Uma Agenda para a Filosofia no Brasil - Horizonte de um Projeto Coletivo
Ivan Domingues
UFMG
15/09/2020 • Coluna ANPOF
Profs. Ivan Domingues (UFMG) e Luis Fellipe Garcia(UFMG)
Uma questão que acompanha reflexão filosófica desde os seus primórdios é: o que é a filosofia? Desde a filosofia antiga, quando se contrapunha uma concepção de filosofia ligada à contemplação do ser a uma ideia de filosofia como modo de vida, discute-se em que consiste essa prática à qual consagramos nossas energias intelectuais e vitais. Seja contemplação ou modo de vida, a filosofia é certamente um acontecimento cultural fruto da circulação e diversidade de ideias, como o atesta a sua origem no Mediterrâneo, onde estímulos intelectuais de três continentes transitavam promovendo o encontro de ideias oriundas do oeste asiático, do Egito e da Grécia. Em um mundo como o de hoje, onde pensamentos das mais diferentes origens têm circulado cada vez mais e se mostrado sempre mais presentes no horizonte de produção do saber, a filosofia inicia, por toda parte, um processo pelo qual ela se debruça mais sistematicamente sobre essa realidade intercultural.
O Brasil, apesar de ter se formado a partir de três continentes, ainda tem uma consciência tímida dos potenciais de suas matrizes interculturais e de todos os estímulos filosóficos que delas podem provir. Falta-nos, para tanto, realizar a difícil tarefa de empreendermos a viagem de descoberta de nós mesmos e da realidade que nos cerca. Essa viagem, bem entendido, já se iniciou. Trabalhos como os de Ivan Domingues (um dos autores deste artigo), bem como de Paulo Margutti, precedidos dos estudos de autores como Cruz Costa e Paulo Arantes, evidenciam que começamos a tomar consciência do processo de formação e institucionalização da filosofia entre nós, assim como do percurso intelectual de pensadores marcantes de nosso passado pouco estudado. Somam-se a essas obras os trabalhos de autores que trazem ao primeiro plano a importância de raízes culturais fundamentais da produção do saber entre nós, como a raiz africana, nos trabalhos de Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez e Wanderson Flor do Nascimento, e a raiz ameríndia, nos trabalhos de Marco Antônio Valentim, Eduardo Viveiros de Castro e Davi Kopenawa. O caminho é longo e, como mostram autoras como Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro, há dificuldades estruturais a serem enfrentadas. Se os obstáculos são grandes, a viagem promete um grande aprendizado filosófico.
Nossa intenção ao criar o Grupo de Estudos na UFMG é dar continuidade a essa viagem, no interior da qual propomos nos situar a partir de duas vertentes principais: [V1] uma investigação da chamada filosofia institucional ou institucionalizada, vista como campo de força e de disputa, bem como espaço aberto de experiências e de discussão; [V2] uma exploração das práticas conceituais que, por razões a serem devidamente investigadas, não encontraram eco na filosofia institucionalizada, ainda que manifestem o potencial conceitual do pensamento brasileiro em diversas áreas como a religião, a ciência, a cultura, a arte e a política. Pela primeira, busca-se reconstruir o processo de formação do pensamento filosófico entre nós; pela segunda, busca-se colocar na agenda de discussão as formas silenciadas e marginalizadas da produção do saber, tais como a filosofia africana, as cosmologias ameríndias, o feminismo e a filosofia decolonial.
O esforço a ser levado a cabo pelo Grupo de Estudos consistirá não simplesmente em justapor ou pospor as duas vertentes, mas em entrecruzá-las e buscar as interseções, num duplo movimento: [i] de abrir a chamada filosofia institucionalizada às manifestações extra-acadêmicas da cultura e da produção do saber, e [ii] ao mesmo tempo trazer as manifestações extra-acadêmicas à expressão filosófica acurada e exigente, diversificando a agenda e enriquecendo o debate.
1.1. Primeira Vertente.
A primeira vertente nos conduzirá, como referido, a retomar os legados e a estender as análises dos chamados pensadores do Brasil, finalmente incluindo a filosofia em sua rota, aos tempos atuais e a outras experiências espalhadas pelos quatro cantos do país: especificamente, com foco no ensino superior, desde a implantação das nossas primeiras universidades completas nos anos 1930-1940. Paralelamente, depois de reconhecer os serviços prestados pelo dito paradigma para a compreensão do percurso da institucionalização da filosofia em nosso país, numa relação muitas vezes de mimetismo e de transposição intelectual, até mesmo institucional (caso da USP e da Missão Francesa), iremos perguntar pelo que irá suceder com a filosofia brasileira no curso século XXI: precisamente, agora e no futuro, uma vez consolidada a sua institucionalização nas derradeiras décadas do último século, autorizando-nos a falar de “pós-formação”, na esteira de Marcos Nobre e Silviano Santiago.
