Anpof cria comissão dedicada ao Ensino de Filosofia - Entrevista com Taís Pereira

Nádia Junqueira Ribeiro

Doutora em Filosofia (Unicamp) e assessora de comunicação/Anpof

18/05/2023 • Entrevistas

Em meio ao debate sobre a revogação - e reforma - do Novo Ensino Médio, a Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia constituiu, no último mês de abril, uma comissão dedicada ao ensino de filosofia. A comissão tem o objetivo de promover a construção coletiva de uma agenda comum da área voltada para o ensino de filosofia. Nesta entrevista, a professora Taís Pereira, do CEFET/RJ e que integra a atual diretoria, compartilha sobre o trabalho dessa comissão, como surgiu, quais as principais demandas e como a comunidade filosófica pode se engajar nos debates que tangenciam o tema. 

Taís compartilha o diagnóstico da comissão de que a área da Filosofia ainda tem atuado timidamente nos grandes debates nacionais sobre o lugar e o papel da filosofia nos currículos escolares. “Temos um qualificado e profícuo histórico de análises e discussões entre nossos pares do campo do ensino, mas participamos pouco fora do âmbito acadêmico”, compartilha a professora. Assim, ela afirma que a comissão pretende contribuir com estratégias filosófico-pedagógicas e estratégias de ações públicas para a defesa da permanência efetiva da filosofia como disciplina na educação básica.

A comissão surge concomitante à instalação, pela subcomissão temporária de educação do Senado Federal, de uma consulta pública para Avaliação e Reestruturação da Política Nacional de Ensino Médio (NEM). O primeiro trabalho da comissão foi o de realizar um diagnóstico e avaliação do NEM no ano de 2023, com as contribuições dos professores Edgar Lyra (PUC-Rio); Patrícia Velasco (UFABC) e Christian Lindberg (UFS). A comissão se posiciona pela revogação do NEM e acredita que uma reforma não é capaz de corrigir os problemas estruturais dessa proposta. 

A consulta pública feita pelo Senado também é avaliada pela comissão como insuficiente para promover o debate público e não toca em questões cruciais levantadas por pesquisadores e docentes à época da MP 746/2016. A professora do CEFET antecipa que a comissão divulgará em breve uma análise sobre este questionário.

Este grupo é composto por docentes e coordenadores do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar e dos programas de mestrado profissionais (CEFET/RJ e PROF-FILO). São eles: Augusto Rodrigues (UNESP-Marília), Antonio Saturnino (UFRJ), Christian Lindberg (UFS), Edgar Lyra (PUC-Rio), Eduardo Barra (UFPR), Érico Andrade (UFPE), Ester Heuser (UNIOESTE), Gabriel Kafure (IFSertão PE), Inara Zanuzzi (UFRGS), João Lima (UFAC),  Jorge Viesenteiner (UFES),  Marcelo Guimarães (UNIRIO), Maria Socorro Militão (UFU), Patrícia Velasco (UFABC), Rafael Barbosa (CEFET/RJ), Taís Pereira (CEFET/RJ) e Ulysses Pinheiro (UFRJ). Leia a entrevista abaixo.  

Qual a principal agenda desta comissão?

A criação da comissão sobre o ensino de filosofia da Anpof faz parte do compromisso desta diretoria com o fortalecimento dos vínculos entre a universidade e a educação básica, bem como a defesa da valorização e presença do ensino de filosofia, sobretudo no ensino médio. Composto por docentes e coordenadores do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar e dos programas de mestrado profissionais (CEFET/RJ e PROF-FILO), este grupo iniciou o trabalho de construção coletiva de uma agenda comum da área voltada para o ensino de filosofia. Temos um qualificado e profícuo histórico de análises e discussões entre nossos pares do campo do ensino, mas participamos pouco fora do âmbito acadêmico. Embora existam movimentos importantes no país, como associações regionais de professoras e professores de filosofia, ou ainda articulações com outras entidades (caso da participação da Anpof na Campanha Nacional em Defesa das Humanidades na Educação Básica, por exemplo), nossa área ainda tem atuado timidamente nos grandes debates nacionais sobre o lugar e o papel da filosofia nos currículos escolares. As diretrizes e deliberações advindas das políticas nacionais de educação impactam não apenas os níveis fundamentais e médio, mas também as licenciaturas e cursos de formação de professores em nível de pós-graduação. 

Neste sentido, pretendemos contribuir com estratégias filosófico-pedagógicas e estratégias de ações públicas para a defesa da permanência efetiva da filosofia como disciplina na educação básica, buscando ocupar espaços de interlocução na política educacional. O surgimento da comissão, fruto de uma demanda espontânea de alguns colegas, foi bastante oportuno porque coincide com maior pressão dos movimentos pela revogação da implementação do Novo Ensino Médio (NEM) e a instalação, pela subcomissão temporária de educação do Senado Federal, de uma consulta pública para Avaliação e Reestruturação da Política Nacional de Ensino Médio. Como início de nosso trabalho, foi realizado um primeiro diagnóstico e avaliação do NEM no ano de 2023, com as contribuições valiosas dos professores Edgar Lyra (PUC-Rio); Patrícia Velasco (UFABC) e Christian Lindberg (UFS).

A comissão se posiciona favorável à Revogação do Novo Ensino Médio. Por que uma reforma não é suficiente para nossa área?

