Desconstruindo barreiras: GT Filosofia e Gênero entrevista Cristiane Ayoub, Daniela Rosendo, Tânia Kuhnen, Ilze Zirbel e Anahí Mello

Valéria Cristina L. Wilke

Professora de Filosofia (UNIRIO); Integrante do GT Filosofia e Gênero

Solange Aparecida de Campos Costa

Professora de Filosofia (UESPI); Integrante do GT Filosofia e Gênero

04/06/2024 • Entrevistas

Entrevista publicada em parceria com a Revista Humanitas - edição 175

Os pontos de vista de pesquisadoras do nosso tempo sobre as novas fronteiras entre temáticas emergentes da filosofia que abrangem a preservação do meio ambiente, o estupro, o ecofeminismo, o etarismo e o capacitismo.

Nesta entrevista, adentramos em um diálogo com cinco pesquisadoras brasileiras cujas investigações abordam temáticas atuais, emergentes e desafiadoras, dentro e fora da academia. Com perspectivas inovadoras e comprometidas, nossas convidadas exploram as intersecções entre gênero, preconceitos, violência, e preservação do meio ambiente, enfrentando questões prementes como estupro, ecofeminismo, etarismo e capacitismo.

Em um mundo em constante transformação, Cristiane Ayoub (UFABC), Daniela Rosendo (CESUSC), Tânia Kuhnen (UFOB), Ilze Zirbel (CESUSC) e Anahí Mello (CLACSO) estão na vanguarda da reflexão crítica e da ação transformadora, desafiando paradigmas estabelecidos e propondo novos caminhos para uma educação mais inclusiva, justa e ambientalmente sustentável. Suas pesquisas não apenas identificam os desafios enfrentados por grupos marginalizados, mas também oferecem estratégias pedagógicas para superar essas barreiras e promover a mudança social.


Gênero e violência
Solange Costa entrevista Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (UFABC)

Sua atual pesquisa se concentra na “pudicícia” como uma forma de opressão que incidia sobre as mulheres na antiguidade tardia. Qual é a contribuição desse estudo para pensar a violência de gênero na atualidade?

Cristiane Negreiros Abbud Ayoub: A pudicícia era a virtude que ditava o valor moral e a participação social das mulheres na Roma Antiga. A dinâmica que essa falsa virtude impunha à vida das mulheres era restritiva, injusta e violenta. Vou rapidamente falar dela em Roma, porque, sendo uma sociedade distante no tempo e no espaço, seu exemplo facilita identificar tais aspectos. E tenho certeza que essa exposição vai causar incômodo, porque perceberemos que muitos deles ainda vigoram hoje. Em Roma, a pudicícia era associada à pureza e religiosidade de mulheres virgens ou casadas uma vez (uniuira). Regulava as práticas sexuais (vigiava os leitos matrimoniais) e garantia o pertencimento moral das famílias à sociedade. Como divindade, além de ritos e regras, protegia pessoas mais vulneráveis (mulheres e crianças), estando presente nos aspectos mais emblemáticos da cidade. Como virtude, ela dependia do reconhecimento social, sendo comemorada pela comunidade em rituais, competições e premiações públicas. Tratava-se, portanto, de uma virtude ao mesmo tempo privada e pública. Ela também representava o recato feminino da nobreza, estipulando coisas como o uso do “véu da pudicícia” em público, o “estilo da pudicícia” (frequentemente representado na estatuária), restringia os gestos (modo de olhar, de rir, calar e quando falar), ditava lugares a ser frequentados e evitados, pessoas com quem tinham contato. Tudo isso são restrições: como não se comportar, que funções não exercer.

Entretanto, tal aparência era considerada extremamente atraente e provocadora da libido masculina...

