A neutralidade da natureza, entrevista com Leonardo Rennó
Nádia Junqueira Ribeiro
Doutora em Filosofia (Unicamp) e assessora de comunicação/Anpof
Leonardo Rennó
Pós-doutorando e professor colaborador (IFCH/Unicamp)
11/11/2020 • Entrevistas
Acompanhe abaixo mais uma contribuição da Anpof com a Revista Humanitas. Nádia Junqueira entrevista Leonardo Rennó para a seção "diálogos" do número 138 da publicação da editora Escala. Acesse o pdf completo aqui. Para comprar a edição completa, acesse aqui.
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Meditação, Yoga, receitas veganas e pesquisas sobre Antropologia kantiana, além de temas correlatos de Geografia física e História natural no Século das Luzes. Esse é o resumo das atividades às quais Leonardo Rennó, pós-douto- rando em Filosofia na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), dedica-se todos os dias. Haveria alguma relação entre os hábitos desse pesquisador e a filosofia? Definitivamente. E é exatamente isso o que ele nos relata nesta entrevista.
Para Rennó, agir em conformidade com a natureza é uma máxima filosófica cada vez mais abandonada e, neste diálogo, ele nos explica como a relação entre a natureza e o ser humano se apresenta filosoficamente ao longo da História (a partir de uma perspectiva de neutralidade) e como é que chegamos ao que ele define como mito da neutralidade da natureza, ou seja, a natureza como algo passivo, como se pudéssemos fazer dela o que bem entendêssemos. Em suas reflexões, o pesquisador também elucida como a desvalorização da dimensão filosófica do cuidado atravessa a ideia de natureza que temos hoje.
Ao ressaltar que a relação entre a natureza e o ser humano não é a mesma em todas as comunidades, Rennó esclarece que diferentes povos originários apresentam perspectivas integrativas diversas. “A filosofia deve assumir o papel de nos auxiliar a viver em tempos sombrios, colocando-se em diálogo com outros campos de conhecimento e outras práticas”, diz o pesquisador, que cita como exemplo a ética alimentar. Marginalizada ao longo dos anos, ela deve ter centralidade no debate filosófico atual. “Olhar para experiências que desafiam o modo como nos relacionamos com a natureza é uma das principais tarefas da filosofia hoje”, acrescenta o professor. Confira, a seguir, a entrevista feita pela Anpof com exclusividade para Revista Humanitas.
Vivemos um momento definido como antropoceno. Os humanos são capazes de alterar toda a natureza do planeta, colocando em risco a própria sobrevivência. Assim, a relação entre o ser humano e a natureza parece cada vez mais tensa. Que tipo de auxílio a filosofia pode nos oferecer?
Leonardo Rennó: Começo a responder a essa pergunta lembrando que uma das máximas filosóficas mais básicas do pensamento grego é a κατα φυσιν, isto é, o agir em conformidade com a natureza. É claro que as variadas correntes filosóficas que emergiram na Grécia clássica lidaram à sua maneira com essa máxima, mas, no geral, todas concordavam que a natureza deveria ser tida como parâmetro para a conduta humana. Portanto, a filosofia não só apregoava esse conceito, como também o praticava. E seria equivocado concluir, a partir disso, que, por algum desvio de caminho, a filosofia tenha abandonado esta sua dupla vocação, a de dizer e de fazer. Consideremos agora o conceito de natureza, que Immanuel Kant defende em duas importantes obras, Crítica da razão pura e Crítica da faculdade de julgar. Na primeira, vemos a natureza no banco dos réus. Na segunda, por sua vez, é sob a noção de utilidade que a natureza é definida. À luz dessa concepção moderna, portanto, a natureza não passaria de um grande jardim do Éden que merece ser explorado para uso da humanidade, ou, mais rigorosamente, para uso responsável da razão. Mesmo esta última emenda não enfraquece em nada o caráter passivo que é ali atribuído ao conceito de natureza. Assim, se pudéssemos propor uma comparação um tanto apressada, poderíamos dizer que, enquanto a natureza, para os Antigos, era reconhecida como o metro da vida humana, algo diante do qual, nós, seres humanos, em alguma medida, deveríamos nos curvar, para os Modernos é a natureza quem deve se dobrar, como um repositório inesgotável de riqueza, cujos segredos, para lembrarmos Francis Bacon, deveriam ser extraídos mediante tortura nos laboratórios científicos.
