Como Hans Jonas nos ajuda a compreender a crise do meio ambiente? Uma conversa entre três filósofos

17/09/2021 • Entrevistas

Enquanto o Brasil vive períodos de seca prolongados, crescentes queimadas que somam quase 20% do território nas últimas três décadas, avizinham-se crises hídrica e elétrica, atravessadas por um crítico momento em relação às políticas ambientais. O recente relatório do Painel Intergovernamental sobre mudanças climáticas revela que impactos, como esses, resultantes do aquecimento global de 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais, são apenas o começo das consequências a serem sentidas em todo o mundo. Diante deste cenário, convidamos o Grupo de Trabalho Hans Jonas da Anpof para promover reflexões sobre a relação do homem com o meio ambiente. A conversa reuniu três integrantes do GT: os professores Dr. Antonio José Romera Valverde (PUCSP), Dr. Jelson Oliveira (PUCPR) e Dra. Lilian Simone Godoy Fonseca (UFVJM). 

Nesta entrevista, eles refletem sobre as nocivas ações humanas em relação à natureza a partir (e além) de Jans Honas e reforçam a relevância da teria ética jonasiana para o momento atual: ao pensar a ética da responsabilidade, ele criou a única ética projetada para incluir a natureza como sujeito ético. Os professores e professora discutem sobre a relação entre a natureza e a economia, mostram como a crítica situação ambiental do tempo presente tem antecedentes de duzentos e tantos anos e chamam a atenção para o fato de que a natureza passou de fonte de riqueza para ser apenas fornecedora de recursos. Neste cenário, o homem vive esquecido de que sua própria existência depende da integridade da natureza.

Ao pensar possíveis saídas para o cenário catastrófico, Antonio Valverde considera as propostas do ecossocialismo, que identifica que o problema não é o clima, mas o sistema capitalista, globalizado e, por isso, a saída é mudar o sistema. Já Lilian Fonseca defende uma cosmovisão proposta pelo ecofeminismo, que integra os seres humanos à natureza, e não considera as mulheres e a natureza como objetos inertes e passivos. Jelson Oliveira, por sua vez, alerta para a necessidade de mudar as consciências, através do debate constante, a vigilância de todas as instituições, públicas e privadas, a educação ambiental, o financiamento de pesquisas e o investimento em tecnologias ecologicamente adequadas. Acompanhe:

Jelson Oliveira: O Brasil vive hoje um dos momentos mais complexos em relação às políticas ambientais, que inclui a aceleração da devastação da natureza e o desmantelamento da legislação ambiental e dos órgãos de fiscalização. Sabemos que tudo isso está ligado ao modelo econômico vigente. Você fez uma pesquisa recente sobre o tema da economia em Hans Jonas. Você poderia nos contar um pouco sobre como Jonas pensa o papel da economia no contexto geral da sua teoria ética e como ela pode nos ajudar a pensar os rumos do Brasil?

Lilian Godoy Fonseca: De fato, tive a grata oportunidade de desenvolver um aprofundado estudo, como parte de um estágio pós-doutoral, em que investiguei a existência de um pensamento econômico em Hans Jonas, a partir de quatro textos publicados entre 1969 e 1992. Na impossibilidade de apresentar, aqui, os principais resultados obtidos - que serão ainda publicados na íntegra -, e para responder especificamente a esta questão, vou me ater a uma breve digressão que fiz na conclusão de meu trabalho. Tal digressão teve por foco os termos riqueza e recurso, ambos aplicados à natureza. E, um aspecto curioso que constatei foi que, no estágio pré-capitalista, a natureza era vista como principal fonte de riqueza. Essa posição foi, inclusive, abertamente declarada pela Escola Fisiocrata. Porém, com o advento do capitalismo, do processo de industrialização e, ademais, com a proclamação do famigerado lema de Bacon, a natureza, como sabemos, foi rebaixada a mera provedora de recursos. Essa mudança de status da natureza revela, portanto, um fato evidente, mas, que merece ser explicitado: antes da industrialização, o que se extraía da natureza era, já, o produto necessário para a sobrevivência. O processo de transformação era bem limitado, e por ser totalmente artesanal, estabelecia uma relação ‘orgânica’ entre o artesão e a matéria prima usada para produzir os utensílios: cerâmica, tecidos, armas, etc. Em todos esses casos, a natureza era, de fato, a fonte da riqueza e o artífice forjava a partir dela.

