Vini Jr e o "problema" do racismo | Especial Novembro Negro

Silvana Souza Ramos

Professora (USP)

Diogo Francisco de Oliveira

Mestrando em Ética e Filosofia Política na USP

11/11/2024 • Coluna ANPOF

GT Raça, Gênero e Classe

Pode a pessoa negra se indignar? Na última semana, Vini Jr, atacante do Real Madrid e vencedor da Champions League, decidiu boicotar a cerimônia de entrega do prêmio Bola de Ouro, evento criado pela revista France Footbal há quase 70 anos, por não concordar com os critérios de avaliação para escolher o vencedor da honraria. Após uma temporada em que acumulou 24 gols e 11 assistências decisivas para a conquista da Liga dos Campeões e do Campeonato Espanhol, o favorito ficou com o 2º lugar na lista dos 10 melhores jogadores do mundo.

Nada surpreendente na decisão do júri de jornalistas que escolheu outro jogador para ser o grande premiado. Independentemente do campo de atividade, cedo ou tarde profissionais negros esbarram com as palavras de Frantz Fanon: aonde quer que ele vá, um preto continua sendo um preto[1]. É possível substituir o nome negro por outro, assim como W.E.B Du Bois fez em 1903 quando proferiu a pergunta que poucos teriam coragem de fazer: qual a sensação de ser o problema? A que ele respondeu: "Ser um problema é uma experiência estranha - peculiar mesmo para mim, que nunca fui outra coisa"[2].

Sem encontrar respostas definitivas para a pergunta de Du Bois, podemos conjurar outras questões correlatas: O que significa ser o “problema” dentro dessa grande "filial da sucursal do inferno colonial"[3], segundo o eloquente verso da poeta brasiliense, Tatiana Nascimento? O que cabe ao “problema” neste corpo político democrático sempre-já despedaçado?

Romper tratados | Trair os ritos

Para o chefe da Bola de Ouro France Football, Vicent García, e para alguns jornalistas, como o brasileiro Tiago Leifert, o “problema”, no caso do resultado inesperado da premiação patrocinada pela FIFA, se resume à reação de Vini Jr e do Real Madrid, pouco importando o real motivo do protesto do jogador brasileiro. Para Leifert, o boicote representou uma dupla derrota, técnica e moral. Para ele, a melhor opção seria "ter ido lá, peito estufado, olhando nos olhos dos jornalistas que votaram. Se você tivesse ido, você teria sido o campeão moral”.

A opinião do jornalista brasileiro é irrelevante, mas a lógica que a sustenta merece ser analisada porque marca, em maior ou menor grau, certa abordagem do racismo e do antirracismo. Primeiro, é preciso lembrar outra lição de Fanon. Parece que o negro está destinado a desmantelar sistemas e a violar tratados caros à civilização branca. Mas será que vale a pena seguir os ritos que sustentam uma arquitetura jurídico-econômica construída a partir da expropriação de certos corpos? Em outros termos, precisamos pensar por que não faz sentido algum dar ao “problema” a tarefa de empreender uma disputa moral e mortal com seu algoz. Para Vini Jr, ir ao festim dando a impressão de que de fato estaria incluído no grupo dos premiáveis pela FIFA não ensinaria nada ao júri que escolheu o vencedor, apenas serviria para limpar a barra daqueles que sequer reconhecem a gravidade do “problema”.

Ainda há uma segunda dimensão envolvida aí, aquela de certa economia libidinal que deposita sua esperança de conquista de liberdade pelo subalterno nas organizações e instituições postas, e, por consequência, crê no potencial emancipatório da gramática liberal vigente. Ao solicitar a outra face do subalterno, exigindo que ele se exponha em uma situação vexatória e injusta, condição para a sua vitória moral diante da atitude racista daqueles que têm poder para laurear o melhor da temporada, essa esperança reitera a crença no protagonismo imaginário que essas instituições teriam na luta antirracista. Esperança de que o fim do racismo seria possível dentro deste corpo político guiado pela exploração no Estado-Capital-Colonial.

Ora, talvez Beatriz Nascimento estivesse certa, talvez a força (a nossa força) esteja na "contaminação das estruturas de poder", muito mais do que em buscar uma "vitória moral" ou em contrapor à história dos vencedores a história dos vencidos. Até porque, segundo ela, é preciso se dar conta de que ainda não fomos vencidos. Sem esperança, talvez fique mais fácil abrir caminhos para a indignação, para o potencial radical abrigado pela negridade[4] que, segundo Denise Ferreira da Silva, consiste na capacidade de romper (mesmo que por um instante) o véu da transparência daqueles que não possuem raça, pois racializados (ou identitários) são os outros. Trata-se de romper, portanto, o véu daqueles que dirigem o dedo em riste para o corpo negro, exigindo que enfrente e até eduque aqueles que o agridem.

Vini Jr é um jogador extremamente talentoso, embora sua postura diante do racismo que enfrenta diariamente, tanto dentro quanto fora de campo, seja aquilo que mais chama a atenção do público. Ele não se cala quando passa por situações de racismo, tendo a coragem de arcar com as consequências dessa atitude. Coerente, o jogador deu as costas para a festa da qual estava de certo modo excluído, e fez de sua ausência o elemento mais presente da premiação. Deixou a branquitude falando sozinha, exposta ao ridículo, ao mesmo tempo em que deu seu recado. Mesmo sendo o melhor, mesmo tendo alcançado o mérito necessário, ele nunca será o convidado protagonista dessa festa; ele está destinado a ser e a aparecer como “problema”. E isso está longe de se resumir a uma questão meramente moral. 


Referências

DU BOIS, W.E.B. As Almas do Povo Negro. Trad. Alexandre Boide. São Paulo: Editora Veneta, 2021.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas, Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

FERREIRA DA SILVA, Denise. A Dívida Impagável. Tradução: Amilcar Packer e Pedro Daher. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019.

NASCIMENTO, Beatriz. Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidade nos dias de destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos de África, 2018.

NASCIMENTO, Tatiana. Lundu. Brasília: Padê Editorial, 2017.


Notas

[1] Fanon, 2008, p. 149.

[2] Du Bois, 2021, p. 199

[3] No poema “diz/faço qualquer trabalho, y m/eu amor de volta todo dia" (2017), da poeta Tatiana Nascimento.

[4] Ferreira da Silva, 2019, p. 93