amarelo, apesar de atualmente ter adquirido um sentido muitas vezes marketeiro por parte de alguns profissionais, ainda tem objetivo e foco importantes e genuínos: prevenir suicídios, potencializar e oferecer cuidado e escuta para pessoas em sofrimento. Mas precisamos pensar a prevenção do suicídio em todas as frentes: filosófica, social, política, econômica, psicológica etc. Precisamos pensar sobretudo, na seguinte questão: "para que queremos prevenção do suicídio e que condições de vida iremos oferecer para essas pessoas depois que o cuidado em saúde mental for ofertado?"

Essa questão passa e ultrapassa a discussão da saúde mental, como eu afirmei no texto; passa e deve permanecer, por um bom tempo, no horizonte filosófico. Porque prevenir e pensar em suicídio é pensar eticamente sobre as nossas vidas e sobre o modo como queremos viver, individual e coletivamente. Nesta construção o fazer filosófico é potente e entendo que pensar e repensar sentidos de vida, modos de vida, viver ético e cuidado de si são e devem continuar sendo, temas e tarefas presentes no horizonte filosófico.

*Flávia Andrade Almeida é psicóloga clínica e hospitalar. Especialista em Psicologia da Saúde, Psico-oncologia e Prevenção do suicídio. Mestre em Filosofia (PUC-SP) e doutoranda em Psicologia Clínica (USP). Docente, supervisora clínica e autora do livro Suicídio e Medicalização da vida – reflexões a partir de Foucault.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Flávia Andrade. Suicídio e Medicalização da vida – reflexões a partir de Foucault. Curitiba, CRV. 2021.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução: Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro, Edições BestBolso, 2013.