Crise da Representatividade: professores discutem a reforma política brasileira

Nádia Junqueira Ribeiro

Doutora em Filosofia (Unicamp) e assessora de comunicação/Anpof

22/09/2017 • Entrevistas

Diante de uma das maiores crises políticas desde o período de redemocratização do Brasil, a Câmara dos Deputados encerrou nesta semana (19/9) a votação da Reforma Política proposta na PEC 77/03, cuja relatoria esteve nas mãos do deputado Vicênte Cândido (PT/SP). A operação Lava-Jato e as dezenas de denúncias que atingem em cheio membros do Executivo e Legislativo aceleraram esta votação. De um lado, havia a profunda descredibilidade da população diante dos representantes destes poderes e a expectativa de resposta a este cenário de corrupção endêmica. De outro, havia parlamentares denunciados preocupados em manter o foro privilegiado.

Não por outra razão, tentavam a aprovação do Distritão, que, na prática favoreceria a reeleição dos parlamentares por se basear nos votos majoritários, o que privilegia o personalismo. No sistema proporcional, adotado hoje em nosso país, para um deputado se eleger, é necessário calcular seu número de votos combinado com a quantidade de votos dados ao partido ou à coligação. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) não foi aprovada porque não atingiu o mínimo de 308 dos 513 votos. A matéria foi derrubada em primeiro turno e não pode mais ser discutida no Congresso neste ano. O fundo partidário, contudo, ainda não foi votado.

Para discutir sobre esta reforma política e o cenário que impulsionou esta votação a Anpof convidou dois professores doutores que pertencem ao GT Ética e Política na Filosofia do Renascimento: Alberto Barros (USP) e José Antônio Martins (UEM). Nesta entrevista eles analisam a crise da representatividade do país e no mundo, o prejuízo que Distritão traria caso aprovado, os prejuízos das campanhas caras e sobre a discussão do parlamentarismo como possível resposta à crise.

O distritão, ao optar por eleger os candidatos mais votados sem considerar percentual da legenda, acabaria por favorecer figuras que são mais conhecidas. Este sistema prejudicaria o aparecimento do "novo"? Qual prejuízo para política?

José Antônio Martins: A proposta do distritão pioraria o quadro da representação política atual, que já é extremamente injusto, por ser desproporcional. Por essa proposta, grupos políticos minoritários com muita representação (latifundiários, empresários, brancos, homens, cristãos) ocupariam quase que completamente as vagas nos legislativos. De fato, precisamos de uma reforma política que torne o legislativo mais representativo da diversidade política de nossa sociedade, todavia, o “distritão” apenas acentuaria uma desproporcionalidade já existente.

Por que acentua, poderíamos perguntar. Porque saem na frente desta disputa aqueles que detém maior poder econômico (e podem financiar campanhas vultosas, como foi o caso da campanha do atual prefeito Dória na cidade de São Paulo), bem como aqueles que detém o controle dos meios de comunicação (rádios, jornais e TV), lideranças religiosas, enfim, mesmo que sejam nomes novos, eles seriam representantes dos mesmos estratos políticos, sociais e econômicos dessa pequena elite política brasileira. O distritão privilegiaria a escolha de membros dessa pequena elite política, que não por acaso, propõe essa mudança.

Alberto Barros: Se o distritão fosse aprovado, prejudicaria a necessária renovação no exercício dos cargos políticos, como de deputados e senadores, porque deve favorecer os candidatos que já exercem uma legislatura. O prejuízo para a democracia seria imenso, porque o princípio da rotatividade, fundamental para que a permanência prolongada num cargo não gere profissionais da política, ficaria prejudicado. Sem a necessária alternância nas funções políticas, o risco de fazer uso do cargo em benefício próprio é imenso.

Quais as consequências de favorecer o personalismo na política?

J.A.M.: É evidente que há uma crise nos partidos e uma crise da representatividade, isso não somente no Brasil, mas em várias democracias ocidentais. Essa fragilidade partidária, amplificada pela profusão de partidos, sem qualquer identidade política ou pragmática, sendo tão somente legendas de aluguel, como forma de captar recursos financeiros, resultou em um descrédito quase total dos partidos, com poucas exceções, talvez os partidos do campo da esquerda, embora eles também tenham sérios problemas. Ora, o distritão pioraria ainda mais esse quadro, pois os representantes dos legislativos seriam, principalmente, despachantes de interesses locais frente ao executivo.