Vejam a contradição e a perversidade dessa virtude: vulnerabilizava suas praticantes às investidas masculinas, especificamente, ao estupro (segundo Tito Lívio e Valério Máximo). Em Roma, o estupro aniquilava a pudicícia. Assim, se a pudicícia podia ser definida como o fundamento de todas as virtudes femininas (São Jerônimo), então, a vida de uma romana estuprada estava arruinada, indesejável, odiosa, causadora de difamação e rejeição. Quando estupradas, para evitar o estado de impudicícia, as romanas imitavam a nobre Lucrécia, que, após ter sido estuprada, suicidara-se. Continuar viva, impudica, implicava que tipo de vida? Seu pertencimento social e sua autopercepção estariam arruinados. Ademais, as formas jurídicas revitimizariam as mulheres. Isso ocorre hoje. As romanas tinham protagonismo político?  Nem pensar. Salvo quando consideramos alguns momentos chave da história de Roma – fundação, rapto das sabinas, início da república, abolição do decenvirato – marcados por estupros. 

Como essa virtude chegou a nós?

A ligação entre pudicícia romana e honra brasileira ocorre via colonização, e está documentada no vocabulário da Língua Portuguesa, escrito por Bluteau. O dicionário da época do Brasil Colônia traz um verbete longo dedicado à “honra”: a honra feminina difere da honra em sentido amplo, traduz o termo “pudicitia”, e delimita-se a funções do gênero feminino numa sociedade patriarcal. No Brasil Colonial, o estupro arruinava a honra e, sem honra, a vida a mulher perdia direitos e pertença social. “Honra”, hoje, é um termo presente no Direito. Somente em 2023 o STF aboliu o uso da argumentação de defesa da honra de homens criminosos que violentaram mulheres! Essa demora confirma como a moral da pudicícia vigora estruturalmente na nossa sociedade. Meu trabalho denuncia a dinâmica violenta e restritiva dessa falsa “virtude”, que fixa ideais e costumes presentes em diversos aspectos da existência das mulheres.

Um tema fundamental na sua pesquisa é a questão do estupro e do suicídio. A partir dessas análises, você consegue pensar também em ações para lidar com a violência contra a mulher na área de filosofia no Brasil?

A meu ver, o estudo já é uma ação importante porque possibilita identificar e criticar diversas manifestações da violência de gênero. Trata-se de estudar para agir e evitar a reprodução de violências. Não se pode estudar o estupro como tema filosófico “em abstrato”. O tema é presente e próximo, e dialoga com a realidade atual. Assumindo minha abordagem feminista e progressista, eu estudo esse tema para identificar as raízes da violência de gênero, espalhadas pelas dinâmicas mais diversificas, e que estão exacerbadas no estupro. Assim, pretendo visibilizar, analisar, criticar, combater e propor outras maneiras de coexistência. Isso inclui a área de Filosofia no Brasil. É preciso promover mais clareza sobre o que é violência de gênero e trabalhar para erradicá-la. Politicamente, é necessário que os espaços decisórios e suas dinâmicas e regras sejam transparentes e sirvam ao combate de diversos tipos de violência, já que a violência de gênero no Brasil e na Filosofia brasileira reproduzem exclusões raciais, sociais, coloniais. Isso também deve incluir critérios utilizados para estabelecer os currículos dos cursos de Filosofia, as bolsas, os incentivos, os temas, grupos de estudos. Outro ponto urgente é reconhecer que infelizmente a Filosofia se tornou uma área de trabalho que não acolhe a maternidade. Já senti isso na pele e sei de muitas colegas que se exaurem para coordenar a maternidade com uma produtividade considerada apenas satisfatória.

Precisamos nos informar e estudar sobre assédio e estupro e discutir protocolos de denúncia e evitar o silenciamento e a perpetuação de violências...

Na filosofia, há muitos casos que foram calados, como se, ao serem denunciados, se tornassem ameaças à permanência das denunciantes na Filosofia. Importa estudar mais filósofas, atentando e discutindo o quanto elas estão atreladas a padrões de violências contra si mesmas e destacando sua reivindicação de igualdade de gênero nos mais diversos campos. Isso, além de propor mudanças ao repertório que tradicionalmente estudamos em Filosofia, ensina pelo exemplo: faz diferença, sim, para uma mulher, ler mulheres filósofas e não principalmente filósofos misóginos. Quanto aos filósofos, precisamos destacar os absurdos de seus textos em relação às mulheres e não simplesmente dizer que são filhos de seus tempos. Não se pode deixar de denunciar preconceitos, sob a pena de naturalizá-los. Há alguns filósofos que denunciam violências de gênero e isso merece espaço em nossa formação. Eu teria muito mais para dizer... Minha pesquisa é parte desse esforço amplo de identificar e erradicar essas violências que são frequentes na área de Filosofia no Brasil. Enfim, o assunto é longo e uma entrevista é curta. A mudança já está em curso!