Com a industrialização, essa relação sofre uma profunda mudança. A produção em grande escala exige uma quantidade muito maior de matéria prima que, com frequência, é extraída de outros países, para sua transformação realizada por máquinas. Só o produto finalizado torna-se, então, uma mercadoria cuja venda gera lucro e, portanto, a ‘riqueza’. Por essa razão, a natureza deixou de ser vista como a fonte de riqueza, para ser apenas a fornecedora de ‘recursos’, que precisam ser transformados em produtos para gerar a riqueza, isto é, o valor pecuniário, único que interessa à visão econômica tradicional. Esse processo é a própria materialização do lema de Bacon e constitui, basicamente, o modus operandi do capitalismo, desde a sua origem.

No estágio atual, em que o capitalismo ‘vitorioso’ dominou os quatro cantos do globo, o que nada mais é do que a chamada globalização da economia, os efeitos desse processo para a natureza, como bem apontou Jonas, são avassaladores. E, no Brasil, infelizmente, devido ao governo atual, tal situação chegou ao seu grau mais devastador. Por esse motivo, é preciso urgentemente romper com essa lógica e demonstrar que a natureza viva ou, como muitos já têm apontado: a floresta em pé, é mais valiosa do que a mera extração imediata de seus recursos. Em outros termos, a verdadeira riqueza é a própria natureza e reduzi-la à mera provedora de recursos é, não apenas um equívoco, mas, um modo de suicídio gradual de nossa espécie, pois, não podemos, como Jonas apontou, serrar o galho sobre o qual nos assentamos. Isso, além de uma estupidez sem tamanho, é um ato criminoso em relação às próximas gerações. É preciso mudar nosso modo de pensar, viver e agir, antes que seja tarde demais! Pois, a economia que, por definição, deveria suprir as necessidades para a sobrevivência humana, se tornou a causa iminente de destruição da natureza e, por extensão, da nossa. Esse é o dilema de nossa geração e o nosso compromisso com o futuro! Os alertas já foram dados, mas, ao que parece, a ganância não apenas cega, mas ensurdece aqueles que só veem as cifras e ouvem o tilintar das moedas nos seus próprios bolsos!

Jelson Oliveira: Lilian, como você avalia a efetividade e a viabilidade da proposta ética de Hans Jonas para o enfrentamento da emergência ambiental? Em que pontos a teoria da responsabilidade pode contribuir e em que pontos precisamos ir além dela?

Lilian Godoy Fonseca: Como busquei abordar em minha apresentação, Potência e impotência[1] do princípio responsabilidade - no evento realizado em 2019 pela PUCSP, por ocasião da comemoração dos 40 anos da publicação de O Princípio Responsabilidade, a obra mais proeminente de Jonas, em que ele expõe sua concepção ética para a nossa civilização tecnológica - observamos que, após quatro décadas, poucas alterações efetivas foram realizadas para conter as nocivas ações humanas em relação à natureza. Ao contrário, elas vêm se exacerbando e, devido ao constante desenvolvimento tecnológico, a natureza tem sido cada vez mais esgotada e poluída, para atender à escalada insaciável do crescimento econômico. Essa triste constatação levanta a suspeita de que, apesar do grave alerta feito por Jonas, em função do contexto em que ele o fez - uma obra ético-filosófica - seus efeitos são ainda muito aquém dos esperados. Ademais, embora Jonas tenha se ocupado em discutir alguns dos temas a que seu princípio responsabilidade (PR) poderia ser aplicado, sobretudo, no campo da ciência e da técnica voltadas ao uso na Medicina; não encontramos em nenhum texto jonasiano, ao menos nos já publicados, qualquer instrução de como o seu PR pode ser aplicado concretamente ou exigida a sua efetiva observância.