Tomemos, por exemplo, o caso de deputados federais eleitos por regiões do interior, que congregariam várias cidades para formar um distrito eleitoral. O eleitor, agora mais do que nunca, seria um intermediador das demandas dessas localidades junto ao executivo federal, convertendo-se em uma espécie de “lobbista” da região em Brasília. Situação essa que já existe de certo modo com a aprovação, durante o governo Dilma, do “orçamento impositivo”, na qual o executivo tem que executar as emendas impostas pelos deputados. Ora, essa medida, tornou os deputados administradores locais, que avançam sobre uma parte do poder executivo, na medida em que impõe, principalmente, obras para serem executadas. Com o “distritão” teríamos o reforço dessa condição, podendo mesmo afirmar na volta de práticas coronelistas das piores possíveis, visto que, por esse novo modelo de representação, os eleitos teriam um poder muito grande sobre o contexto político da região que o elegeu.

Pior do que enfraquecer ainda mais os partidos, essas medidas tendem a bloquear um projeto estruturado de nação, pois os particularismos seriam acentuados no Congresso Nacional. Isso sem contar na piora da governabilidade, pois o executivo central tornar-se-ia, mais do que nunca, num grande balcão de demandas locais, agora institucionalizadas.

A. B.: A chamada crise de representatividade não é exclusividade do sistema político brasileiro. É um fenômeno presente na maioria das democracias representativas e aponta para a necessidade de repensar o funcionamento da própria democracia representativa, que mostra claramente sinais de esgotamento. Este é um problema mais amplo que precisa ser discutido. Se o distritão fosse aprovado, realmente acentuaria ainda mais o personalismo já existente em nosso sistema político. Este personalismo tem raízes profundas em nossa cultura política. A nossa história política é contada muito mais pelas personalidades que ocuparam o poder executivo de Estados e da União do que pelos partidos políticos. Com raras exceções, esses partidos já estão há muito tempo fragilizados e servem apenas formalmente para personalidades ocuparem o poder.

O financiamento privado de campanha é proibido pelo STF. Contudo, tentam aprovar o chamado "fundão" com um limite bilionário para o financiamento de campanhas. Quais os prejuízos de campanhas caras para a democracia e para o limite bilionário de um fundo eleitoral?

J.A.M.: Um dado recorrente desde a redemocratização foram os problemas envolvidos com o financiamento de campanha. Um dos grandes problemas do governo Collor, ainda que não tenha sido o motivo de seu impedimento, foi os “restos de campanha” que ficaram para ser administrados por PC Farias, seu tesoureiro de campanha. Desde aquele momento, passando pelos escândalos do governo FHC, o “Mensalão” petista (não custa lembrar que no aniversário de Delúbio Soares em 2004 foi noticiado um congestionamento de jatos em sua fazenda em Goiás), até os casos relatados na operação “Lava Jato”. Enfim, nessas últimas décadas, as campanhas eleitorais foram oportunidades de arrecadar dinheiro ilícito, quando não, de lavar dinheiro por todos os grandes partidos.

Já está mais do que demonstrado que os partidos, tanto os pequenos, que vendem seu espaço para os grandes, quanto os grandes, que foram sempre grandes captadores de recursos, utilizavam a estrutura partidária para arrecadar recursos ilícitos. Isso era uma prática indiscriminada, isentando-se talvez o PSOL e mais um ou outro partido. Até hoje o argumento de defesa de todos os partidos implicados em acusações na operação “Lava-jato” foi declarar que o que faziam estava na lei, mas nenhum deles faz qualquer menção a moralidade desta prática de arrecadação de recursos por meio do famoso “caixa 2”. Agora que essa prática está em questão, a proposta de um fundo bilionário, que nasce da relatoria do deputado petista Vicente Cândido, é para continuar essa prática por outras vias, visto que por essa proposta as burocracias partidárias terão o controle direto desses recursos. Contudo, pior de tudo isso, é o pouco debate sobre essas propostas.