Ecofeminismo e Filosofia
Valéria Wilke (UNIRIO) entrevista Daniela Rosendo (CESUSC) e Tânia Kuhnen (UFOB)

Vocês poderiam comentar sobre a importância do Ecofeminismo para o difícil momento de crise ético-política em relação às criaturas humanas e não-humanas, com as quais compartilhamos o planeta?

Daniela Rosendo e Tânia Kuhnen: O que chamamos de ecofeminismos — no plural mesmo — abrange um conjunto de discussões e práticas segundo as quais não podemos mais negligenciar o fato de que a visão ocidental está assentada em uma série de dualismos hierárquicos e oposicionistas — humano/natureza, homem/mulher, cultura/natureza, humano/animal, branco/não branco, normal/deficiente, hétero/homo, cis/trans, colonizador/colonizado. Os dualismos têm estruturado o conhecimento ocidental e as compreensões de mundo ocidentalizadas que, historicamente, estão na base da subjugação de grupos humanos e não humanos, conduzindo à destruição da vida individuais, de modos de vida coletivos, de diferentes espécies e do próprio planeta. Dentro dessa perspectiva, tudo o que está do lado inferior dos dualismos — natureza, mulher, animal, não branco, deficiente, homossexual, transgênero, colonizado — pode ser submetido à opressão, violência, exploração e dominação, tendo em vista à manutenção de privilégios e satisfação de interesses do lado superior dos dualismos — homem, cultura, humano, branco, hétero, cis, colonizador. Os sistemas de privilégios se entrecruzam para fortalecer a rede de vantagens para alguns, enquanto outros sofrem as desvantagens de forma interseccional em razão dos aspectos de gênero, raça e classe. Nesse contexto, em vez de nos percebermos como um continuum de relações de interdependência, vamos estabelecendo e mantendo diferenciações hierárquicas, que reproduzem a dominação, violência e exploração. Isso é chamado por Karen Warren de a “lógica da dominação” dentro da estrutura patriarcal e, acrescenta Vandana Shiva, capitalista-desenvolvimentista. Entendemos que essa lógica está na base da referida crise ético-política, da qual decorrem os diversos “ismos” de dominação: racismo, machismo, capacitismo, héterossexismo, especismo, etc. Por isso, é preciso desvelar a estrutura de dominação, em suas diversas dimensões e camadas, realizando conexões entre o funcionamento de diferentes sistemas de opressão que se reforçam mutuamente para garantir privilégios. Esse é o principal diagnóstico das autoras ecofeministas, a partir do qual podemos pensar em estratégias de enfrentamento da crise, sobretudo, contando com as experiências e saberes das mulheres de grupos subalternizados. 

Qual é o estado da arte da filosofia realizada no país?

No Brasil, temos buscado inspirações ecofeministas em diferentes estratégias de resistência à imposição de um modo de vida ecocida para imaginar outros mundos possíveis. É importante alimentar a mente e o corpo com a diversidade anticolonial para enfrentar nossas monoculturas mentais. Só assim podemos construir vias alternativas à “lógica da dominação” e caminhar no sentido de uma “lógica do cuidado”, de um emaranhado de percursos que reconheça as interdependências entre as diferentes formas de vida, para além da humana, em que redes de apoio e sustentação da vida em sua diversidade sejam a referência. Nesse sentido, a alimentação, por exemplo, torna-se uma questão filosófica, à medida que os modos de produção e acesso até o consumo e descarte de alimentos também são impactados por essas diferentes lógicas. Assim, eles podem ser, afinal, justos ou injustos, a depender da visão de mundo e dos modelos a que servem. 

Como lembra Ailton Krenak, a abstração civilizatória suprime a diversidade, nega a pluralidade e oferece o mesmo cardápio para todos...