Assim, apesar da inconteste relevância da teoria ética jonasiana para o nosso momento atual, ela padeceria da mesma limitação de toda reflexão ética, a saber: a adesão a ela não é obrigatória e o seu descumprimento não acarreta nenhuma punição, o que cabe apenas ao âmbito jurídico. Conferir ao PR uma dimensão jurídica exige identificar o seu agente, em função do quê, busquei propor um modo de classificar a responsabilidade, conforme dois aspectos que chamei de números e modalidades. Indiquei a existência de dois diferentes números: individual e coletivo e duas modalidades: parental e governamental que, respectivamente, representam a domínio privado e público. E cheguei à compreensão de quatro diferentes níveis de responsabilidade: o individual privado, o individual público, o coletivo privado e o coletivo público, que apresentam uma escala ascendente de complexidade quanto ao alcance e à gravidade das consequências de ações danosas. Essa classificação explicitou a dificuldade de se atribuir e penalizar o agente por sua responsabilidade, especialmente, os agentes coletivos, não apenas pela forma “difusa” como atuam, mas pelo fato de serem os detentores do poder: econômico, no caso das empresas e corporações (âmbito coletivo privado) e jurídico-político, no caso dos governantes e do Estado (âmbito coletivo público). Assim, pode-se avaliar que o princípio responsabilidade jonasiano não é, em si mesmo, incapaz de produzir efeitos concretos, pois, por sua estreita proximidade ao âmbito jurídico, ele poderia (e deveria) ter efeito vinculante; o que tornaria obrigatória a sua observância. Mas, para que isso seja possível, o lucro não pode estar acima da vida e o Estado deve ser democrático e conforme ao Direito. Condições que, infelizmente, no atual estágio do capitalismo, estamos ainda bem longe de alcançar.

Jelson Oliveira: Sendo você mulher, como você pensa a contribuição do feminismo e dos debates de gênero para o enfrentamento da questão ambiental?

Lilian Godoy Fonseca: Essa questão, necessariamente, remete à abordagem do ecofeminismo, termo criado nos anos 1970, pela feminista francesa Françoise d’Eaubonne (sobrenome, aliás, bastante sugestivo), para sustentar a tese de que a luta pelos direitos das mulheres se conecta diretamente com as lutas por um mundo mais sustentável. Françoise d’Eaubonne defendia, à época, o direito ao controle de natalidade, reconhecendo que a crescente superpopulação do planeta ameaçaria, cada vez mais, o meio ambiente, como um resultado direto da estrutura patriarcal de nossas sociedades, que insistem em controlar os corpos das mulheres.

Atualmente, uma das vozes mais possantes do ecofeminismo é a da filósofa e ativista indiana, Vandana Shiva, que propõe uma cosmovisão que integra os seres humanos à natureza, destacando a vida como a interconexão através da qual a natureza e as mulheres são vistas como seres vivos e autônomos, e não coisas ou objetos inertes e passivos, ao dispor da exploração e violação praticadas pelo poder masculino. Vandana Shiva defende que os fundamentos de todos os sistemas de conhecimento e de todas as economias têm por base a criatividade e a produtividade da natureza e das mulheres, embora isso jamais seja admitido pelo patriarcado capitalista, cuja visão de mundo hegemônica, se impôs como sistema de conhecimento e como forma de organização da economia dominantes e, durante séculos, se fortaleceu por meio do colonialismo, do escravismo, do industrialismo, do emprego abusivo de combustíveis fósseis e do uso da violência, em nome da cobiça e da destruição da natureza, das culturas e das mulheres. Inspirada por Vandana Shiva, defendo que esse sistema masculino, arcaico e mais do que deletério, precisa urgentemente ser ultrapassado e substituído pela cosmovisão ecofeminista, única capaz de promover novos valores, mais ‘femininos’ e mais compatíveis com a, cada vez mais vulnerável, manutenção da vida em nosso planeta.

