ENTREVISTA GIANNOTTI: MARX, WITTGENSTEIN E O CAPITALISMO HOJE (Parte I)

30/11/2017 • Entrevistas

Versão condensada de entrevista de José Arthur Giannotti a Vinicius de Figueiredo, publicada originalmente em Analytica, v.15, n.2, 2011, sob o título “Caminhos e Percalços de um Trabalho”. Giannotti é talvez o mais destacado “pai fundador” da filosofia acadêmica brasileira que tem a USP como matriz, nosso filósofo n.1, um bastião de sua ortodoxia “goldschmidtiana”, depois um defensor da tese de filosofia como ensaio, e também um estudioso que, a partir de Marx, empenhou-se em desenvolver um pensamento filosófico próprio (Crisóstomo, ed.)

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Vinicius de Figueiredo: As investigações efetuadas por Marx dirigiam-se a uma forma de sociabilidade capitalista que diverge da contemporânea. A seu ver, o que é preciso reter e no que é preciso inovar em relação ao quadro traçado por Marx, quando, a partir dele, procura-se compreender as formas atuais da sociabilidade capitalista?

José A. Giannotti: Uma simples oposição das forças do real não pode explicar o fenômeno da alienação tal como foi formulado pelo velho Marx e tal como ainda comparece nas crises do capitalismo contemporâneo. A contradição aparece quando as forças colocam em questão o que elas vêm a ser. Ora, somente existe contradição no logos, num discurso, nunca numa oposição de forças. E a alienação alucinante do capital financeiro termina por destruir suas condições de existência. Outras formas de alienação vamos encontrar no próprio mercado de trabalho, que perdeu sua inspiração internacional já antes da I Grande Guerra: sua identidade foi estilhaçada pelas diferentes formas profissionais determinadas pelo tipo de conhecimento que as conforma. A crise contemporânea nos joga num mundo contraditório, cujos pontos precisam ser estudados especificamente. Um deles não é a contradição entre um capital que espalha pelo mundo suas cadeias produtivas, mas ainda está emperrado por fronteiras nacionais? É preciso separar níveis, mecanismos internos, suas tentativas de solução, de convivência, antes de lamentar o poder avassalador do deus capital ou da crise do “discurso da modernidade”, esse mantra crítico cujo sentido me escapa. No fundo, é a política que nos apresenta essa teia. Antes que se torne norma e arte, a política ajuda a articular forças sociais existentes, assim como pode encobrir sua novidade, quando as encaixa em trilhos ultrapassados. E estou falando de política democrática que exprime interesses, mesmo quando estes aparecem sob a forma de demanda por reconhecimento e de qualidade de vida. (...)

O que estou propondo? Que certas categorias da velha Economia Política ainda podem ser recuperadas para que possamos refletir sobre o sentido histórico da inegável crise por que passa o sistema capitalista contemporâneo. Se a teoria do valor trabalho nada mais diz para a ciência da Economia contemporânea, cujos instrumentos não se baseiam no valor de troca, não é por isso que as trocas capitalistas não estão ligadas a contextos significativos produtivos, cujos resultados só podem ser trocados, se gerarem excedentes. E assim o capital se imiscui com a política. O lado político da economia não pode ser compreendido pela ciência, simplesmente porque esta não explica todos os meandros do jogo político. A ciência não explica a arte da política.

O novo capitalismo depende cada vez mais da invenção de novos produtos, por conseguinte de novas tecnologias patenteadas e monopolizadas. No modo de produção simples de mercadoria, todos os agentes terminam tendo acesso a todas as técnicas necessárias para a nova produção. É neste nível que a alienação do trabalho se configura, mas a alienação do capital, mais complexa, depende da produção do excedente. O sistema atual vive do monopólio da invenção, e assim perde a medida do trabalho social total. Ao invés de ser levado a um foco de onde surgiria a crise – a tendência da queda da taxa de lucro, como imaginou Marx – multiplica os pontos de ruptura, fazendo com que as velhas traves do sistema passem a fibrilar. E sem essa medida do capital social como limite, também se quebra o movimento internacional de resistência.

As resistências ao sistema não mais provêm do proletariado como um todo, porquanto o mercado de trabalho se trinca em categorias. A crise se instala sem que se forme a contradição portadora da semente da sua resolução. Daí a necessidade da intervenção política permanente. E como o sistema se globalizou, as intervenções dependem de novos organismos internacionais que ultrapassam as diversas soberanias nacionais. O Estado, na forma que hoje o conhecemos, nasceu junto com o capitalismo comercial. A crise do capital financeiro que abala todo o sistema está pedindo formas de governo que vão além do Estado nacional. Além do mais, o capital está levando o planeta à sua exaustão, o que mostra um limite que não foi pensado pelos clássicos. A direita mais enragée não nega insistentemente tudo o que dizem os cientistas da ecologia? De um lado ou de outro, instituições internacionais se fazem necessárias, mas o grande desafio é que elas venham a ser democráticas.