Na sua opinião, qual é a definição de natureza que melhor se adequaria aos diversos desafios que a humanidade tem enfrentado desde o início do século passado?
Parece-me evidente que uma grande mutação na nossa compreensão do conceito de natureza ocorreu ao longo desses mais de dois milênios e que, em grande medida, tal mudança foi autorizada (e mesmo produzida) pelo discurso filosófico. O que se manteve, e é isto que eu gostaria de frisar, foi este duplo procedimento do discurso filosófico, de criação ou autorização das ideias e também de execução delas. Não acho mesmo que, atualmente, possamos continuar admitindo que a filosofia seja inofensiva ou que, no pior dos cenários, seu potencial perigoso se mantenha circunscrito ao plano das ideias, que nunca toca efetivamente a realidade do mundo sublunar. Ou, ao contrário, que ela não deveria macular sua sublime reflexão com a lama das vidas humanas. Na verdade, é precisamente estas versões de um mesmo preconceito fundamental que torna a filosofia algo realmente danoso. Neste sentido, acredito que ela pode, de fato, nos ajudar a enfrentar estes novos tempos sombrios, com os quais ela própria colaborou na criação, na medida em que reconheça sua capacidade também de executora de ideias e consiga, por esta razão, identificar quais são as boas – o que implica um diálogo contínuo com os diferentes estratos da sociedade – e como elas podem favorecer na solução dos problemas atuais – o que pressupõe uma interação permanente com os diversos setores da produção de conhecimentos.
Poderia nos dar um exemplo?
Eu posso dar um único exemplo desta capacidade executora. A despeito do que os negacionistas cheguem a defender, o que estamos enfrentando hoje com a pandemia provocada pela Covid-19, em larga medida, diz respeito particularmente aos nossos hábitos alimentares. O que colocamos no nosso prato do dia a dia interfere, sim, e estruturalmente, no modo de vida de todos os grupos humanos ao redor do mundo. E, não por acaso, a ética alimentar, um tópico filosófico clássico, foi progressivamente desqualificada do ambiente filosófico para só recentemente retornar, ainda timidamente, à discussão. A não ser que queiramos caracterizar Platão como um “blogueiro antenado”, desconheço outra maneira de ler sua prescrição dietética, vegetariana, no Livro II da República, senão como uma execução específica das ideias que ajudaram a fundar o pensamento ocidental. E o que é que nós, filósofas e filósofos, estamos prescrevendo atualmente?
Quais mudanças relevantes e seus resultados explicam os desafios atuais?
A rigor, a mutação no conceito de natureza é multifatorial e, provavelmente, este meu enfoque não conseguiria abarcar todos os seus elementos. Mas eu gostaria de explorar uma característica específica desta mudança. Com a redefinição do conceito moderno de natureza me parece ser possível perceber com alguma clareza a neutralidade como sua nota mais característica. A natureza deixou de ser algo com o qual dialogamos para compreender o funcionamento das coisas. Ela própria não tem nada a nos dizer. A rigor, somos nós que a interpelamos. Ela não tem escolha senão se curvar diante de nosso intelecto e nossa habilidade técnica e atender às nossas demandas. Sob essa perspectiva, a natureza é integralmente passiva, esvaziada de qualquer interesse próprio. Neutra, portanto. Poderíamos dizer que lidamos aqui com o mito da neutralidade da natureza. Pensamos que podemos fazer com ela o que bem entendermos. No âmbito dessa nossa mentalidade, não achamos que a taxa crescente de alergias tenha algo a ver com nosso distanciamento dos ambientes abertos, logo, da natureza. Não achamos que nosso adoecimento – nunca uma geração humana foi tão doente quanto a nossa – se deva a este afastamento, haja vista o nosso consumo massivo de remédios e, mais geralmente, o nosso atual modo de vida, poluente, predatório e paradoxalmente sedentário.