Lilian Godoy Fonseca: Caro Prof. Valverde, a natureza - enquanto physis - foi o primeiro objeto da contemplação humana e da reflexão filosófica. Ao longo dos séculos, sua importância sofreu grandes alterações e, atualmente, ela se coloca no centro de inúmeros debates, em função da grave crise ambiental que estamos vivendo. A que você atribui a situação crítica que vivemos hoje em termos ambientais?

Antonio Valverde: De um lado, Marx analisara a alteração do metabolismo homem-natureza em O Capital, apontando para o uso excessivo do solo agrícola sem descanso costumeiro, em vista da necessidade da produção de alimentos para as grandes cidades europeias, a meados do século XIX. De outro, a afirmação do padrão de produção industrial desde a Segunda Revolução Industrial, utilizando carvão para aquecimento das fornalhas, que favoreceu a expansão de fuligem tóxica na atmosfera, no mesmo século. Assim, a crítica situação ambiental do tempo presente tem antecedentes de duzentos e tantos anos. Agravada com a poluição causada por combustíveis fósseis, ao limite da capacidade das florestas, como a Amazônica, de processar e limpar o ar, como detectado ultimamente. De par com o fracasso de todos os tratados na redução da emissão CO2, iniciados ao final dos anos 1980. Mesuradas a poluição e a degradação na natureza, com precisos aparatos técnicos e científicos, nada de relevante tem sido realizado para conter a crise ambiental. Aquém do discurso catastrofista, há uma crise anunciada dos recursos hídrico, do ar, da terra, sem precedentes. – Eis o drama ético-político mais relevante do tempo presente. Como viver na natureza degradada?

Lilian Godoy Fonseca: Em sua avaliação, quais foram os principais pensadores que contribuíram para a elaboração de uma Filosofia da Natureza e/ou de um pensamento ambiental e, por outro lado, ao longo do tempo, quais os principais responsáveis pelo esquecimento da natureza, não apenas como objeto central da Filosofia, mas como condição sine qua non para a continuidade da vida?

Antonio Valverde: A questão demanda resposta muito ampla. Atalhando. Se, grosso modo, a natureza durante muito tempo foi pensada como o Outro, locus de mistério, fator de medo, de fenômenos naturais tidos como perigosos para o homem, como maremotos, vulcões, dilúvio etc., até o momento de algum de distanciamento e compreensão dela. Praticamente, a maioria dos filósofos de alguma forma passaram pelo problema da natureza, sem necessariamente elaborarem uma filosofia da natureza, o que pressupõe um enquadre muito específico. Assim, de modo geral, o tema esteve latente e, no mesmo passo, explicitado, sob as análise e conjecturas dos primeiros fisiólogos da Antiguidade em diante. Até as filosofias de Giordano Bruno, Bacon e Espinosa, que parecerem ser os marcos divisórios da compreensão alargada da natureza, em vários sentidos. Após, os vitalistas criaram um viés interpretativo, próximo da concepção romântica, porém, sob concepção conservadora. A próxima parada foi a de Marx, dando materialidade à compreensão da natureza, sob o capital. E partir da filosofia marxiana, certamente, o problema da natureza tem sido redimensionado.

Talvez Marcuse seja o filósofo que mais claramente apontou para a degradação da natureza dado o avanço da sociedade industrial avançada e do Estado do Bem-Estar Social. Ultimamente, Hans Jonas, ao pensar a ética da responsabilidade, criou a única ética projetada para incluir a natureza como sujeito ético. E, ao menos no Brasil, pouco se sabe da obra de Arne Ness acerca da ecologia profunda. A resposta adequada envolveria mais nomes e elementos. O que fica para outra paragem.

Lilian Godoy Fonseca: Atualmente há muita discussão entorno da necessidade da preservação da natureza. Quais são, no seu entender, as contribuições teóricas mais relevantes para esse debate? E o que devemos ou deveríamos extrair de suas respectivas formulações para o âmbito prático?

