Uma reflexão acerca da tecnificação da existência em Hannah Arendt
Lara Emanuele da Luz
Doutora em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR
18/03/2025 • Coluna ANPOF
A emergência de se pensar sobre a tecnologia, a partir da teórica política Hannah Arendt, já é sublinhada na introdução da obra A Condição Humana, texto em que ela apresenta quem é o ser humano de ação, ou seja, aquele político por excelência. Para ela, o ser humano é constituído de vida contemplativa, composta pelas atividades do pensar, querer e julgar, e pela vida ativa, composta pelas atividades do trabalho, obra e ação.
Logo no prólogo da referida obra, Arendt ressalta que a mais elevada atividade de que o ser humano é capaz é a atividade do pensar, que serve de base para que se possa compreender “o que estamos fazendo”. (ARENDT, 2010, p. 6). Compreender é o grande foco do desenvolvimento teórico arendtiano, após ter vivenciado o período do nazismo. Ou seja, o horror se fez presente na vida da autora. A guerra, os campos de concentração, as atrocidades que a ciência cometia nos campos a fim de “estudar” o ser humano, etc.
Diante de tantos marcos, tantos eventos e tantos horrores, Arendt compreende que há algo “diferente”, literalmente uma “novidade”, que surge diante da Segunda Guerra, e isso deve caracterizar algum período histórico diverso daquele vigente. Logo, a era moderna, tem seu início com um instrumento. Instrumento este que, aparentemente, era quase inútil por não ter uma utilidade prática tão decisiva quanto qualquer outro, como o martelo, por exemplo. Tal instrumento era o telescópio. Ele revoluciona o pensamento de uma época e muda os paradigmas da ciência. Se antes acreditava-se, com Ptolomeu, que a Terra era o centro de tudo e o Sol girava ao seu redor (modelo geocêntrico), com a criação da luneta (que após aperfeiçoada, torna-se telescópio), pode-se observar que a Terra é móvel, e o Sol é que se torna o centro de tudo (modelo heliocêntrico).
Isso significa dizer que houve uma mudança de paradigma gigantesca, ocorrida e comprovada unicamente por meio de um instrumento científico – o telescópio. Há então um apequenamento do globo: o novo instrumento – o telescópio - era inútil, “a não ser para olhar as estrelas, embora fosse o primeiro instrumento puramente científico já concebido”. (ARENDT, 2010, p. 311). Apesar de o mundo moderno em que indivíduos vivem hoje ser diverso da era moderna, ele se origina dela mesma. Todavia, “não é de modo algum idêntico ao mundo da era moderna” (ARENDT, 2010, p. 311). O mundo moderno, por outro lado, teria nascido com as primeiras explosões atômicas.
Com isso, Arendt quer dizer que o ser humano já não possuía mais domínio sobre suas criações. Se o ser humano era entendido como um ser constituído de vida contemplativa, composta pelas atividades do pensar, querer e julgar, e pela vida ativa, composta pelas atividades do trabalho, obra e ação, o tornando político por excelência, no mundo moderno isso muda. Antes a ação correspondia a atividade política por excelência, que deveria ser exercida na praça pública e diante de uma pluralidade de pessoas. Já a obra, correspondia ao homo faber, e tratava da relação positiva que o ser humano estabelecia com o mundo. E a atividade do labor, correspondente ao animal laborans, permitia que ele fosse cuidador de seu próprio metabolismo. No mundo moderno ocorre um predomínio do animal laborans sobre o ser humano de ação, e uma mescla do homo faber com o animal laborans, na medida em que o indivíduo passa a fazer parte da própria tecnologia.
Isso ocorre porque considera-se o “processo de tecnificação como [...] o potencial portador da pura e simples destruição física”. (ARENDT, A Europa e a bomba atômica. In: ARENDT, 2008, p. 435). O desencadeamento de forças naturais ocasionou uma “perca de controle” por parte dos seres humanos. A técnica e a tecnologia não são mais formas de aperfeiçoamento que podem ser utilizadas em prol do próprio indivíduo, mas sim, o desenvolvimento tecnológico acarretou em algo que pode “destruir toda a vida na face da Terra e, talvez, a própria Terra”. (ARENDT, A Europa e a bomba atômica. In: ARENDT, 2008, p. 435). O marco central do mundo moderno, como já citado, foi exatamente o advento da bomba atômica - porque é com tal criação, fruto do desenvolvimento da era moderna, e criado pelo próprio ser humano -, que pode acabar com a própria vida do indivíduo, com a vida daqueles que habitam com ele, e com o próprio mundo.
