Uma lição axiológica da democracia deliberativa

Manuel Cochole Paulo Gomane

Doutorando (UFBA) e Professor Assistente (Universidade Save/Moçambique)

04/09/2023 • Coluna ANPOF

O presente texto pretende de forma introdutória analisar três questões no campo da Democracia Deliberativa, a saber: (i) democracia como espaço de escolhas que produzem um viver harmonioso dentro da diversidade – felicidade; (ii) o contrato cultural como símbolo de tolerância política- o que devemos moralmente uns aos outros; (iii) as lições do ubuntu para um cenário de conflito pós-eleitoral – a noção do perdão.   

1. A atividade política profissional pressupõe um modelo de democracia que conceba a ação política como um espaço de circulação de conhecimento e informação para transformação, estou falando da dimensão social da atividade política.  A democracia, como conceito também pressupõe analiticamente pronomes pessoais e convivência deles entre si - atos de fala. Ela, a democracia, envolve diversos desdobramentos, desde os campos da epistemologia, da cultura, da ética, da linguística, entre outras disciplinas que tornam o discurso político uma batalha hermética, vulgarmente denominada por narrativas.  A narrativa, atualmente no contexto político, para além de ser uma ação de expor argumentos baseados em factos, ela se tornou um veículo de expor situações imaginárias ideológicos de ambos os lados na mídia (formal e informal), como uma forma de alimentar “bolhas epistêmicas”. “Uma bolha epistêmica é quando você não ouve as pessoas do outro lado. Uma câmara de eco é o que acontece quando você não confia nas pessoas do outro lado”, (NGUYEN, 2018).

A reflexão sobre a política é sempre [uma] reflexão sobre a natureza humana, sobre as “modalidades reais de conexão de indivíduos” (TUNHAS, 2012).  A Democracia, na “esfera pública”, é um “Espaço de razões”, e, quando a razão está na razoabilidade e irracionalidade podemos falar de uma democracia intolerante, de bolhas. Segundo Lynch (2021), o espaço de razões na esfera pública no contexto das democracias deveria ser um espaço de razões argumentativas pautadas pela tolerância mútua. Pois, a política democrática não é guerra por outros meios. Em uma democracia liberal que funcione adequadamente, a deliberação mútua ocorre por meio eticamente saudável na troca de razões públicas – razões que podem ser avaliadas pelo ponto de vista comum (idem). A democracia deliberativa diz respeito às várias formas de democracia, em que as pessoas se juntam para propor ideias e debates em torno delas, analisam os prós e contras, ouvem se umas às outras e criticam as ideias umas das outras com uma mente aberta, (BRENNAN, 2020). 

Quando estas condições de possibilidade – nomeadamente, as dimensões ética, cultural e epistêmica da democracia - não estão presentes, dificilmente, uma sociedade democrática encontrará ou buscara “a felicidade” como bem comum. O propósito do discurso político – a Palavra do Outro- deve se espelhar no modelo distributivo da justiça social ao nível dos bens comuns e compartilháveis socialmente (material ou simbólico). Neste sentido, podemos pressupor, por exemplo, o direito a informações credíveis por parte da população (o povo) como um “bem epistêmico”; ademais, é respeitável considerar que o resultado de um discurso político deve ter em conta a dimensão axiológica e cultural do “discurso político em si”, como forma de gerar um conhecimento saudável no tecido social de modo a reforçar cotidianamente o contrato social e cultural – buscando a felicidade. 

No que diz respeito a noção de felicidade, Aristóteles (1991) afirma que “embora a felicidade seja divina e é obtida através da virtude e de um certo regime de treino e aprendizagem”, o bem da polis deriva e é consequência das ações dos indivíduos, dos cidadãos virtuosos (em comum). As sociedades tradicionais pré-modernas, tinham o seu ethos bem firme, que lhes permitia conservar uma moral tradicional de natureza racional; sem o ethos essa sociedade não se reconhece, perdem o seu ser como agente moral, o reencontro só é possível mediante o retorno da moral tradicional de natureza racional (cf. MACINTYRE, 2001). Para encontrarmos a felicidade dentro da diversidade, é preciso entender que as diferentes formas institucionais que a democracia liberal teve são a história das respostas (históricas e sociais) que os diferentes países (culturas) deram ao problema da democracia quando confrontados com ele num momento da sua história (NGOENHA, 2016). 

As recentes eleições presidenciais no brasil (2022) retratam um momento atípico da história da democracia no brasil. De tal modo que, deixaram como herança diversos conflitos (narrativas, crises, depravação da coisa pública, normalização do baixo nível no discurso público, normalização do pudor na linguagem nos órgãos deliberativo em nome da imunidade parlamentar – ao exemplo do Senado e da Câmara dos Deputados, entre outras formas); o que se resume no que a literatura que aborda acerca dos processos eleitorais denomina por “conflito pós-eleitoral”. 

O conflito pós-eleitoral se resume no facto em que uma das partes envolvidas nas eleições não reconhece publicamente o resultado eleitoral. Este facto, rompe com o espírito democrático (dimensão axiológica da democracia), estou falando da postura política recente em alguns modelos contemporâneos da democracia (para além do Brasil, Moçambique e EUA são exemplos recentes); o não reconhecimento público dos resultados eleitorais cria um rompimento no tecido social, a guerra, a polarização política são alguns dos resquícios visíveis da rotura do tecido social e da falta de tolerância na convivência política entre os políticos e entre os cidadãos.  Que lições o Brasil pode buscar de outros quadrantes? No caso particular, que lições o modelo ubuntu pode oferecer ao contexto atual da democracia brasileira?