E fazer conexões entre sistemas de opressão, nesse caso, é perceber como outros humanos são explorados para nosso interesse, outros grupos humanos estão perdendo suas terras e tendo seu modo de vida extinto pelas monoculturas e também os animais continuam sendo tratados como meros meios no sistema de exploração capitalista em massa. Pensar no cuidado nas relações de interdependência significa que a demarcação das terras indígenas, a propriedade coletiva das comunidades quilombolas, a agroecologia e a agrofloresta, o acesso à variedade alimentar de origem vegetal sem agrotóxicos, a possibilidade da escolha de uma alimentação sem ingredientes de origem animal são todas formas ecofeministas de construir redes de sustentação da vida. Tais práticas abrem espaço para a sociobiodiversidade e sustentabilidade genuínas, sem apelar para falsas soluções de mercado que mantêm o sistema capitalista de exploração.

Como tema emergente no campo filosófico, quais ações vocês consideram necessárias para que essas questões estejam devidamente inseridas na educação formal filosófica brasileira?

Nosso modelo de educação formal é estruturado a partir de uma ideia eurocêntrica de organização e sistematização do conhecimento, cujas fronteiras dualistas e hierárquicas descartam uma série de saberes e conhecimentos importantes para reconhecer nossa interdependência com outras formas de vida. A teóloga e ecofeminista Ivone Gebara, ao tratar de uma epistemologia ecofeminista, pontua que precisamos enfrentar a tese de que o conhecimento sobre as coisas está apenas na academia. Esse é também um espaço de desconhecimento sobre muitos aspectos da realidade. Não se trata, no entanto, de substituir uma forma de conhecimento acadêmico por saberes populares, por exemplo. Nesse sentido, temos entendido a proposta ecofeminista, a partir de uma conjunção entre teoria e prática, ou seja, uma práxis contextualizada que valoriza a diversidade e, portanto, não hierarquiza o conhecimento produzido em âmbito acadêmico em relação a outros saberes. O reflexo da não hierarquização não se restringe ao conteúdo, mas inclui também a forma. Saberes diversos pressupõem experiências, inclusive metodológicas, igualmente diversas. 

Segundo Gebara é preciso pensar o conhecimento a partir da “mistura e interdependência”, ou seja, de emaranhados de conexões que podemos ir estabelecendo entre diferentes saberes e conhecimentos, advindos de distintos lugares e posições, enunciados por diferentes sujeitos ou grupos sociais...

E por que não pensar também em aprender com os seres outros que não humanos? Um ponto importante seria discutir o que deve integrar os currículos diante do cenário das mudanças climáticas do antropoceno. De que currículo precisamos para nos apoiar em estratégias de construção de conhecimentos que nos permitam reposicionar nosso lugar de dominadores como uma espécie dentro da rede de interdependências na terra? Quais saberes e conhecimentos diversos devem integrar um currículo voltado para a superação do antropocentrismo supremacista branco? Precisamos caminhar, a partir de uma pedagogia freiriana, para uma educação voltada à práxis transformadora, segundo a qual nenhuma teoria ou campo de saber único, isolado, poderá conduzir à transformação das relações no mundo. Junto com bell hooks entendemos que a teoria precisa ser um local de “cura” para o mundo cheio de feridas que criamos. Só assim, as pessoas podem agir no mundo para se autorrecuperarem e recuperarem também o mundo. Nós encontramos nos ecofeminismos esse lugar de cura para os incômodos com a academia patriarcal-especista. A partir deles, dirigimos reflexões libertadoras, como bell hooks fez desde um feminismo antirracista ligado às realidades vividas fora da sala de aula. Dialogando novamente com Gebara, reconhecemos que estamos na maior crise do antropocentrismo, algo que vem sendo aceito no mundo intelectual, mas as ações concretas de mudanças são as pessoas que estão fazendo, por exemplo, com semeaduras para resgatar florestas e replantar nascentes de água.

Em suma, a educação formal precisa se reposicionar, reconhecendo e valorizando outras teorias, saberes e conhecimentos?