E por que chegamos a esse ponto?
Desconfio de que a causa esteja de algum modo relacionada à desvalorização filosófica da esfera do cuidado, que ficou historicamente vinculada ao domínio do privado e, nessa mesma medida, ao universo feminino. Não é por outra razão que denominamos mãe natureza, querendo com isso significar uma entidade sem vida própria, pronta a atender às infinitas necessidades dos seus filhos, sem qualquer capacidade decisória, posição à qual as mulheres foram historicamente relegadas. E, também, não é por uma razão diferente que pen- samos não existirem propriamente filósofas. Com isso, podemos começar a entender por que a ética alimentar se tornou filosoficamente desprestigiada na esteira de todos os assuntos que poderíamos chamar de prescritivos. Como se não mais competisse ao discurso filosófico lidar com essa lenga-lenga, relegando-a às áreas de suporte à vida.
Isso significa que o papel das filósofas estaria relegado ao tema do cuidado?
Não estou defendendo com isso que, existindo filósofas – e, sim, sempre houve, e excelentes! –, elas devam se ocupar necessariamente desses assuntos. Absolutamente. Mas estou, sim, defendendo que tudo aquilo que foi relegado à periferia da reflexão filosófica, e que me parece parte da causa dos nossos grandes desafios atuais, precisa recuperar seu protagonismo, e que este protagonismo deve sim encontrar respaldo no discurso filosófico, quer seja ele realizado por filósofas ou filósofos. Ou, inclusive, por não filósofos e por não filósofas. Já passou da hora de admitirmos que a filosofia acadêmica é apenas uma instância, indispensável, mas não a única, da reflexão filosófica. Este, inclusive, é outro problema bastante importante. Assim como as mulheres foram banidas da filosofia, os mais diversos sistemas de pensamentos, distintos do pensamento eurocêntrico, também foram rejeitados como inferiores à abstração conceitual da qual só a tradição grega se mostrou capaz. Somos suficientemente arrogantes para pensar que filosofia propriamente realizada é só aquela que, de um modo ou de outro, se vincula, historicamente, aos antigos gregos. Não poderíamos estar mais errados e sermos mais violentos a esse respeito. A diversidade de povos originários, com seus singulares modo de vida e de pensamento, é a prova viva disso.
A crítica à qual você se refere é endereçada à civilização ocidental. Os povos originários admitiriam essa concepção? Como você vê a relação entre povos originários e a natureza?
É difícil falar de todos os povos originários sob uma única perspectiva, ou mesmo falar por eles sem repetir os preconceitos da visão eurocêntrica. Seria preciso que parássemos para escutar com atenção cada representante desses povos sem, contudo, assumirmos a posição de árbitro. O que é por si só um verdadeiro desafio. Em todo caso, é bastante conhecido que a mentalidade de diversos grupos humanos, sobretudo daqueles que mantiveram uma estreita vinculação com o meio ambiente, tende a uma visão integrativa do ser humano com a natureza, o que se exprime em práticas culturais não agressivas, antipredatórias e notavelmente diplomáticas diante de outras culturas. Eu mesmo tive uma oportunidade incrível de trabalhar por um curto período com um povo originário brasileiro e preciso dizer que foi o único ambiente em que me senti verdadeiramente confortável por seguir uma dieta vegetariana estrita, e isso em uma cultura que tem a carne como parte essencial da sua cultura alimentar.
A Índia e sua cultura seria outro exemplo?