Estamos vivendo uma época de negação do campo do político, cujo sintoma maior é o impedimento do debate, a falta de abertura para um confronto amplo e franco de ideias e argumentos. Mais do que nunca, vivemos em um momento político no qual a isegoria, o direito a fala pública, as disputas argumentativas públicas, que sempre caracterizaram a força dos regimes políticos, estão bloqueadas, anuladas. Limitar ou mesmo impedir o debate sobre as reformas políticas e reduzir o espaço das campanhas ou limitá-los às formas bem controladas e pasteurizadas é próprio dessa oligarquia que não quer deixar perder de seu controle sobre qualquer aspecto da esfera política.

A. B.: O principal prejuízo de campanhas caras para a democracia é que apenas candidatos com capacidade de financiar sua campanha eleitoral – seja por meio de recursos próprios ou seja por financiamento de grandes grupos empresarias – podem ter chances efetivas de se eleger. Desse modo, o princípio democrático de que todo cidadão pode exercer uma função política deixa de existir na prática, comprometendo todo sistema político.

Hoje temos um governo rejeitado por 80% da população. A mesma porcentagem aprovava a sua investigação pelo STF, o que foi blindado pela Câmara dos deputados em trocas de apoio à luz do dia. As mulheres são 51% da população brasileira, mas ocupam só 10% do Parlamento. Apenas 20% dos deputados federais são negros, enquanto entre a população são mais de 50%. Já os empresários ocupam pouco mais de 40% e os ruralistas, outros 30%. O que deixa o empresariado do campo e da cidade com 70% das cadeiras da Câmara. Essa falta de representatividade é refletida na atuação parlamentar?

J.A.M.: Sua pergunta já tem a resposta: o atual congresso, bem como o atual executivo federal e o judiciário, esse em todas as suas instituições (magistratura, ministério público e polícias), refletem a injusta representação de classe, raça e gênero de nosso país. Neste sentido, não é somente o congresso nacional que é desproporcional, logo, produzindo medidas desproporcionais, injustas, donde a sua impopularidade. O mesmo se diga para um poder executivo composto majoritariamente por homens, brancos, velhos, ricos, cristãos e heterossexuais. Mas olhemos adiante e vejamos as figuras de proa da magistratura e do ministério público, das polícias. O quadro é o mesmo. Infelizmente, após a redemocratização, muito lutamos para superar essas desigualdades, mas ela é persistente em nossa sociedade. Não é sem razão que agora, além da baixa aprovação do executivo e do legislativo, o judiciário comece a frequentar esse campo de rejeição.

A. B.: É claro que a falta de representatividade das mulheres, dos negros e de outras parcelas da população resulta numa legislação pouco favorável aos seus interesses. As leis propostas e aprovadas no Congresso Nacional acabam por favorecer essas categorias – empresários, ruralistas etc. – que têm uma alta representatividade. O resultado é a manutenção dos interesses dessas categorias em detrimento das necessidades e demandas de grande parte da população brasileira.

As reformas trabalhista e previdenciária foram amplamente rejeitadas pela população, mas aprovadas ou caminham para aprovação no Congresso. Por que há um descompasso entre a atuação desse parlamento e a demanda da população?

J.A.M.: Porque esse parlamento em particular foi eleito para executar essa pauta conservadora e regressiva. As causas devem ser buscadas já nos anos de 2013 e 2014, quando uma ação ostensiva de setores poderosos e reacionários se organizaram para eleger uma maioria parlamentar que representasse seus interesses. A também denominada “bancada Eduardo Cunha” ou “Centrão” foi eleita exatamente para cumprir essa pauta. Por isso que muitos já perceberam que não basta criticar Michel Temer e pedir seu afastamento. A sua saída não significaria a paralisação dessas medidas que implicam na perda de direito e depredação do país.

A questão que muitas vezes evitamos diz respeito ao modo de funcionamento político e eleitoral que gerou esses atores políticos escandalosos. O problema está em tentar desmontar um sistema que acabou gerando um congresso que em sua ampla maioria opera para desmontar as políticas públicas, abolir direitos e garantias, dilapidar as riquezas nacionais. Esse congresso foi eleito, possui legitimidade política. Boa parte dos ministros de Michel Temer são congressistas e foram regularmente votados e eleitos. Portanto, há uma questão anterior que diz respeito ao modo como políticos desse matiz, com esse perfil ideológico se tornaram majoritários no Congresso e estão conduzindo esses retrocessos.

