Um projeto insepulto que ressuscita: sobre concepções de universidade e de filosofia
Adriano Correia
Professor da UFG e pesquisador do CNPq
29/10/2020 • Coluna ANPOF
Adriano Correia (UFG)
Na mesa “A filosofia, as humanidades, o conhecimento e a universidade”, da qual participei como mediador no dia 21 de outubro de 2020, no Ciclo de Debates preparatório para o XIX Encontro Nacional de Filosofia da Anpof, teci um comentário a partir de uma fala da Profa. Fernanda Sobral (Vice-presidente da SBPC) que gostaria de aprofundar aqui.
Na ocasião observei que o aparente caos nas ações do governo federal e especialmente da CAPES no que diz respeito à política para a pós-graduação, que se traduz abertamente como uma perseguição às áreas das humanidades, revelava o objetivo de fragilizar o processo de interiorização da pós-graduação. Ficou claro que o maior efeito de portarias como a 34 da Capes, que redistribuiu as bolsas dos programas – mais que prejudicar as humanidades, o que ocorreu em medida significativa – foi atingir muito mais fortemente os programas com notas 3 e 4, principalmente os situados no Norte e no Nordeste, mas não apenas. Passada a ruidosa desqualificação das pesquisas nas áreas de humanidades, o que restou foi uma concentração maior de bolsas na região Sudeste 1 . Isto foi reiterado no edital de redistribuição de bolsas promovido pelo CNPq.
Concluí meu breve comentário perguntando aos participantes da mesa se não lhes parecia que estaríamos diante do ressurgimento insidioso de um antigo projeto, sumarizado, nas palavras que empreguei em minha fala, “na ideia de que temos de ter centros de excelência, onde se produz pesquisa e conhecimento, e formação de ponta, e, nas periferias do Brasil, formação de mão de obra para os interesses locais, com alguns sobreviventes que vão ser aproveitados por esses centros de excelência”. Mas que projeto é esse?
Em 1997, em uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o então ministro da educação, Paulo Renato Souza, afirmou que o governo pretendia “liberalizar a criação de novos cursos universitários e a abertura de mais vagas na graduação de instituições privadas” e que se criou “um mito com o nome universidade no Brasil” 2 . Estas duas afirmações deixam entrever uma direção bastante clara do projeto: a expansão da população universitária pela ampliação da rede privada, da criação de centros universitários e da conversão de instituições de ensino sem pesquisa ou extensão em universidades.
Foi precisamente este aspecto do projeto que fez com que José Arthur Gianotti, professor de filosofia da USP, renunciasse em agosto de 1997 à posição que então ocupava no Conselho Nacional de Educação desde 1996, devido à transformação da Faculdade Anhembi Morumbi, uma instituição sem “produção acadêmica institucionalizada” 3 , em universidade. Nos anos seguintes, uma infinidade de instituições privadas surgiu, várias faculdades se tornaram centros universitários e numerosas outras se converteram em universidades. Enquanto isto as universidades federais padeciam de uma gigantesca escassez de recursos e interdições para a renovação do quadro de professores, mesmo a substituição de professores aposentados, o que culminou na greve que perdurou de meados de 2001 até o primeiro trimestre de 2002.
Há, todavia, uma outra direção clara do “projeto” que era menos controversa entre os mandatários de então, à qual já aludi. Tratava-se da convicção de que os cursos das regiões mais ricas do Brasil, em geral mais antigos, deveriam receber investimentos especiais para se tornarem “centros de excelência”, escolas pequenas e de elite que então formariam e produziriam em um padrão de qualidade que operaria como diapasão do que deve ser feito e do que deve ser fomentado com editais e bolsas de produtividade em pesquisa, bolsas de mestrado e doutorado etc. Nesta perspectiva se compreendia que a expansão da universidade em todos os seus níveis de formação para todas as partes do país consistiria em uma violação da própria ideia de universidade, pela confusão da produção e da formação de elite com inclusão social.
