Entrevista com Naiara Paula Eugenio sobre a filosofia estética Iorubá

Naiara Paula Eugenio

Doutora em Filosofia (UERJ)

17/11/2021 • Entrevistas

A origem da arte ioruba coincide com a origem da vida que cria a pessoa humana como uma obra de arte. Nesta entrevista com Naiara Eugenio*, doutora em Filosofia e estudiosa de Filosofia da Arte Africana, defende a importância de se abrir filosoficamente para o exercício de outras estéticas como forma de promover a vida humana. A pesquisadora argumenta como não é saudável ter uma única perspectiva do belo, tampouco filosófico, visto que reprime a expansão do pensamento em exercício do belo de modo mais amplo.

Nesta entrevista, conduzida por Adilbênia Machado e Thiago Dantas, ela explica sobre o papel feminino na Estética Iorubá, que retira a criação humana de uma exclusividade masculina, mas inteiramente dependente do feminino e não apenas no que diz respeito a gestação. Para Naiara, investigar a Estética Africana devolve o prazer intelectual e o prazer Estético, este de experienciar o belo, a partir e com nossas próprias características físicas e culturais, uma vez que a cultura brasileira é majoritariamente africana e indígena.

Acompanhe abaixo essa primeira entrevista da série teias ananseanas de filosofias africanas no/do Brasil feita com exclusividade para a semana da consciência negra da Anpof. Esta série é uma iniciativa do Eixo Filosofia Africana e Afro-Diaspórica da Associação de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e do GT Filosofia da Libertação, Latino-Americana e Africana da Anpof, dos quais Adilbênia e Thiago são coordenadores e integrantes, respectivamente. 

Dialogando com sua tese “Ìyál?wà: a origem da obra de arte iorubá”, qual a origem da arte iorubá?

A origem da arte iorubá está na vontade dos deuses de criar. Ela acontece quando o deus Olodumare pede ao deus Obatalá que crie a pessoa humana. Então, a origem da obra de arte está na origem da vida, visto que Obatalá, o deus artista, cria a pessoa humana como obra de arte. Isso está fixado no itan de criação da pessoa humana dos povos iorubás: que um deus artista, dotado de criatividade, produz uma obra de arte dotada de todas as potencialidades para sê-la, criar, recriar, inventar, reinventar, produzir, reproduzir. Ele se utiliza do barro, matéria feminina, para moldar a escultura e convida o deus Ogun, o especialista no uso das ferramentas, para desenhar os detalhes desta, como olhos, nariz, boca, dedos… Terminado o processo material, a obra volta para os cuidados de Olodumare que assopra seu emí, o movimento de vida. Portanto, o itan de criação da pessoa humana é o mesmo de criação da arte. A arte surge ao mesmo tempo que surge a humanidade. Isso nos dá entender a importância da arte na construção ou manutenção do que chamamos de humanidade, para a própria vida. Vida e arte não apenas se confundem, elas são a mesma coisa.

Como a Filosofia iorubá contribui para a construção de outras perspectivas na Filosofia Estética?

Bem, não é difícil imaginar um mundo visto por apenas uma perspectiva do belo, porque vivemos nele. E isso é altamente problemático para a manutenção da vida, como já sabemos. Eu gosto de pensar junto com a filósofa norte americana Kariamu Welsh-Asante, quando nos convida a refletir sobre os problemas que um mundo que, por exemplo, só vê beleza em corpos fenotipicamente caucasianos, traz para a vida em sociedade. Isso não é saudável para a manutenção da saúde mental dos povos que não se enquadram nesse perfil, e, tão pouco é filosófico, visto que reprime a expansão do pensamento em exercício do e para o belo de modo mais amplo. Quando o itan iorubá da criação da obra de arte diz que a pessoa humana é inseparável, porque é ela mesma, a vontade de criação, uma vez que você anula isso você anula, indiscutivelmente, a humanidade dessa pessoa. Reprimir e anular a expansão criativa, e isso inclui aqui, obviamente, a criação e experienciação do belo, é reprimir e anular a própria vida. Nesse sentido, se abrir filosoficamente para o exercício de outras Estéticas, promove a vida humana.

Qual o papel feminino na Filosofia Estética iorubá?

Essa é a parte mais extensa e talvez mais profunda do itan de criação da pessoa humana e que vou tentar responder brevemente.  Talvez, justamente por isso, e, obviamente, porque é a parte em que o feminino é ativo, não chega inteiramente na gente. O feminino é a própria noção de Estética iorubá, uma vez que, originalmente, somente o feminino ativo é capaz de produzir beleza, Ìyál?wà significa que Iyá, o femino iorubá, é quem produz beleza. Isso parte do ensinamento de que, diferente do que ficou fixado em nós, a criação humana não é exclusividade masculina, mas ao contrário disso, é inteiramente dependente do feminino e não apenas no que diz respeito a gestação. Então Ìyá produz a obra de arte que é a pessoa humana, o que os iorubás chamam de ?nàyíya, e a produz com beleza,  Ìyál?wà. Num processo que unifica o material e o imaterial da obra de arte, antes e depois e para além do nascimento da criança. Acredito que está muito na ordem do trabalho que é também físico, quando atua na gestação e manutenção de uma vida, mas muito intelectual, na própria ordem, da organização, do método; uma vez que o feminino organiza intelectualmente o mundo.  A leitura que se pode fazer é de uma junção do trabalho do artista (e aí não importa de qual energia), que seria impossibilitado de criar sem a energia organizadora do feminino.

Como a filosofia africana, em seu âmbito de pesquisa, contribui para repensarmos a filosofia produzida no Brasil?

Eu penso que o exercício filosófico de qualquer assunto já é uma boa contribuição para a formação intelectual e também emocional de um povo, já que cultivar um cuidado intelectual pode nos tornar pessoas melhores para a nossa comunidade. No caso da filosofia africana não estamos fazendo nada totalmente novo, apenas lendo traços comunitários que foram ignorados durante séculos como História e Filosofia, mas que estão intrínsecos à cultura. Aí eu penso que uma população que reflete tanto o pensamento africano - e eu preciso lembrar que a população preta é a maioria nesse país e no mundo, fora do continente africano - deve se ver representada intelectualmente também. Investigar a Estética Africana devolve o prazer intelectual e o prazer Estético, este de experienciar o belo, a partir e com nossas próprias características físicas e culturais, uma vez que a cultura brasileira é majoritariamente africana e indígena.

Encontrar beleza nas nossas produções artísticas dentro dos terreiros de candomblé, por exemplo, é algo que eu tenho gostado muito de fazer e entender junto com isso quais são os lugares de amostragens de artes que são considerados somente religiosos ou caricatos pelo ocidente; pensar nossas músicas cantadas em iorubá, as danças, a comida, o comportamento e tudo que é inspirado por isso, como por exemplo, o cinema, a literatura, artes visuais, performáticas e afins. É bom se ver enquanto produtor de beleza na arte e, acho que melhor ainda é se achar capaz de produzir belezas, uma vez que entendemos que somos belos e cheios dessas potencialidades e altamente capazes de apreciar o belo, diferente de quando os códigos são um emaranhado ocidental que foi tão cuidadosamente escondido de nós e, por isso,  fora da vivência cotidiana de nosso povo. Claro que é maravilhoso expandir nossas reflexões para todos os continentes, mas há um prazer especial em saber que diferente do que a colonização nos fez acreditar, nós também temos nossos códigos Estéticos e o usamos.

* Escritora, graduada e doutora em filosofia; Mestra em Crítica e História da Arte e estudante PhD em Estética e Filosofia da Arte Africana.