Nascida de uma medida provisória e aprovada sem amplo debate da sociedade, enquanto política educacional, a então Reforma do Ensino Médio sofre de déficit democrático desde suas origens. Com a reforma também se viu sepultado todo o trabalho sério sobre a construção da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCC-EM), que precisou se adaptar ao NEM. Este fato por si só já deveria ser relevante para defendermos a revogação. Somado a isso, após seis anos desde a publicação da lei 13415/2017 e com a implementação da reforma em andamento nos diferentes estados, constatou-se o que pesquisadoras e pesquisadores da área já previam: a falta de condições materiais (carência de salas e outros espaços formativos, de docentes, recursos e equipamentos) para oferecer à/ao estudante a efetiva oportunidade de escolha dentre diferentes itinerários formativos; o crescimento avassalador de novos itinerários; a pulverização dos conteúdos escolares em diferentes atividades sem diálogo com a comunidade escolar; o aprofundamento das desigualdades entre os sistemas de ensino e da precarização do trabalho docente.  

No caso específico da filosofia, a pesquisa fundamental do prof. Christian Lindberg demonstra a presença da filosofia nos currículos escolares de forma muito irregular, com tempo de aula reduzido na maioria dos Estados. O impacto mais imediato deste cenário, relatado por professoras e professores de filosofia, é a fragmentação de sua carga horária, levando ao desvio de função ou à necessidade de atuar em mais de uma escola (quase a regra em alguns estados) para cumprimento de sua atividade docente. Assim, nossas e nossos colegas são convocados a trabalhar temas e conteúdos estranhos à sua especialidade e à toque de caixa, impedindo qualquer planejamento refletido e retirando a autonomia docente. A implementação do NEM também aponta para a ausência de vagas destinadas à filosofia nos processos seletivos estaduais. A precarização do trabalho docente tem desdobramentos importantes na qualidade da formação dos estudantes que, embora tenham menos tempo de filosofia, cursam agora componentes como “projeto de vida”, cuja descrição no site do MEC é, no mínimo, muito similar aos conteúdos e práticas de filosofia consolidados no EM ao longo da última década (pelo menos). Uma reforma só seria possível se a estrutura do NEM fosse compatível com uma política de formação robusta, atenta às reais condições de escolas, docentes e estudantes e comprometida com uma formação humana integral – voltada para o mundo do trabalho e para a cidadania. Ainda que a filosofia (junto com a sociologia) deixe ser, na letra da lei, “estudos e práticas” e passe a ser apresentada como um componente obrigatório das “Ciências Humanas Sociais e Aplicadas”, ela ainda resta descaracterizada e refém de configurações dos referenciais estaduais. Diante do próprio histórico da filosofia como disciplina escolar, marcada por uma presença instável nos currículos, corre-se o risco real de seus conteúdos e práticas serem diluídos quando não excluídos do ambiente escolar.

Desde o dia 24 de abril o MEC abriu uma consulta pública para Avaliação e Reestruturação da Política Nacional de Ensino Médio. Qualquer pessoa pode dar sua opinião por meio da plataforma Participa. Vocês acreditam que esta consulta é suficiente para o debate sobre o tema?

Se hoje temos uma consulta pública aberta foi graças à pressão de docentes, estudantes e profissionais da educação, sob diferentes formas de organização, que ainda se mobilizam incansavelmente pela revogação do NEM. Contudo, ela está longe de ser suficiente porque foge do debate público e não toca em questões cruciais já levantadas por pesquisadores e docentes à época da MP 746/2016. Primeiramente, sabe-se muito pouco sobre o papel e peso da consulta em relação aos seus desdobramentos na política de educação nacional. De acordo com o texto introdutório da pesquisa, dentre seus objetivos está a revisão do NEM, sem espaço para se aventar a possibilidade de revogação. Além disso, o questionário disponibilizado se estrutura por perguntas fechadas, cujas opções de resposta – “Concordo com a proposição” e “Discordo da proposição”, acrescidas de uma pequena caixa de texto opcional para comentários – são evidentemente direcionadas à defesa da chamada “reforma da reforma”, ou seja, modificações pontuais à estrutura vigente. A expectativa, portanto, parece ser antes de ajuste ao que está dado e exclui aquilo que faz justamente parte do debate, o contraditório. 

As pesquisas de especialistas e experiências de docentes que mostram a inviabilidade do NEM, quanto aos seus princípios e ao seu funcionamento para uma formação de qualidade, estão sendo silenciadas em nome de uma pretensa estabilidade de implementação da reforma que já está ocorrendo nos estados. Entendemos que uma participação crítica é importante. Responder à consulta de forma qualificada na medida do possível por meio de comentários, além de acompanhar o cronograma de atividades do MEC cuja programação se estende até o dia 6 de junho é parte de nossa atuação. Por isso, a comissão em breve divulgará uma análise sobre o questionário tendo em vista o esclarecimento e orientação daquelas e daqueles que ainda não preencheram o questionário. Ainda assim, frisamos que estas atividades não satisfazem a transparência e ampla discussão voltada para a formação de nossos jovens como política de Estado. Neste sentido, continuar a pressão coletiva continua fundamental para pensarmos uma alternativa coerente ao NEM.

Como a comunidade filosófica pode se envolver para contribuir com a pauta da comissão?

Entendemos que a comissão é um canal por meio do qual podemos agregar esforços na construção de uma agenda comum, reconhecendo a pluralidade dos modos de ensinar e aprender filosofia. Por isso, queremos convidar docentes e associações regionais de filosofia, sindicatos e outros coletivos que atuam na área da educação e do ensino de filosofia a nos enviarem sugestões de encaminhamento de nossas pautas. Em relação ao NEM, a comissão está aberta a receber relatos de experiências docentes e institucionais sobre as dificuldades e obstáculos que sua implementação traz para o ensino de filosofia, além de estratégias de enfrentamento neste contexto. Também ressaltamos que o site da Anpof está sempre disponível para receber contribuições do campo, seja em sua coluna e fórum de debates, seja na divulgação de atividades relativas à filosofia e seu ensino.

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