A Filosofia e sua história têm um importante papel a desenvolver na educação

Nádia Junqueira Ribeiro

Doutora em Filosofia (Unicamp) e assessora de comunicação/Anpof

Katarina Peixoto

Pesquisadora de pós-doutorado na Universidade da Virgínia (UVA) e no Departamento de Filosofia (USP)

24/06/2019 • Entrevistas

Mundialmente conhecida pelo resgate do trabalho da filósofa Elisabeth de Bohemia, Lisa Shapiro é uma das pesquisadoras que abriu o caminho para pesquisas sobre filósofas invisibilizadas na fixação patriarcal do cânone. Tradutora das Correspondências da Princesa Elisabeth de Bohemia e René Descartes (Chicago, 2007), Shapiro é professora de Filosofia e diretora associada na Universidade Simon Fraser, dos Estados Unidos. Ela, que estará pela primeira vez no Brasil em junho, é uma das referências mundiais na discussão sobre novas narrativas na história da filosofia, métodos de investigação e no estudo do papel das emoções e paixões na filosofia do século XVII.

Shapiro, uma das principais palestrantes da I Conferência Internacional de Mulheres na Filosofia (que aconteceu na Uerj entre os dias 17 e 20 de junho – https://mulheresfilosofiamoderna.wordpress.com/), fala nesta entrevista sobre as dificuldades que enfrentou quando começou este trabalho, há mais de vinte anos. Ela também comenta como hoje em dia há um grande corpo acadêmico constituído e envolvido neste trabalho de reescrever o cânone, incluindo as filósofas. A professora compartilha, nesta entrevista, a experiência que vive hoje nos projetos dos quais faz parte, no Canadá e nos Estados Unidos, e a importância de tradução dos trabalhos destas filósofas para que sejam inseridas em cursos e currículos da filosofia. Atenta às discussões de nossos tempos, Shapiro defende como o ensino sobre as mulheres na história da filosofia pode ajudar a informar discussões contemporâneas. Para ela, a filosofia tem um importante papel no desenvolvimento da educação e do pensamento autônomo.

Você tem um trabalho de renome sobre o resgate da filósofa Elisabeth de Bohemia no mundo de língua inglesa, assim como no estudo da configuração dos cânones e novas narrativas na história da filosofia. Seu trabalho é um dos pioneiros em chamar atenção para a importância filosófica, conceitual e histórica da recuperação de figuras apagadas da história ou desconhecidas pelo que é convencionalmente chamado de cânone ou repertório autoral da história da filosofia. Como você avalia o estado da arte da literatura, mais de dez anos depois do início de suas publicações sobre Elisabeth de Bohemia e o papel das mulheres na Filosofia do início da Era Moderna?

As coisas estão muito melhores hoje do que quando eu estava trabalhando na edição das correspondências entre a Princesa Elisabeth e Descartes. Eu comecei o projeto em 1996 e enfrentei dificuldades em encontrar uma editora interessada em levá-lo adiante. As pessoas me perguntavam se Descartes não estava apenas apaixonado por Elisabeth. A suposição era de que ela não tinha muito a dizer. Por conta do trabalho de outros, as coisas começaram a mudar. Eileen O’Neill teve um grande papel, primeiro com sua conferência inovadora em 1997, e depois com sua edição de Observations upon the Experimental Philosophy (Cambridge 2001), de Margaret Cavendish’s. Karen Green e Jacqueline Broad também têm feito um trabalho maravilhoso, assim como Sarah Hutton, Susan James, Ruth Hagengruber e muitas outras. Hoje em dia existe muito impulso para mover a história da filosofia adiante. Nós estamos mesmo construindo um corpo acadêmico, a empolgação dos acadêmicos em início de carreira e os atuais alunos, tanto da pós-graduação como da graduação, vai manter essa discussão interessante.

Como você vê essa experiência intelectual, de abrir os olhos, por assim dizer, para a presença das mulheres na história da filosofia moderna? O que você destacaria como mais relevante ou as particularidades neste caminho de reconstrução?

Eu acho muito empolgante ler os trabalhos de mulheres que têm sido negligenciadas, mas este trabalho também é muito difícil. Na história da filosofia, nós estamos acostumados a responder a séculos de literatura secundária. Para trabalhar com mulheres você precisar ler esses textos com a mente aberta, trabalhar tentando adivinhar o que elas estavam tentando dizer, pensar sobre uma variedade de estilos de escrita e gêneros e aprender um pouco sobre o contexto histórico. Fazer isso também faz com que você volte e leia figuras familiares de forma diferente. Eu também acho que o trabalho é mais colaborativo, uma vez que realmente nos ajuda ler esses novos textos em grupo, apresentar trabalhos em andamento e reunir com os pares para que eles façam questões que você não faria por conta própria.

Você é parte do projeto Novas Narrativas. Você pode nos contar um pouco sobre no que esse projeto consiste, quais seus propósitos e objetivos?