Antonio Valverde: Penso que as propostas do Ecossocialismo devem ser seriamente consideradas, tanto pela sua síntese teórica como pela prática proposta. O Manifesto ecossocialista destaca, de saída, que o problema não é o clima, mas o sistema capitalista, globalizado. Logo, a questão é mudar o sistema. Tarefa irredutível, para muito além da redução de tudo à mercadoria. Afinal, o capital é o fator imanente de todas as crises e destruições. A tese do Manifesto é que não há como reformar o modo de produção capitalista, o capital transformado em protetor da natureza. Como projetam ideólogos neoliberais conciliadores, alguns em torno da The Economist. Porque não é da lógica do capital tal finalidade. Ao contrário, o capital opera desde a “destruição” da natureza.

No mesmo passo, mas, pela linha do reformismo, a Encíclica Laudato Si’ roteirizou a necessidade de preservação da “casa comum”, a Terra, pelo viés da esperança e da mansidão ativa. Além da redução drástica do consumo de bens supérfluos, na linha das falsas necessidades. Simplesmente, porque a Terra não possui as dimensões de Júpiter. O que poderia motivar um padrão de vida frugal, sem miséria, sem desperdício. Além do registro autobiográfico do xamã Yanomami, Davi Kopenawa, em A queda do céu, a relatar como os homens habitantes da Floresta Amazônica sempre souberam manter o metabolismo homem-natureza, desde a ordem da natureza.

Antonio Valverde: Hans Jonas, em O Princípio Responsabilidade, de 1979, ao instalar a ética da responsabilidade, interrogou pela ambiguidade e irracionalidade dos fins da ciência e da técnica, em vista da degradação da natureza. De 1979 até o presente, a situação ambiental tem se degradado aceleradamente, por todos os setores da natureza. Assim, o pensamento jonasiano ainda pode contribuir para compreensão da crise do meio ambiente?

Jelson Oliveira: De fato temos que reconhecer que todos os esforços, de todas as áreas, implementados desde, pelo menos, a década de 1970 (quando Jonas publica a sua obra magna), têm sido insuficientes e absolutamente tímidos diante da gravidade do problema ambiental. Mesmo a “cientifização” do problema e o esforço dos cientistas ligados ao IPCC, a partir de 2007, principalmente, com a publicação periódica de relatórios apoiados em dados e estudos cuja evidência é incontestável, não foram suficientes para que a humanidade encontrasse um caminho ético e político para evitar que o modelo de desenvolvimento baseado na utopia do progresso técnico e, consequentemente, na exploração predatória da natureza, fosse substancialmente alterado. Hesitando entre um utilitarismo antropocêntrico (baseado em disciplinas ambientais que pensam a proteção ambiental para fins humanos), um ambientalismo de livre mercado (para o qual a privatização da natureza poderia ser uma forma de protege-la para exploração econômica), uma economia verde (centrada em uma visão utilitarista mais moderada, que pretende conciliar mercado e proteção ambiental), nossa civilização não conseguiu ainda alcançar o estágio – cada vez mais urgente – de um ambientalismo ético e político, que exigirá decisões de grande porte, tanto em termos econômicos quanto sociais, envolvendo diferentes agentes e começando por uma mudança de consciências em relação a questões profundas da vida humana, que envolvem a pergunta sobre o sentido da vida, o modo como podemos ser felizes e como isso envolve uma convivência com todas as formas de vida nesse Planeta.

Creio que o pensamento de Jonas faz parte desse movimento e seu mérito foi trazer o problema para o debate filosófico com a força de uma reflexão que se pauta em grandes fontes da tradição filosófica (propondo, inclusive, uma revisão crítica de muitas delas) e em um exame detalhado da ciência moderna, especialmente a biologia (segundo ele, ainda refratária do materialismo e do objetivismo que tornaram impossível um conhecimento adequado do fenômeno vital, abrindo-o para as ganas exploratórias que produziram a tragédia que bate às nossas portas agora). A grande questão levantada por Jonas tem, por isso, um valor ontológico (a vida, em suas variadas desenvolturas evolutivas, precisa ser reinterpretada para além dos enquadramentos metodológicos da ciência moderna e isso só pode ser feito quando o ser humano compreender a si mesmo como parte dessa aventura) e ético (a humanidade é a única capaz de responsabilizar-se, porque, na história da vida, ela é o acontecimento no qual a responsabilidade aparece como uma alternativa ou uma resposta à fragilidade da natureza).