Se a alienação do trabalho já se instaura num modo de produção onde não há excedente, não é por isso que ela desaparece; mas a economia desaparece, se deixar de crescer. Todo trabalho está hoje em dia perpassado pelo conhecimento que vale porque promete conhecer mais. A linha de montagem tanto é um processo repetitivo quanto campo de novas experiências de ação e de tecnologia.

Pergunta: Mas estas instituições internacionais de que você fala não se expõem à objeção de que lhes falta legitimidade? Elas não se armam à margem ou em oposição ao Estado-Nação, lançando uma sombra sobre a ideia de soberania? E, admitindo que assistimos à relativização da soberania nacional, isso não implica relativizar também o conceito da democracia, tradicionalmente ligado ao ideal da soberania popular?

Resposta: Antes de tudo, é lindo falar da soberania popular sem firmar o pé na terra e lembrar que o povo, seja qual for sua unidade política, precisa ser alimentado e educado segundo um modo de produção. E as experiências socialistas do século XX mostraram claramente que qualquer planificação econômica não dispensa a indeterminação do mercado, isto é, o jogo da produção e do consumo que assinale o que pode e o que não pode ser produzido. Uma economia planificada pelo comitê central produzirá vidros grossos demais, se a produção de vidros tiver como parâmetro seu peso, ou finos demais, se este parâmetro for a extensão. O ajuste entre a produção e o consumo não dispensa este terreno movediço entre a produção e o consumo, de sorte que não vejo possibilidade de controlar politicamente as desigualdades provadas pelo modo de produção capitalista sem criar instituições capazes de regular os mercados, em particular, o mercado de trabalho mediante instituições que ultrapassam as fronteiras nacionais.

Ora, a soberania popular somente pode se exercer se um povo não estiver no limite da pobreza, se tiver opções possíveis de futuro. O povo grego pode recusar o aperto que a União Europeia lhe impõe, mas se não houver um diálogo entre as partes a vontade do povo cai no vazio, a Grécia sai da zona do euro e provavelmente o povo grego só poderá decidir como vai sobreviver fora do mundo moderno. Nas condições atuais, a soberania popular depende de um contexto de possibilidades dadas por condições internas.

Socialismo sempre significou superar o modo de produção capitalista para evitar a barbárie, mas não indicava como se articularia o novo modo de produção. Ninguém mais acredita que cada um teria o que precisasse sem depender da produtividade do trabalho de seu grupo próprio. Numa economia globalizada, nosso desafio é juntar produção de excedente e controle nacional e internacional do capital.

Visto que a ciência se transformou em força produtiva, cabe examinar e levar em conta como ela é produzida e determina as várias formas de concorrência capitalista e as políticas econômicas promovidas pelo Estado, principalmente se este for democrático. Nosso desafio é juntar produção de excedente e controle nacional e internacional do capital. Daí a importância de uma análise sócioeonômica da produção científica, na medida em que a ciência se transforma numa força produtiva e o conhecimento, num dos critérios para avaliar o valor da força de trabalho. Hoje carecemos de uma ciência do social que seja capaz de demarcar linhas do futuro. Depois de Marx e Engels, o comunismo propôs substituir a produção mercantil por uma produção programada por um comitê central que abolisse a propriedade privada dos meios de produção. As experiências do socialismo real do século XX mostraram a inviabilidade desse projeto tanto no plano propriamente econômico, como no plano político, visto que este centralismo gera a dominação burocrática e o terror. Mas o próprio Marx nos ensinou que a alienação do capital – ligada à sua forma trinitária – não se confunde com a alienação da mercadoria. Depois das experiências do passado não será possível imaginar um modo de produção que, embora mantendo a produção de mercadorias por meio de mercadorias, ainda conquiste um espaço político capaz de controlar e compensar as desigualdades criadas pelo capital produtivo? Não depende ele da produção de excedentes? Não havendo um mercado universal de trabalho, em que todas suas ações
fossem comparáveis, a alienação não se multiplica como a vassoura do aprendiz de feticeiro? E a arena política correspondente só pode ser a guerra?

Pergunta: Se a alienação do capital demanda permanentemente controle político, então a metamorfose por que passa a sociabilidade capitalista requer, de seu lado, formas inéditas de se fazer a política?

Resposta:O modo de produção capitalista forma um imenso jogo de linguagem da produção e do consumo que depende de intervenções do Estado para se repor. A globalização, por sua vez, requer intervenções supranacionais e supra-estatais. Daí eu insistir sobre o fato de que nosso desafio é tornar democráticas tanto o Estado como essas instituições supranacionais.