Sim. A Índia é conhecida por sua dieta vegetariana praticada por grande parte da sua população. A rigor, o vegetarianismo encontra suas raízes num sistema de pensamento notavelmente refinado e estruturalmente diversificado, o qual abarca um conjunto bastante amplo de culturas e práticas locais, em sua grande maioria, não violentas. É interessante considerar este ponto, porque quase tudo que conhecemos sobre a cultura indiana se limita ao Yoga, que começou a ser difundido nos países ocidentais a partir do final do século XIX. E não nos deve surpreender que o modo como o Yoga nos alcançou tenha sido inteiramente desconectado de sua cultura de origem, sendo acolhido entre nós como mais um instrumento de promoção da saúde e bem-estar. Eu gostaria de enfatizar este ponto. Para a cultura indiana, o Yoga também é um instrumento de promoção, não apenas da saúde, mas sobretudo da espiritualidade, e o Ahimsã, o princípio da não violência, está a serviço não só da humanidade, mas de todos os seres vivos. E só este fato pode dizer muito sobre sua concepção integrativa, não menos filosófica, em relação à nossa abordagem utilitarista. Nossa mentalidade ocidental, hoje em dia homologada pela grande maioria das nações, autoriza até mesmo que todas as outras práticas culturais sejam tidas como tantos outros objetos encontrados na natureza para nosso uso exclusivo e, portanto, predatório.
Poderia nos indicar experiências que estão desafiando esse modelo tradicional de natureza?
Os povos indígenas brasileiros estão conduzindo experiências incríveis de implantação do sistema de agroflorestas, e certamente as políticas de acesso dos indígenas às universidades, como o que a Unicamp vem promovendo, trarão resultados inestimáveis para a cultura brasileira como um todo. Sabemos também que a maior parte dos alimentos orgânicos atualmente comercializados é resultado da atividade dos assentamentos do MST, sem qualquer incentivo do governo, muito pelo contrário, assim como também vem ganhando fôlego práticas agrícolas alternativas, como a agricultura sintrópica, que pressupõe um conceito integrativo de natureza. É difícil imaginar que uma conversa atenta com seus defensores resultaria numa visão depreciativa da natureza e numa relação de uso entre o ser humano e o meio ambiente. Por que, então, continuamos operando com uma noção utilitarista de natureza? Esses movimentos que acabo de indicar são uns poucos exemplos do que tem acontecido fora dos centros urbanos.
E nas cidades, o que tem acontecido?
Se olharmos para o movimento cultural urbano, veremos sem grande dificuldade um aumento expressivo do interesse das pessoas por práticas alternativas que não se limitam a promover a saúde ou o bem-estar, mas também uma espiritualidade que poderíamos inclusive qualificar paradoxalmente de laica. Isto é, que não se vincula a uma religião, mas que oferece abertura para uma nova experiência humana de integração com o meio ambiente e com a comunidade. Neste caso, o aumento expressivo da procura por Yoga e meditação não se explicaria inteiramente pelo modo como elas foram recebidas inicialmente nos países ocidentais, sendo possível identificar nesse caso um novo e distinto interesse.
Esse fenômeno também explicaria o aparecimento de mais ativistas nas redes sociais?
O aumento expressivo do interesse por uma ética alimentar inclusiva e vinculada com a realidade brasileira pode ser claramente identificado na ampla adoção do vegetarianismo, o que explica o surgimento do grande número de ativistas nas mídias. Além do protagonismo evidente que a Sociedade Vegetariana Brasileira assumiu nos últimos tempos, podemos ver o mesmo movimento de respeito aos animais sendo defendido no seio de favelas, como no caso da @thallitaxavier e do @ruan.felixs, ou mesmo numa abordagem mais ampla e não menos cuidadosa e afetiva, como nos casos da @mussinha_carol, @veggui e @chubbyvegan, ou de ativistas mais experientes não necessariamente vinculados ao vegetarianismo, mas centrando seus esforços numa prática alimentar coerente, como @neiderigo e @belagil. Esses são exemplos de um grande movimento cultural que ocorre atualmente em todos os setores da sociedade brasileira, o qual certamente aponta para uma mudança de mentalidade com a qual a filosofia terá muito a ganhar, e com isso toda a sociedade, ao estabelecer um verdadeiro diálogo.