Sim, podemos aprender muito também com o que se convencionou chamar de educação em direitos humanos, voltada ao desenvolvimento de habilidades socioemocionais, para além das cognitivas. Evidentemente, é preciso se valer de toda a criticidade ecofeminista para superar os limites antropocêntricos que a educação em direitos humanos assimila, a partir de uma concepção liberal de direitos humanos, por exemplo. O que queremos enfatizar não é o conteúdo em si, mas a potencialidade de uma educação que desloca os sujeitos e viabiliza metodologicamente a valorização da diversidade. Trata-se de identificar o ponto de encontro entre a educação feminista, antirracista e decolonial com a ética do cuidado, para a qual os valores como a empatia e o cuidado importam moralmente. Temos apostado que, por meio desse caminho, podemos caminhar em direção à utopia ecofeminista de construir relações de cuidado que transformem as relações de poder e opressão e, consequentemente, permitam o florescimento dos indivíduos e da comunidade, seja ela local ou global.


Filosofia, Capacitismo e Etarismo
Valéria Wilke (UNIRIO) entrevista Ilze Zirbel (CESUSC) e Anahí Guedes de Mello (NED-UFSC)

No último encontro do GT Filosofia e Gênero da Anpof, vocês apresentaram duas temáticas pouco discutidas na filosofia brasileira: o capacitismo e o etarismo. Vocês poderiam falar um pouco sobre essas questões?

Ilze Zirbel: Para tratar dessas temáticas é preciso falar sobre os estudos da deficiência. Ainda pouco trabalhados pela filosofia brasileira, são estudos que nos levam a refletir sobre inúmeras questões conceituais e normativas relativas à incorporação humana e às nossas formas de viver, de ‘ser e estar no mundo’. Dizem respeito, de certa forma, à diversidade humana e às tentativas de redução e controle dessa diversidade pelo ‘dispositivo da capacidade’. Não apenas no plano da cultura, mas também no dos funcionamentos dos corpos e mentes. São estudos que envolvem questões teóricas e práticas relativas à identidade pessoal e social, a modelos educacionais e de arquitetura, às nossas ideias sobre sexualidade e desejo, sobre produtividade e afetividade, sobre dignidade e justiça social, sobre igualdade e direitos humanos, sobre sistemas de saúde, mercado de trabalho e modelos de família, etc. As ramificações de pesquisa são inúmeras e costumam subverter as maneiras como pensamos sobre nós e nossas relações sociais. Um campo propício à investigação do que é classificado e vivido como deficiência é a filosofia feminista, uma vez que possui uma postura crítica aos pressupostos e métodos tradicionais da filosofia e lida com temáticas bastante próximas às dos estudos da deficiência. Sem contar que, ao longo da história da filosofia, filósofos famosos classificaram as mulheres como humanos ou homens deficientes do ponto de vista da racionalidade ou da habilidade de governar — como foi o caso de Aristóteles.  É possível analisar a deficiência como um fenômeno histórico, sociocultural e político. E nesse ponto podemos apontar para o capacitismo, um conceito forjado pelos estudos da deficiência para indicar uma forma de preconceito: a ideia ou crença de que pessoas com deficiência são inferiores em relação às demais, que são vistas como pessoas sem deficiência ou mais “perfeitas”.

Anahí Guedes de Mello: Do ponto de vista da ontologia, a deficiência aponta para uma disrupção sobre o que seja o humano, o que é o normal, sinalizando que não há, por exemplo, uma racionalidade universal. A deficiência irrompe não só em relação às formas de pensar, mas também de ver, ouvir, tocar e andar. Quando uma pessoa não enxerga com os olhos, ou não ouve com os ouvidos, ela é lida como deficiente e passa a ser percebida social e culturalmente como “incapaz”. Por isso, o capacitismo impede a consideração de que é possível locomover-se sem ter pernas, perceber sons com os olhos, assim como os objetos e o mundo com os ouvidos e o tato. Da mesma forma, podemos pensar de outras formas, não hegemônicas. O capacitismo, no fundo, é um sistema de opressão em que o dispositivo da “capacidade” opera para praticar discriminações e violências contra pessoas com deficiência. É um sistema estrutural e estruturante por considerar muitas formas de corporalidades como sempre ‘em falta’ em relação a um outro hegemônico. As mulheres também sofrem capacitismo dos homens porque frequentemente têm suas capacidades físicas e intelectuais questionadas. Portanto, o sexismo é um sistema de opressão atravessado pelo capacitismo. 