Pergunta: O que entender, neste quadro, por “democracia”? Catherine Colliot-Thélène, em seu último livro (La démocratie sans démos, PUF, 2010) defende que a interpretação democrática da soberania, inspirada especialmente em Rousseau, elide o fato de que a filosofia política clássica, de Hobbes em diante, tendeu a ver na soberania do povo, na melhor das hipóteses, uma ficção necessária à prática da política, sem, todavia, ter a pretensão de realizá-la. A “democratização” da soberania consistiria, sob esta ótica, em um partido interpretativo pouco afeito ao reconhecimento do fato de que a dominação política é um fenômeno inelutável da sociedade contemporânea. De seu lado, você afirma que a globalização do capital deve ser acompanhada pela criação de instituições supranacionais capazes de exercer algum controle sobre a extração do excedente e que sejam, ao mesmo tempo, sujeitas a um controle democrático. Mas demos, aqui, permanece reportando-se a “povo”?

Resposta: Se o povo perdeu sua base natural, não é por isso que unidade passa a depender de uma decisão. Ele tem sua história, se forma como nação que comporta diversidades e diferenças específicas. Os brancos, os pretos e os índios, os “nativos” e os emigrantes, todos podem se irmanar num jogo do Brasil contra uma seleção estrangeira, mas se diferenciam sob o modo como entram no mercado de trabalho ou nas universidades. Povo também é uma constante produção de identidade e diferenças. Por isso sempre penso a política como um jogo que, se tem suas regras próprias, possui resultados que nunca podem ser previstos. Parece-me ainda evidente que a forma Estado, tal como nasceu depois do Renascimento, está sendo profundamente modificada na medida em que a política internacional se torna mais premente e o império dá lugar a várias potencias que, a despeito de um confronto possível, dependem uma das outras. O Lebensraum de hoje é o mundo.

Não perco de vista que a política sempre possui apoios reais e nem ignoro que tem no horizonte os desafios de um modo de produção específico a um dado momento de sua história. Hoje me parece que o desafio é criar instituições sociais democráticas capazes de controlar e ajustar um modo de produção cuja cadeia produtiva se internacionalizou e o mercado de trabalho precisa de certos limites regionais. A própria produtividade desse trabalho depende de quanto ele é livre. O desafio é harmonizar a produção do novo e compensar as desigualdades. E o grau de democracia que teremos vai depender da democratização dessas novas instituições.

Pergunta: O que exatamente você quer dizer com isto?

Resposta: O jogo político tem duas faces, uma voltada para a situação específica do sistema econômico do momento, outra para as demandas de futuro na qual uma sociedade se desenha como ela espera ser. Convém não se esquecer que, num momento crítico, o homem dá sua vida no curso da política. E, no meio desse balanço, se forma reiteradamente um grupo que, em nome do todo, se apropria do Estado como fonte legítima do emprego da força. Ora, esses três poderes - organizador das forças produtivas, do consenso e do poder coativo - se imbricam hoje em dia de maneira muito peculiar. Aproximam-se uns dos outros sempre criando problemas cuja solução depende de uma intervenção direta dos outros parceiros. E tais intervenções cada vez mais dependem de maior conhecimento das respectivas situações. Não são poderes brutos. 

Alem do mais, a ciência se transformou em força produtiva e com isso se alteram suas formas de produção e divulgação. Isto, a meu ver, já se faz presente na constituição do valor. Insisto: não estou esperando que a teoria do valor trabalho tenha qualquer aplicação na teoria econômica atual, mais ainda acredito que ela ainda sirva para explicar o sentido histórico de um modo de produção que depende na base da produção de excedentes. Quando estudei Marx para compreender o modo capitalista de produção, somente podia entender a construção do equivalente geral, o primeiro passo da constituição da mercadoria como valor, se pensasse a relação de troca como um esquema operatório, onde as representações se mesclavam com determinadas formas de ação. Ainda estava sob a influência do modo sob o qual Quine concebia a identidade. Os valores de uso se tornam iguais num sistema que já é significativo, mesmo não sendo verbal. Por uns tempos, o tratei como um logos prático. Nunca imaginei assimilar todo o real ao logos, o que pretendi foi simplesmente indicar que certas práticas sociais são dotadas de lógicas próprias. Como se percebe, não caio na armadilha da crítica completa da identidade, mas procuro pensar essa identidade sendo diferentemente armada por cada sistema simbólico.

Identificar esse logos prático com um jogo de linguagem, tal como foi pensado por Wittgenstein, foi um passo natural na elaboração do conceito, sem que implicasse abandono da ideia original. Mas isto me lançou a fundo na filosofia da linguagem. Quanto mais eu relia o texto sobre a certeza, escrito por este filósofo, tanto mais me fascinava o jogo da bipolaridade das proposições, cujo seguimento depende de uma forma de vida, ao mesmo tempo em que a recorta. Forma de vida que só pode ser expressa por proposições monopolares. O exercício dos jogos de linguagem, isto é, pensamentos que no fundo se configuram como juízos, indica como a prática linguística se estrutura por juízos que dependem de juízos, que por sua vez estão se constituindo na base desse processo de ajuizar. Logos no seu sentido máximo.

ANPOF 2017/2018