A questão deve se voltar para a lógica de funcionamento da vida política institucional. O nosso problema é muito menos de democracia e muito mais de república ou do atual ordenamento republicano. Acerta quem afirma, mesmo diante desse quadro que nos parece caótico, que as instituições estão funcionando normalmente. O normal é isso, instituições que são o retrato da elite que as concebeu.

A. B.: O descompasso entre a atuação dos congressistas e as demandas da população é fruto do descaso com que a maioria dos eleitores elege seus representantes e depois do desinteresse dos eleitores em acompanhar o trabalho dos congressistas. Primeiro, não há empenho dos eleitores em conhecer os candidatos, votando muitas vezes em cima da hora em qualquer um, e depois muito menos em vigiar aqueles que foram eleitos. Parece que há um desânimo dos eleitores, provocado talvez por um ceticismo ou por um conformismo em relação à política. Quando há pressão por parte dos eleitores, o que exige tempo e disposição, que nem sempre existe, os congressistas acabam cedendo, até mesmo pelo interesse em ser reeleito. Se não há esta vigilância nem esta pressão, é claro que os congressistas atuam de acordo com seus interesses particulares.

O parlamentarismo aparece, nesse contexto, como resposta à necessária mudança na estrutura política. O que ele mudaria? Ele fortaleceria ou fragilizaria a democracia?

Rousseau afirma no Contrato Social que países com grandes extensões devem ser administrados por governos fortes e centralizados. Creio que o Genebrino tenha algo a nos dizer. Um país como o nosso, que é um continente, com suas inúmeras diferenças e diversidades, poderia ficar paralisado conforme o modelo de parlamentarismo que fosse adotado. Neste momento, com esse congresso deslegitimado, não é crível que nasça um parlamentarismo que refletisse a pluralidade e diversidade nacional. A partir desses pressupostos é mais provável inferir que teríamos um modelo oligárquico, restritivo e fechado, transvestido de parlamentarismo.

Essa proposta de governo parlamentarista reforça ainda mais o controle da nação nas mãos dessa pequena elite, ou seja, um regime oligárquico na sua pureza absoluta. Se, ao contrário, vivêssemos em um contexto de sadia e efervescente participação política, nesse caso a proposta poderia significar um avanço em termos de ordenação política. No atual contexto significa justamente o contrário.

Qual a relação, possível, entre essa proposta de mudança e a crise de representatividade?

Talvez não estejamos dando grande atenção para uma dificuldade anterior que é a crise do campo do político como um todo. O que assistimos hoje, não somente no Brasil, mas em vários países, é uma crise da esfera política que se percebe, entre outros fatores, na negação dos políticos tradicionais, mas principalmente, na forma tradicional de fazer política, na vinculação aos organismos institucionais tradicionais (partidos, associações, sindicatos, organizações sociais).

Veja que também os sindicatos passam por uma crise de representatividade, com eleições e assembleias esvaziadas. Essa condição atual faz com que alguns cientistas sociais já não denominem as manifestações públicas ou passeatas como fruto de um movimento social, mas como eventos sociais, tendo em vista seu caráter fluído e efêmero. Enfim, mais do que uma crise de representatividade dos atores políticos e dos partidos, há uma crise no modo de vinculação da maioria das populações nas sociedades de massa ao campo do político, cuja atual crise é apenas um dos sintomas. Ora, não será com medidas pontuais, que aprofundam essa separação do grosso da sociedade com as esferas decisórias, que teremos a superação dessa condição.

Alberto: O parlamentarismo é um sistema que pode fortalecer a democracia pelas suas características. Mas a sua implementação pressupõe a existência de partidos políticos consistentes, o que não é o caso do Brasil. Além disso, a cultura política brasileira é fortemente presidencialista. Assim, uma proposta de mudança sem os pré-requisitos necessários e sem uma ampla e profunda discussão parece mais um oportunismo do que uma solução. 

 

ANPOF 2017/2018





 

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