Que fique claro: ao colocar o foco no paradigma da formação com ênfase na institucionalização da filosofia brasileira, colocando na linha de frente a história das universidades e dos departamentos de filosofia, uma tal visada levará a ocupar-nos antes de tudo com o ensino da filosofia e sua aprendizagem. Essa relação ensino- aprendizagem permite-nos conceber a filosofia como uma experiência intelectual com mais de um caminho e um sem-número de variantes, levando à necessidade de explorar as relações entre as figuras do professor e do aprendiz, do escritor e de seu público, do intelectual e do seu contexto.
A filosofia e os filósofos são nesse sentido frutos de experiências intelectuais que se articulam num certo aqui e num certo agora e com seus diferentes ethei, como mostra o livro Filosofia no Brasil – Legados e perspectivas. E o que é importante: ao propor uma abordagem heterotópica em que se examinam, junto com as experiências, as cinco figuras de filósofos (na acepção neutra de indivíduos, profissionais ou amadores diletantes que vivem da e para a filosofia) que dominaram a cena brasileira desde o Brasil colônia e que, por meio de seus trabalhos, conscientemente exprimiram e, muitas vezes, inconscientemente manifestaram o contexto no interior do qual desenvolveram suas reflexões filosóficas.
A partir de um aprofundamento dessa reflexão sobre as relações entre a filosofia, os filósofos e seu contexto buscaremos investigar igualmente os silenciamentos, as marginalizações e as distorções a que a filosofia acadêmica pode dar lugar ou levar a cabo, o que nos conduz à segunda vertente.
1.2. Segunda Vertente
A segunda vertente nos conduzirá a explorar os silêncios e silenciamentos institucionais que fizeram com que das três grandes matrizes da formação do Brasil (lusos/europeus, ameríndios e africanos) apenas a primeira lograsse consolidar suas práticas conceituais como filosofia institucionalizada, fazendo com que tenhamos a divisão entre filosofia europeia e pensamento brasileiro, ou ainda, entre filosofia luso-brasileira e pensamento afro-brasileiro / ameríndio. O objetivo aqui é trazer ao primeiro plano o contexto das formações institucionais em sua relação com o novo ambiente, a fim de iluminar tanto o modo como as instituições agem sobre os locais quanto o modo como estes ou seus segmentos agem, ou são impedidos de agir, sobre elas. Para tanto,propomos adotar, de modo estratégico, o instrumento das matrizes de formação do povo brasileiro.
No que diz respeito à matriz afro-brasileira, três conceitos irão nos interessar em particular: os conceitos de pan-africanismo de Abdias do Nascimento e de amefricanidade de Lélia Gonzalez, que nos permitem problematizar a relação entre o europeu e o africano na formação do povo brasileiro; assim como o conceito de lugar de fala de Djamila Ribeiro, o qual ilumina aspectos problemáticos do diálogo entre as matrizes, evidenciando, num sentido mais amplo, a necessidade de considerar os vieses, os tensionamentos e as interseccionalidades dos agrupamentos sociais. No que diz respeito à matriz ameríndia, um primeiro movimento que vai nos interessar é a Antropofagia, enquanto tentativa de repensar o confronto de mundos (europeus x locais). Tal movimento apresenta uma proposta de reavaliação da relação entre conceito e contexto, a qual, como mostra Eduardo Viveiros de Castro em suas Metafísicas Canibais, conduz a uma problematização da noção de “tradução” como instrumento para abordar as relações entre nossas matrizes. A exploração do conceito de Antropofagia abrirá o horizonte para um estudo da obra A Queda do Céu do ianomâmi Davi Kopenawa, a fim de repensarmos a relação conflituosa entre as matrizes europeia e ameríndia no processo de formação do aqui e do agora no qual os nossos conceitos se articulam.
Em diálogo com a primeira vertente de nosso grupo de estudos, o objetivo aqui será compreender o contexto no qual as práticas institucionais de produção do saber se constituem e o modo como ela abre, ou eventualmente fecha, um espaço de diálogo no interior do qual todos teriam a ganhar, resultando em um contexto ainda pouco refletido e em uma filosofia ainda embrionária.
Ao levar essa agenda da pesquisa para a comunidade filosófica abrigada pela ANPOF, nossa expectativa é abrir um espaço de discussão com os colegas e estudantes de outros centros do país interessados na situação atual e no futuro da filosofia brasileira – e isto num momento em que o projeto das humanidades e da filosofia está tão atacado e diminuído, disseminando a descrença e o pessimismo, e ao mesmo tempo evidenciando, nessa crise profunda de anomia que nos atinge em todos os setores da vida nacional, a urgência de elas relançarem as suas agendas e as suas propostas para nos relocalizarmos e repensarmos o nosso projeto de nação.