Por isso, a obra de Jonas é atual por, pelo menos, três motivos: ela ajuda a compreender e, quiçá, superar, os horizontes fechados do materialismo, que tornou a vida um fenômeno mal compreendido; a evocar a responsabilidade do ser humano diante da fragilidade da vida, algo que se revela no mesmo instante em que crescem os poderes tecnológicos capazes de coloca-las, cada vez mais, sob o risco de extermínio; e, por sua ética, ela ajuda a refletir sobre a melhor forma de nos prepararmos para aquilo que Jonas chama de “era de sacrifícios”, na qual será preciso tomar medidas drásticas para que a humanidade possa sobreviver na Terra. Esses três elementos, conjuntamente, podem ser pensados como parte de uma filosofia que unificou o tema da vida, da técnica e da responsabilidade, realizando um diagnóstico nascido da reflexão de um pensador que atravessou e viveu os maiores dilemas do século XX, precisamente o século onde a gravidade dessa situação se mostrou de forma mais clara: o avanço do niilismo, as duas guerras, os progressos da tecnologia, o seu uso para a destruição (seja diretamente, como é o caso da bomba atômica e dos experimentos com seres humanos nos campos de concentração; seja indiretamente, como o uso dos combustíveis fósseis, que levam à destruição dos habitats naturais e à extinção sem precedentes da vida em nosso Planeta.

Antonio Valverde: Em Negação e Poder: do desafio do niilismo ao perigo a tecnologia, há uma reflexão circunstanciada acerca dos nexos entre niilismo e tecnologia. Por tal enquadre, comente a necessidade de a “natureza” dever figurar, eticamente, sob a responsabilidade humana.

Jelson Oliveira: Nesse trabalho eu pretendi desenvolver uma leitura que pudesse esclarecer como a tecnologia continua assentada sobre as marcas niilistas, tanto na esteira de Nietzsche e Heidegger, quanto do próprio Jonas, que foi bastante contundente nesse diagnóstico. Se Heidegger afirmou que a vontade técnica é uma expressão da vontade de poder (que estaria ainda no horizonte da metafísica), Jonas acompanhou outros pensadores que viram na guerra (especialmente, no seu caso, a Segunda), uma espécie de condensação das forças niilistas transformadas em forças de negação e, no limite, de destruição. Em outras palavras, a ideia de nada se transforma em um poder de destruição, uma força devastadora que se jogou contra a civilização e transformou uma das maiores conquistas da humanidade, advinda do conhecimento e da racionalidade, em armas de destruição em massa. Essa demonstração foi suficiente para Jonas identificar na tecnologia uma ambivalência que torna obrigatório que seu exercício seja acompanhado pela ética, como poder sobre o poder, ou seja, como medida de contenção dos possíveis e prováveis danos que derivam de seu uso. Mesmo onde a tecnologia é, pretensamente, utilizada para o bem, dada a magnitude inédita desses poderes, reside sempre em longo prazo e em alargada distância, a possibilidade de que consequências não previstas se tornem tão perigosas a ponto de colocar a vida em geral, incluindo a humana, em xeque.

Tendo feito da natureza um mero depósito de matérias primas à disposição do ser humano, a natureza se tornou, por isso, unicamente uma fonte material e o homem, um ser ignorante de seu próprio destino, vivendo como que acosmicamente, esquecido de que sua própria existência depende da integridade da natureza. Exemplo óbvio é a atual pandemia Covid-19, que resulta da doença que afeta o planeta e que está ligada à destruição dos habitats naturais e à consequente quebra de barreiras que impedem os agentes patógenos de nos alcançarem. Jonas, por isso, pensa a natureza a partir de seu  valor intrínseco, deduzido do esforço autoafirmativo da vida, considerado por ele como o testemunho mais evidente do seu próprio valor: se a vida quer viver, é porque viver é um bem e, se é assim, é também um valor e emite um apelo de dever, cuja audiência está no ser humano, o único capaz de ouvir um tal apelo. Além disso, para Jonas, se só o ser humano pode se responsabilizar, então isso significa que ele só se realiza plenamente quando assume essa responsabilidade – em outras palavras, a natureza, que ele mesmo é e ele, como parte, deve cuidar, o ser humano tem a chance de realizar-se plenamente como humano.