É possível dizer que o capacitismo intersecciona, ou une-se com o sexismo, então. Que outros marcadores sociais se relacionam com o capacitismo?

Mello: O capacitismo é ora uma forma de discriminação contra pessoas com deficiência, ora uma normatividade corporal e comportamental baseada na premissa de uma corporalidade completamente funcional e capaz do indivíduo, isto é, a ordem "natural" é ter um corpo sem deficiências e doenças. Como a deficiência sempre foi pensada em relação a um modelo específico de funcionalidade e em meio a relações de poder, possuir vagina ou ter uma pele negra também sempre foi considerado um tipo de ‘defeito’ ou uma ‘falta’. Nesse sentido, o sexismo e o racismo interseccionam com o capacitismo, e com o etarismo, que é o preconceito contra uma pessoa com base em sua idade. 

Zirbel: No Brasil, assim como em outras partes do mundo, as pessoas idosas são as que mais sofrem etarismo. E há uma forte relação disso com o capacitismo, uma vez que o modelo de corpo e o de mente associados ao imaginário de um humano ideal não é apenas o de um homem que é branco, mas de um homem branco “produtivo”. Vivemos em um sistema social focado na produção de capital para alguns e que implica a exploração de quase todo mundo, em diferentes níveis e em todos os âmbitos, incluindo os familiares e afetivos. Nesse sistema, o processo natural do envelhecimento humano é uma “falha”, uma “deficiência” a ser rejeitada, uma vez que uma pessoa que envelhece não produz mais como “deveria” e pode demandar mais cuidados, o que também não é bem visto por este tipo de sistema. Envelhecer implica adquirir ou intensificar deficiências. Nos locomovemos com mais dificuldade ou mais devagar, enxergamos e ouvimos menos, esquecemos mais e mais coisas, podemos desenvolver demência ou Alzheimer, etc. O preconceito contra uma pessoa idosa é um preconceito etarista e capacitista, e ambos operam segundo a lógica da corponormatividade — que é um conceito importante para os estudos da deficiência e aponta para o fato de haver um certo tipo de corpo-mente considerado “normal” e, portanto, funciona como norma e modelo de bom, belo, perfeito… As pessoas com deficiência, em sua grande maioria, não se encaixam nesse modelo, assim como muitas outras. Nesse sentido, também a gordofobia ou a LGBTfobia interseccionam com o capacitismo.

Mello: No campo LGBTI+ temos profundas conexões com o campo da deficiência. Isso porque a população LGBTI+ vivendo com HIV/AIDS teve que ir além do ‘dispositivo da sexualidade’, indicado por Michel Foucault, acionando também o ‘dispositivo da capacidade’. A população LGBTI+ dos Estados Unidos dos anos 1980 teve que, tática e estrategicamente, lidar com políticas de acesso aos retrovirais, o que implicou a incorporação, nos debates envolvendo os direitos à saúde, da questão da doença/deficiência imbuída na própria ideia do que seria uma sexualidade saudável. Ou seja, a heterossexualidade é vista como uma sexualidade ‘saudável’ e ‘capaz’; a homossexualidade, uma sexualidade ‘patológica’, ‘não capaz’. Indo além, o que chamamos de ‘heterossexualidade compulsória’ (e por extensão, a ‘cisgeneridade compulsória’) é contingente ao dispositivo da capacidade, ou seja, a cisheterossexualidade opera com o dispositivo da capacidade e, portanto, a LGBTfobia é irmã do capacitismo. Dois exemplos claros de intersecção de pautas às populações de LGBTI+ e pessoas com deficiência são as lutas pela despatologiação de seus corpos e subjetividadades; e as lutas por direitos sexuais e reprodutivos, com destaque para o direito a viver a sexualidade da forma como lhes convier e o direito ao casamento e à constituição de famílias.

Zirbel: Com os exemplos dados até aqui já é possível perceber o quão fecundo é o campo dos estudos da deficiência para a filosofia, especialmente para a filosofia feminista.


Acesse aqui o pdf da entrevista na íntegra

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