2.  O contrato cultural é a condição de possiblidade moderadora entre a inegociabilidade da condição jurídica democrática (constituição) e a dimensão ética da convivência entre os homens dentro da democracia (tolerância). Neste sentido, a dimensão axiológica da democracia impõe, de uma maneira apodítica e não negociável, a igualdade entre os cidadãos e respeito pela dignidade das pessoas e o respeito pelos direitos do homem, a igualdade entre os cidadãos e o respeito pela dignidade das pessoas (NGOENHA, 2016). 

Com a cultura trocamos bens simbólicos e não simbólicos, na cultura convivemos ética e moralmente guiados pelas normas prescritas e não prescritas, devemos respeito uns aos outros e respeito a nossa consciência moral. Com a cultura, percebemos que não vivemos eticamente sós. Com a cultura vivemos o ponto alto da nossa civilidade como humanos e encontramos o ponto mais alto do “contrato social”, que é o “contrato cultural”.  Ademais, em cenário de eleições, a noção de cultura ou pertença identitária, deve ser a bandeira do reconhecimento da nossa diversidade e da paz, estiada no lugar mais alto possível do nosso coração como chamamento da necessidade de vivermos sempre em alerta e sobre o primado da tolerância e reconciliação.   A minha proposta ou lição, é de que, o modelo ubuntu de justiça social baseado no contrato cultural e não apenas no tecnicismo jurídico deve ser uma luz para o Brasil pós-eleitoral; estou falando do exemplo da “Comissão da Verdade e Reconciliação na África do Sul”, é uma lição que o Brasil pode buscar como exemplo no cenário político atual.

3. O que é o Ubuntu? Segundo Ngomane (2022), o conceito de ubuntu é encontrado em quase todos os idiomas bantos africanos. Ele compartilha suas raízes com a palavra bantu – que significa “pessoas’ – e quase sempre denota a importância da comunidade e da conexão. A ideia de ubuntu é melhor representado nos idiomas xhosa e zulo pelo provérbio bantu umuntu, ngumuntu, ngabantu, que significa “uma pessoa só é pessoa por meio de outras pessoas”.  

Ubuntu consiste em duas palavras numa só. O prefixo ubu- e a raiz ntu-. Ubu invoca a ideia do ser, no geral. Este conceito ético enfatiza as alianças entre as pessoas e as relações entre estas. Trata-se de uma categoria epistémica e ontológica fundamental do pensamento africano dos grupos que falam a língua Bantu, (RAMOSE 1999).  Contudo, o ubuntu não pode ser confundido com gentileza. Gentileza é algo que podemos tentar demostrar de um modo melhor, mas o ubuntu é algo muito mais profundo, (NGOMANE, 2022). 

A filosofia ubuntu como modelo e prática comunitária, dimensão ética jurídica, teve a sua maior visibilidade em 1994 na África do Sul pós-apartheid com a criação da Comissão da Verdade e Reconciliação (Truth end Reconciliation Commission, TRC), sub proposta de Nelson Mandela e Desmond Tuto, tinha como objetivo administrar a justiça restaurativa – como um tribunal – e era vista como melhor maneira de levar o país adiante e começar a curar as feridas do apartheid, (ibidem, 53). Estou falando de um modelo de pacificação que foi fundamental na pacificação de uma república da África do Sul que viveu um conflito pós-apartheid, e que, pode ser uma lição para um Brasil pós-eleitoral. A questão é, reconhecer primeiro os atos falhos em ambos os lados (tolerância e recopilação). Este foi o modelo de justiça baseado numa ética ubuntu que fica como lição para um brasil melhor. 

Bibliografia 

ARISTÓTELES. ÉTICA A NICÔMACO. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. 4. ed.; Editara Nova Cultural: São Paulo: 1991.

BERTEN, André (2021, pg. 129). Racionalização do mundo da vida e democracia deliberativa. Em:  FILHO, Waldomiro, J. Silva. PORQUE A FILOSOFIA INTERESSA À DEMOCRACIA. Págs. 125-150.   

BRENNAN, J. (2016). Against democracy. New Jersey: Princeton University Press. BRENNAN, J. e HILL, L. (2014). Compulsory Voting: For and Against. New York: Cambridge University Press. CASSAM, Q. (2019) Vices of the Mind: From the Intellectual to the Political. Oxford. 

BRENNAN, Jason. CONTRA A DEMOCRACIA. Trad. Elisabete Lucas. 3 ed, Lisboa: Editora Gradiva, 2020.

MACINTYRE, Alasdair. “DEPOIS DA VIRTUDE: UM ESTUDO EM TEORIA MORAL”. 2ª Edição, Ed. EDUSC, SP-Brasil_2001. 

NGOENHA, Severino. OS TEMPOS DA FILOSOFIA. Imprensa Universitária, Maputo, 2016.

NGOMANE, Mungi.  UBUNTU TODOS OS DIAS: Eu sou porque nós somos. Tradução de Sandra Martha Dolinsky. 1º edição, Editora BestSeller. Rio de Janeiro, 2022. 

NGUYEN, C Thi “ESCAPE THE ECHO CHAMBER”. Date Published By AEON, 9 April 2018. Em: https://aeon.co/essays/why-its-as-hard-to-escape-an-echo-chamber-as-it-is-to-flee-a-cult

RAMOSE, Mogobe B. (1999). GLOBALIZAÇÃO E O UBUNTU. In: Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses. Epistemologias do Sul. Edições Almedina, Coimbra – Portugal, 2009.

TUNHAS, Paulo O PENSAMENTO E OS SEUS OBJECTOS. Maneiras de pensar e Sistemas filosóficos, MLAG Discussion Papers, Vol.5, Edições da Universidade do Porto, Porto, 2012. (Págs. 465- 466)