Se Aristóteles escreveu, na primeira linha da Metafísica, que todo homem tende à racionalidade, podemos dizer que em Jonas todo homem tende à responsabilidade. E é assim que a responsabilidade diante da natureza se torna a alternativa mais radical ao niilismo: se a tecnologia tem sido uma espécie de fuga e de negação do mundo, a ética da responsabilidade é um convite a um novo vínculo com o Planeta, uma forma de aterrar (para usar o conceito de Bruno Latour).

Antonio Valverde: Frente à iminência da catástrofe ambiental, o que deverá ser realizado, de modo urgente, para impedi-la? Pergunto, tendo como referência o Capítulo “Econopornografia e responsabilidade”, de sua autoria, em Terra Nenhuma.

Jelson Oliveira: O que eu chamei de ecopornografia é uma relação com a natureza aos moldes da relação pornográfica que elimina o erotismo para ficar apenas com a exploração. Não há nenhum amor aí, apenas interesse e objetificação, patrocinado pela tecnologia do detalhe, que prefere os ângulos fechados e as ações privativas, em detrimento das visões do todo e das ações coletivas. Trata-se da descrição de uma relação conturbada que termina sempre em morte e alienação. É o modelo praticado no Brasil, revestido de um colonialismo crônico, nunca superado, que articula a pretensa modernização com o que há de mais atrasado e retrógrado, representando, por exemplo, pelas forças mais truculentas do agronegócio latifundista, cujas práticas agropecuárias são ultrapassadas, tanto quanto suas práticas trabalhistas, sociais e políticas: o mesmo fazendeiro que põe fogo no seu terreno, extermina todas as formas de vida que ali poderiam existir, aterra fontes de água, polui rios, contrata mão de obra escrava e conta com o apoio do governo que ele elegeu e apoia. Ele é um ecopornógrafo porque ele é um também um ecocida.

É essa visão que precisa ser combatida. Esse tipo de relação com a natureza precisa ser fiscalizado, condenado, proibido, multado, punido... porque seus custos afetam toda a sociedade, em larga escala. Isso significa que é preciso mudar as consciências, o que se faz com o debate constante, a vigilância de todas as instituições, públicas e privadas, a educação ambiental, o financiamento de pesquisas e o investimento em tecnologias ecologicamente adequadas. É um esforço que vise a mudança do estilo de vida das pessoas, incluindo no seu cotidiano as preocupações e a responsabilidade. Jonas deu dois caminhos práticos: a heurística do temor e a futurologia comparativa. Do ponto de vista ético, isso significa: investir sempre em uma análise das consequências em longo prazo das ações humanas e, além disso, dar preferência para o prognóstico negativo, ou seja, para o pior, a fim de despertar a responsabilidade capaz de evitar que isso venha a acontecer. O que fazemos hoje? Não pensamos no futuro e, consequentemente, não acreditamos que o pior previsto venha de fato a acontecer. Não por acaso, o negacionismo climático é um dos fatores que mais contribuem para que as mudanças necessárias sejam efetivadas. Esse é um dos aspectos que mais dificultam, atualmente, o enfrentamento do problema ambiental. Como toda cura, essa também começa com o reconhecimento da doença. Jonas, nesse caso, também é útil: ele ajuda a entender o problema e oferece os instrumentos para o seu enfrentamento. E como toda boa filosofia, a dele também está aberta a críticas e complementações, que são parte da estratégia que todos nós podemos assumir ainda hoje, principalmente aqueles/as que nos interessamos pelos temas da ética ambiental.

 


[1]. Alusão ao título de outra relevante obra jonasiana: Potência e impotência da subjetividade (1981).