A emergência de se compreender o que está acontecendo, atinge seu pico justamente durante o regime totalitário nazista, porque o animal laborans vem à tona no mundo público, ou seja, a única capacidade de se fazer política, pertencente ao ser humano de ação, é “superada” pelo animal laborans. Isso significa dizer: tudo é possível. Não há mais política. “O animal laborans é admitido no mundo público” (ARENDT, 2010, p. 166). Portanto, uma tirania que dominasse meros trabalhadores, “’seria automaticamente um domínio de homens solitários, não apenas isolados, e tenderia a ser totalitária”. (ARENDT, 1989, p. 527). Ou seja, seres que são sós não só no âmbito político, como na própria vida. Um regime totalitário nazista, que domina sobre meros animais laborantes, é mais eficiente, porque lida com a massa, justamente porque, como a própria Arendt diz: “pensar é perigoso, e não pensar é mais perigoso ainda”. Isto acaba por destruir não só a vida pública, mas também a vida privada, isentando qualquer capacidade que restasse aos seres humanos, para fazer política.
Arendt sublinha a emergência de uma reflexão acerca da tecnologia em suas diversas dimensões, sobretudo, no mundo em que vivemos. Um exemplo do uso da tecnologia para fins horrendos foram as câmaras de gás. Portanto, se se mata meros animais laborantes, ou então, como afirma Agamben, meras vidas nuas, não se entra no valor moral de suas ações, não as reconhece como pessoas dignas de vida. Elas são meras vidas matáveis, em que não é necessária a justificação de sua morte, haja vista que não há direitos políticos para meros trabalhadores, cuidadores de seu próprio metabolismo, engendrados na técnica e tecnologia.
Agamben ainda alega o seguinte: “O nazismo fará da vida nua do homo sacer, determinada clave biológica e eugenética, o local de uma decisão incessante sobre o valor e o desvalor” (AGAMBEN, 2014, p. 149). Assim, têm-se os indivíduos ideais, que servem como meros instrumentos de um regime “político” a fim de serem sujeitados e dominados, não apenas por meio de estratégias políticas, mas por dispositivos tecnológicos capazes de tecnificarem, ou até mesmo dizimarem, sua existência.
Há então uma emergência em se pensar a tecnologia, as consequências das ações humanas, e a sujeição do animal laborans aos dispositivos tecnológicos que o rodeiam e o sujeitam. Neste sentido, a técnica é compreendida como algo positivo, no sentido de estabelecer uma relação de edificação com o mundo, a partir da perspectiva arendtiana, correspondente ao homo faber.
Por outro lado, a tecnologia não seria positiva, e pode ser entendida de duas maneiras: (1) como produtora de objetos materiais perigosos, tal como a bomba atômica, e (2) enquanto estratégia de poder, que sujeita os indivíduos, sendo imposta aos meros trabalhadores, trazendo à tona o animal laborans ao invés do ser humano de ação, os colocando em uma lógica de produção e consumo incessantes.
Isto, portanto, seria a tecnificação da existência [Technisierung des Daseins], termo cunhado pela autora em 1954, no Denktagebuch, para se referir à tecnologia, e dizer que a ciência foi o que possibilitou a tecnificação da existência por meio de seu desenvolvimento técnico. Tal termo ela não define, mas é possível interpretar como domínio da tecnologia sobre o sujeito, provocando assim o fim da política. Ou ainda, a tecnificação pode ser entendida como a vivência do indivíduo em uma sociedade de controle – uma vez que os subjetiva através das tecnologias, direcionando-se à economização e biologização do animal laborans, para que este se torne um corpo produtivo e útil na sociedade.
Referências
AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
ARENDT, H. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rev. técnica Adriano Correia. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
ARENDT, H. Compreender: formação, exílio, totalitarismo. Org. Jerome Kohn. Trad. Denise Bottmann. Belo Horizonte: Editora UFMG / Companhia das Letras, 2008.
ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.