A dimensão privatista do projeto não arrefeceu seu ritmo desde os anos 1990, de modo que o que vimos foi inclusive a fragilização das instituições privadas e comunitárias com ensino e pesquisa de qualidade ao sofrerem a concorrência desleal de instituições que tratam tanto os professores quanto os diplomas como mercadorias. A dimensão elitista, todavia, sofreu um enorme revés com a instituição Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), em 2007, que promoveu uma notável ampliação das universidades federais já existentes, a criação de novas em todas as regiões do país, e a aproximação dos Institutos Federais da imagem de universidades tecnológicas, inclusive com fomento à pós-graduação. O Prof. Edward Madureira Brasil (Presidente da ANDIFES), em seu comentário a minha observação, asseverou que talvez o maior legado do REUNI, tão contestado na época, tenha sido o processo de interiorização da pós-graduação no país. Afirmou ainda não ter dúvida de que é muito mais importante para o país programas de filosofia com nota 3 em regiões nas quais não há outra opção de formação que um programa com nota 7 ao lado de outro nota 7 em determinadas regiões do país 4 .
Houve uma grande disseminação de professores doutores por todo o país, de modo que apesar de muitas precariedades, principalmente na instalação de novas universidades, o programa foi responsável pela ampliação exponencial do número de vagas para discentes e docentes e pela capilarização do ensino público universitário por todo o país. Tal processo teve um impacto decisivo na expansão da pós-graduação na área de filosofia, sendo que apenas nos últimos dois anos houve uma ampliação de 20% no número de novos programas.
Julgo que podemos nutrir a legítima expectativa de que os programas que se estabeleceram nos últimos anos, principalmente na última década, assim como os vários novos níveis de doutorado em programas já existentes, contribuirão, como já o fazem, para uma decisiva ampliação da pluralidade de concepções do que é uma pesquisa qualificada na área, assim como para o surgimento de “novas tradições” de formação de excelência que, em intercâmbio a ser fomentado por instituições como a Anpof, certamente contribuirão para enriquecer a cooperação na área entre os programas já consolidados e aqueles em processo de consolidação.
O atual ministro da educação, Milton Ribeiro, reagiu ao último resultado do Enade, que indicou que apenas 1% dos cursos da rede privada atingiram a nota máxima no exame, afirmando que o foco deve ser em qualidade, e não em quantidade. Não há como compreender como farão isto fazendo cortes radicais, como o previsto para 2021, no orçamento das universidades federais, que foram as que se saíram melhor no Enade. Em todo caso, consolidou-se formalmente a posição do estancamento do processo de expansão – que, de resto, já vinha ocorrendo antes do atual governo, ao contrário do que previa o Plano Nacional de Educação.
Uma eventual passagem da contenção da expansão à promoção da redução não nos parece inesperada no contexto do atual governo federal, como parece já indicar portarias da CAPES e do CNPq que prejudicaram profundamente programas regionalmente fundamentais. De modo algum podemos duvidar da hipótese de que o processo de nomeação das coordenações de área que se iniciará ainda em 2021 resulte na indicação – em todas as áreas, incluindo a filosofia – de coordenações que aceitem cooperar com o projeto, como já ocorre presentemente em algumas áreas das humanidades, e realizar ações como: rebaixar e escalonar as notas dos programas de modo a evidenciar os “centros de excelência”; aceitar igualmente o rebaixamento geral da avaliação dos periódicos da área para destacar uns poucos “de excelência”; dificultar a abertura de cursos novos, principalmente periféricos; facilitar o descredenciamento de cursos com nota 3; aceitar regras que impliquem na concentração de recursos em cursos mais antigos e consolidados etc. Não podemos duvidar de modo algum da possibilidade de que também em nossa comunidade nostálgicos de hegemonia e privilégios vejam no atual momento crítico uma ocasião para passar também essa “boiada”.
Julgo que a Anpof deve seguir vigilante e assumir posição inequívoca para que o crescimento e a abertura da área para novos temas, problemas e sotaques não seja tragada por esse projeto redivivo tanto em sua face privatista quanto em sua face elitista, principalmente na fragilização dos programas novos e regionalmente decisivos. Esta reflexão sobre os rumos da nossa área parece-me inadiável e a cooperação entre os programas consolidados e em processo de consolidação será fundamental na conservação da diversidade, da capilaridade e da excelência plural da área.
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2- https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff310801.htm
3- https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/8/31/cotidiano/4.html
4- https://www.youtube.com/watch?v=KkS5S82yu7c&t=297s (a partir 1:47:45).