Violência religiosa

Érico Andrade

Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco

09/07/2024 • Coluna ANPOF

Texto publicado originalmente na Folha de São Paulo, no dia 7 de julho de 2024.
 

Os modos mais comuns de coerção são normalmente associados ao uso da força física. Uma arma apontada para a nossa face nos faz seguir uma ordem. Essa forma inquestionável de violência não pode obliterar que outras modalidades têm uma força análoga e que podem persistir durante muito tempo. Por exemplo, a violência psíquica tem poder de se estender para além de um momento específico. Assim, se para a violência física é preciso a manutenção de um poder coercitivo na forma de uma ação concreta contra uma pessoa, na violência psíquica são as crenças que impõem uma coerção letal.

O fundamentalismo religioso no Brasil de matriz cristã opera na promoção, divulgação e premiação da violência psíquica com a anuência grave do Estado Brasileiro. As pautas mais evidentes de criminalização do aborto e a condenação da vida das mulheres se enquadram num arsenal mais vasto de modalidades opressivas cujo estrago nas subjetividades jovens é enorme. Muitas vezes os cultos e as homilias disseminam a ideia de que certas existências são aberrações que devem ser enfrentadas para que Jesus prevaleça. Desse modo, as pessoas com orientação sexual divergente da heteronormatividade, as pessoas ligadas às religiões de matriz africana são todas a encarnação do que deve ser morto. É como se o “mal” tivesse uma forma material que deve ser combatida e exterminada. É mais fácil matar uma pessoa de carne e osso do que uma abstração.

Por isso, na clínica psicanalítica com filhos(as) de pessoas fundamentalista se nota que mesmo quando eles conseguem algum grau de abertura para experimentar novas formas de existir, permanecem presos à fantasia da punição e de que serão castigados. Diferentemente de uma arma apontada, o ódio que o fundamentalismo religioso tem pregado livremente, incide diretamente nas subjetividades jovens de um modo quase irreversível. Pais e mães que se autorizam a dizer, pela legitimidade que os líderes religiosos lhes conferem, que é melhor um filho morto do que um filho de santo ou gay ou ainda pais e mães que deserdam filhos e filhas porque não seguem os preceitos da igreja demonstram que esse fundamentalismo é o verdadeiro atestado de morte da família.

Dilacerar, desfazer laços afetivos em nome da religião é a forma pela qual o fundamentalismo vem destruindo as famílias, opondo pais e mães aos filhos e filhas, e adoecendo jovens que são obrigados a conviverem com a culpa por serem simplesmente o que são. É preciso nomear a violência do fundamentalismo e estabelecer formas de contenção do discurso do ódio para que as famílias possam ser um lar de acolhimento e não uma fogueira que quando não sufoca com a pregação ininterrupta queima com a deserção de filhos e filhas.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

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