O projeto Novas Narrativas na História da Filosofia, fundado pelo Conselho de Pesquisa de Ciências Sociais e Humanidades do Canadá tinha como objetivo reunir acadêmicos que estavam trabalhando com mulheres no início da era moderna, formar uma rede de trabalho, para que assim, juntos, pudéssemos construir mais fontes, chamar atenção para as mulheres filosofas e, o mais importante, inspirar estudantes a continuar esse trabalho que começamos. Você pode encontrar um registro de todas as atividades neste site: http://www.newnarrativesinphilosophy.net. O Partner Project Vox, liderado por Andrew Janiak em Duke, construiu um website incrível que oferece excelentes fontes para aprender sobre um crescente número de mulheres filósofas: http://projectvox.org/. Marguerite Deslauriers, em McGille, construiu uma excelente fonte que torna acessível uma variedade de trabalhos sobre o desenvolvimento do conceito de igualdade nos séculos XVI e XVII: querelle.ca. Na Simon Fraser nós começamos uma coleção digital que inclui imagens do único manuscrito existente das cartas de Elisabeth a Descartes, uma transcrição do Du Celibat Volontaire, de Elizabeth Suchon, e podcasts: https://digital.lib.sfu.ca/newnarratives-collection/new-narratives-history-philosophy. Nós também começamos um trabalho bibliográfico de dados dos trabalhos filosóficos de mulheres – já existem mais de novecentos registros, mas ainda há muito trabalho a ser feito. Nós também recebemos workshops e conferências em Penn, Duke, Columbia, McGill e SFU. E, o mais importante, nós proporcionamos oportunidades aos estudantes para trabalhar no projeto – aprender métodos de arquivamento digitais à medida em que aprendem, em primeira mão, sobre mulheres pensadoras.

Quais são os principais desafios na construção de pontes entre a atividade de pesquisa da reconstrução do cânone e as concepções pedagógicas voltadas ao ensino de filosofia? E as principais vantagens, se houver alguma?

Eu tenho a sorte do currículo que ensino ser bastante flexível, de forma que posso incorporar facilmente mulheres nos cursos de história da filosofia. Mas ainda há desafios – textos precisam estar disponíveis, seja digitalmente ou impressos, e, mais criticamente, traduzidos. O último é o maior desafio agora, uma vez que muitos no mundo de língua inglesa estão focados nas mulheres que escreveram em inglês. Mas ainda há mulheres escrevendo em francês, alemão, espanhol e, sem dúvidas, em português, que devem ser lidas. Ainda há um desafio de tematizar o trabalho dessas mulheres escritoras, para que possam perfeitamente serem introduzidas em classes mais tradicionais. Você está interessado em substância? Você pode ler Descartes, Spinoza, mas também Conway. Está interessada em causa? Tente trabalhar com Cavendish.

Aqui no Brasil, discussões sobre reescrita do cânone e reconhecimento de mulheres na história da filosofia anda lado a lado com outras duas: 1) nossa história colonial e escravocrata e, 2) o espírito de conflagração política (contra a misoginia, contra o racismo) dentro das universidades. Neste cenário, compromissos com a história da filosofia e com a reescrita do cânone podem parecer ainda mais contra-intuitivos ou distantes do cotidiano dos alunos de graduação. Você lida com esse tipo de tensão na sua universidade? Você acredita que a história da filosofia deve responder, de alguma forma, a essas questões?

Algo interessante para mim é que as mulheres na história da filosofia são muito interessadas em temas sociais. Elas desenvolvem relatos sobre a mente, digamos, enquanto argumentam sobre a igualdade das mulheres. Eu sou particularmente interessada na crítica de Gabrielle Suchon às instituições sociais, como constrangedoras da natureza humana, e em seu desenvolvimento de alternativas positivas. Mary Wollstonecraft foi uma das primeiras a realmente teorizar sobre os direitos das mulheres. As mulheres também eram muito ativas em teorizar sobre o movimento abolicionista norte-americano. Então ensinar sobre as mulheres na história da filosofia pode ajudar a informar discussões contemporâneas. Eu acredito que muitas pessoas se surpreendem com o caráter contemporâneo de algumas obras de mulheres do século XVII.

Como você vê a relação entre a forma como é feita a história da filosofia e o estado das democracias contemporâneas? Você vê alguma conexão especial? Você acredita que a filosofia e sua história têm um papel a ser desenvolvido nas universidades e na nossa sociedade?

Eu não estou certa de que haja alguma conexão especial entre a forma como a história da filosofia é escrita e o estado das democracias contemporâneas, mas eu acredito que a filosofia e sua história são especialmente importantes neste momento, especialmente a filosofia dos séculos XVII e XVIII. Muitos de nós tomamos a sociedade na qual vivemos como garantida e olhamos para a filosofia como um conjunto de problemas abstratos. Mas os séculos XVII e XVIII foram tempos tumultuados – havia mudanças científicas, guerras, convulsão social. A filosofia desse tempo não foi construída como uma abstração mas, antes, como uma forma de entender seu mundo, de pensar sobre o que precisava acontecer para fazer desse mundo um lugar melhor, e oferecer argumentos para apoiar essas reivindicações e persuadir outras pessoas para compartilhar esta visão. Para fazer tudo isso, eles procuravam textos históricos. The lives of the philosophers, de Plutarco, é muito citado.

Olhar para a história pode nos fazer ganhar perspectivas sobre o mundo no qual vivemos, pode nos ajudar a entender nossos tempos, ver nosso caminho de forma mais clara para enxergarmos quais mudanças precisam ser feitas para as coisas melhorarem e, mais importante, desenvolver argumentos para sustentar nossos pontos de vista. Eu acredito fortemente que uma boa educação é o que nos ajuda a desenvolver capacidades de pensar por si – isto é, escutar o que o outro tem a dizer, avaliar suas reivindicações, levantar objeções, desenvolver argumentos positivos e ser capaz de articular claramente o que ele valoriza e por quê. A Filosofia e sua história têm um importante papel a desenvolver na educação.

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Katarina Peixoto é pesquisadora de pós-doutorado (CNPq) em Filosofia Moderna na Uerj e organizadora da I Conferência Internacional de Mulheres na Filosofia Moderna; e Nádia Junqueira Ribeiro é doutoranda (CNPq) em Filosofia Política (Unicamp) e jornalista da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia.