Entrevista Linda Alcoff

Nádia Junqueira Ribeiro

Doutora em Filosofia (Unicamp) e assessora de comunicação/Anpof

04/01/2019 • Entrevistas

Panamenha, Linda Alcoff é filósofa e professora em The City University of New York nos Estados Unidos. Dos 15 aos 32 trabalhou, como imigrante latina, em subempregos, até que o título de doutora chegou e se tornou professora de Filosofia. Ela veio ao Brasil para participar do XVIII Encontro da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia que aconteceu em outubro de 2019 em Vitória/ES. Sua fala foi sobre epistemologia feminista decolonial. Nesta entrevista, a professora aproxima a situação vivida no Brasil com a eleição de Bolsonaro à vivida em seu país, com Trump. A filósofa indica que aqui, assim como lá, mulheres brancas apoiaram a candidatura porque buscam a proteção de seus interesses materiais. Ela indica, contudo, que a liberdade de mulheres brancas ricas só é possível a partir do trabalho de mulheres pobres. Alcoff insere em sua teoria esta distinção, argumentando contra um discurso universal e essencialista sobre mulher.

A autora também conta como nos Estados Unidos as mulheres filósofas têm buscado combater as desigualdades de gênero nas universidades. Hoje, no Brasil, a presença das mulheres na Filosofia decresce ao longo da carreira: 38% graduadas, 28% nos cursos de pós e 20% no corpo docente. Ela afirma que o cenário nos Estados Unidos é similar, mas ainda pior no que diz respeito ao corpo docente, pois são 17%. Para ela, a razão pela qual é mais difícil para mulheres avançarem na vida acadêmica é que elas não são vistas como criadoras intelectuais que desenvolvem novas ideias.

Curiosamente, seu site traz uma lista de todos seus subempregos até se tornar professora de Filosofia. Nesta entrevista, ela admite que faz questão de expor esta lista, demonstrando sua condição de mulher latina como filósofa nos Estados Unidos. Além disso, ela quer mostrar que essas experiências são recursos epistêmicos pois proporcionam vivenciar outro tipo de vida: a que a maioria das pessoas em seu país vive.

Ela também comenta, nesta conversa, sobre seu mais recente livro “Estupro e Resistência”, no qual a autora busca mostrar que as mulheres têm medo de falar sobre certas situações sexuais, porque não se encaixam no ‘modelo’ de estupro. Para ela, é necessário considerar as complexidades que envolvem o tema. Para ela, responder a tudo isso com ‘consentimento’ é pouco, porque ele pode ser produzido através de pressões econômicas e emocionais, entre outras.

Você veio ao Brasil falar no XVIII Encontro Anpof sobre epistemologia feminista. Como mulheres latino-americanas, como você é, nós nos deparamos como uma teoria universal que sentimos não nos endereçar. Você acredita que há um essencialismo próprio às mulheres? Se há, como as diferenças poderiam ser contempladas? Por exemplo, como mulheres negras, lésbicas, etc. Seria possível uma epistemologia decolonial feminista?

A categoria “mulher” é definida diferentemente pelo mundo. Existem formas comuns de opressão, mas não é claro que mulheres são oprimidas em todas as culturas. Então se pode ser uma mulher e mesmo assim não ser oprimida. Como o filósofo brasileiro José Crisóstomo de Souza, eu acredito que podemos falar em generalidades, mas não em universalismo ou essencialismo. A tentativa de formular a experiência de mulheres ou opressão de mulheres de um modo universal levará a erros coloniais, porque não estaremos abertos à possibilidade de que algumas culturas tenham divisão de gênero, mas sem opressão de gênero. Isto é encontrado em alguns grupos indígenas pelo mundo, onde mulheres têm poder econômico e político ainda que haja divisões de trabalho entre homens e mulheres. Também podemos encontrar grupos indígenas que tem conceitos de gênero, mas também reconhecem pessoas que hoje chamamos de ‘transgênero’ – esse termo tem diferentes significado, mas um deles é que algumas pessoas têm elementos de mais de um gênero, ou pode passar para outro gênero. Então a existência de um sistema binário de gênero, de significados e práticas não requer que todo indivíduo permaneça no seu gênero ou que novas combinações não sejam possíveis.

Então nós precisamos pensar sobre feminismo como possibilidade de criar coalizão sobre nossas diferenças enquanto consideramos alguns temas comuns de opressão, como violência sexual, dominação masculina, injustas divisões de trabalho nas quais mulheres fazem todo o trabalho social de reprodução da família e de cuidado. Nós precisamos de uma epistemologia feminista decolonial que irá nos ajudar a fazer um feminismo dialógico, que irá nos ajudar a comunicar para além das diferenças e chegará a um entendimento melhor das diferenças em nossas vidas, bem como de nossas similaridades. Mas nós não podemos apenas entender as mulheres como tendo vidas separadas e experiências separadas. Parte da razão pela qual diferentes mulheres conduzem diferentes vidas é porque nossas vidas estão entrelaçadas: mulheres ricas têm a capacidade de liberdade por causa do trabalho de cuidado que as mulheres pobres fazem para elas. Então as diferenças em nossas vidas não são apenas naturais, mas sociais.

A epistemologia decolonial feminista deve se tornar politicamente sintonizada às condições políticas e sociais que afetam negativamente nosso conhecimento. Não se pode mais acreditar que uma análise das condições das vidas de mulheres ou o significado de gênero possa ocorrer de um único local ou sem engajamento dialógico. 

No seu livro mais recente, Estupro e Resistência, você faz um esforço em demonstrar como a linguagem do debate público sobre estupro e violência sexual ainda não é capaz de mostrar a complexidade de nossas experiências de violência sexual. Você poderia nos falar sobre essas limitações e como muda-las?

Alguns eventos em nossas vidas são claramente representados pela categoria “estupro”. Alguns eventos claramente não são estupros. Mas há muitas situações em que ficamos no espaço entre. Talvez nós não digamos ‘não’ somente porque sentimos que não poderíamos fazê-lo. Nós precisamos construir um espaço no qual as vítimas possam falar dessas complexidades em nossas realidades sexuais e explorar seu significado, as implicações morais, para que possamos fazer mudanças reais. Muito frequentemente falamos de estupro apenas como coerção física forçada por um estranho. Mas há muita coerção sexual e pressões nas vidas sexuais das mulheres que envolvem problemas que não se encaixam nesse modelo de estupro.

Então o primeiro passo é tornar possível para as vítimas falar sobre esses tipos de casos e nos ajudar coletivamente a chegar a um melhor entendimento deles. Algumas vezes movimentos sociais antiestupros tornam difícil essas vozes serem ouvidas, porque nós queremos que a vítima nomeie sua experiência como ‘estupro’. Na minha experiência como ativista, por muitos anos, têm havido muitas mulheres com quem tenho falado que têm diferentes tipos de experiências, mas de alguma forma têm medo de falar sobre elas porque não se encaixam no ‘modelo’ de estupro.

Então eu argumento no meu livro que nós temos que considerar essas complexidades. E isto significa que nós temos que parar de olhar para o ‘consentimento’ como a solução completa, porque consentimento pode ser produzido através de pressões econômicas e emocionais, entre outras. Nós também temos que pensar sobre o que nós realmente queremos ser, e para isso nós precisamos de um conceito como ‘subjetividade sexual’, que desenvolvi nesse livro. Esta é uma ideia de criar pluralismo em nossas vidas sexuais nas quais nós temos uma habilidade de participar na produção normas sexuais e convenções de prática. Então nós temos que alargar as conversas públicas sobre a forma do problema e as soluções para o problema e manter as vítimas no centro da discussão, como as pessoas que mais têm conhecimento disso.

Recentemente, Carolina de Araújo, professora da UFRJ, publicou uma pesquisa sobre a presença da mulher na Filosofia no Brasil. Ela mostrou que a nossa presença na universidade decresce ao longo da carreira. Somos 38% entre os graduados em Filosofia, 28% nos cursos de pós-graduação e 20% entre o corpo docente do curso de Filosofia. A pesquisa foi importante para instigar a discussão sobre o tema. Nos Estados Unidos vocês vivem situação e discussão similares. O que, na sua opinião, pode explicar esses números? Como vocês enfrentaram essa situação nos Estados Unidos?

É interessante que nossos números são semelhantes aos de vocês, embora piores. Nós temos cerca de 25% de mulheres doutoras em filosofia, mas somente cerca de 17% delas são docentes. Desde a década de 1990 este número se estabilizou e desde então estamos paradas aí nesse lugar, sem progresso, penso que somente nos últimos dois, três anos me parece que a situação está ficando um pouco melhor.

A verdade é que a filosofia é um projeto social e coletivo de investigação; não é feito por indivíduos em seus espaços isolados, como alguns acreditam. Assim as condições políticas da vida social e das interações sociais na sociedade, como um todo, afetam a filosofia assim como afetam tudo o mais na sociedade. Existem preconceitos muito implícitos, assim como
preconceitos explícitos contra mulheres como líderes intelectuais. Assim, algumas mulheres podem ser vistas como grandes acadêmicas na história da filosofia, muito aplicadas e rigorosas em seu trabalho, mas não são vistas como criadoras intelectuais que desenvolvem novas ideias. Esta é a razão pela qual é mais difícil para mulheres avançarem na vida acadêmica. Além disso, algumas vezes as mulheres ainda carregam a responsabilidade da vida familiar em seus ombros, o que torna muito mais difícil publicar trabalhos.

Nos Estados Unidos nós temos lutado contra esta situação de diversas formas: 1) criamos organizações filosóficas para mulheres, assim nós temos um espaço social para fazer filosofia no qual haverá muito menos preconceito contra nossas ideias – nós ainda teremos críticas, mas serão críticas produtivas ao invés de críticas negativas desnecessárias. Isto tem sido muito importante para que jovens mulheres tenham um espaço para desenvolver suas capacidadesde discurso e de debate. Foi assim que me desenvolvi como filósofa. 2)Nos organizamos para fazer reformas em nossa profissão, para defender que conferências e cargos de lideranças organizacionais tivessem mulheres, e em alguns casos, tivessem metade de mulheres na liderança. Isto fez uma enorme diferença, porque significa que aquelas mulheres na liderança conhecerão mais mulheres do que os homens líderes conhecem, e então podem sugerir mulheres palestrantes e membros de organização para ajudar a abrir o campo. 3)Temos nos organizado para fazer mudanças nas publicações. Nós criamos revistas separadas para publicar filosofia feminista porque revistas regulares não estavam aceitando artigos de filosofia feminista que eram submetidos a elas. Então agora nós temos várias revistas de filosofia feminista e uma revista de Filosofia Crítica da Raça também, pelas mesmas razões. Nós também nos organizamos para demandar que todas as revistas começassem a usar o processo de avaliação anônima, assim os pareceristas não saberiam o gênero do autor do artigo. Isto trouxe um efeito imediato no número de artigos de mulheres aceitos para publicação.

Nós criamos programas de verão para estudantes de graduação e estudantes de pós-graduação de grupos sub-representados, como mulheres, pessoas não-brancas, LGBTs e deficientes físicos para ajuda-los na profissão de filósofos e ajuda-los a ter êxito nesse caminho. Hoje existem vários desses cursos por todo o país que podem participar. Eles passam duas semanas juntos e conhecem alguns dos principais filósofos dos Estados Unidos e ouvem sobre a variedade de tópicos filosóficos com os quais eles podem trabalhar.

Nós temos vivido um momento similar no Brasil ao que vocês vivem nos EUA desde 2016: vimos nas campanhas presidenciais grandes manifestações de mulheres contra Trump e aqui, mulheres contra Bolsonaro. O presidente eleito ganhou publicidade com seu discurso homofóbico, racista e misógino. Recentemente Nancy Fraser publicou um artigo sobre a situação no Brasil no qual ela relaciona nosso momento à situação global. Ela diz que o capitalismo se afundou numa crise global na qual as mulheres são profundamente afetadas. Da mesma forma, a resistência vem das mulheres e esta é uma característica da resistência em nossos tempos. O que você pensa sobre isso?

A situação das mulheres de direita no Brasil e nos Estados Unidos têm algumas similaridades. Eu argumentaria que algumas destas mulheres estão protegendo seus próprios interesses materiais ao apoiar fascistas como Bolsonaro e Trump, porque estes líderes são abertamente supremacistas. Então diferentes grupos de mulheres têm diferentes conjuntos de interesses. Existem entrevistas com mulheres que apoiam Trump nos EUA em que algumas delas dizem que discordam dele nos temas acerca de assédio sexual, mas concordam com ele nos temas de imigração. Trump prometeu ser um nacionalista burguês e sua principal oposição (Hilary Clinton e Obama) estavam representando os interesses da burguesia internacional, que não favoreciam os negócios nos EUA. Então esta é a infeliz escolha que as pessoas têm: estão entre dois tipos diferentes de burguesia.

Muitas mulheres brancas de classe alta, até mesmo mulheres de classe média de diferentes origens étnicas, acreditam que seus interesses estão melhores representados por pessoas como Trump. Mas é sempre contra a única alternativa que elas vêem, que é a aquela pró-líderes econômicos mundiais. A situação no Brasil é diferente por conta do complexo legado do PT – que foi melhor do que de Clinton e Obama, mas não forte o suficiente para mudar as condições sociais das vidas das pessoas.

Mas eu gostaria de aprender com você como você vê o apoio das mulheres ao fascismo aqui e como você o explica. Eu apenas contribuiria com a ideia de que identidades raciais e de classe entre mulheres fazem uma grande diferença. Mulheres brancas frequentemente são muito mais identificadas e alinhadas com homens brancos – a estabilidade econômica da mulher branca é dependente, em muitos casos, da estabilidade econômica de seus parceiros de trabalho, então seus interesses se alinham aí.

No seu site há algo curioso. Uma seção chamada “miscelânea” na qual você lista seu histórico de emprego e receitas culinárias – latinas. Pode nos parecer apenas uma descontração, mas também nos parece algo político: é o seu self latino como parte do seu trabalho e de quem você é. Qual foi sua intenção ao compartilhar estas informações?

Sim, no meu site eu listo muitos tipos de trabalho que tive antes de me tornar uma professora de filosofia. Eu tive muitos subempregos desde os 15 até os 32 anos, quando recebi meu título de doutora. Eu também tive dois filhos quando ainda era estudante. Quando fui para Ivy League University, uma escola de elite, como estudante de pós-graduação, eu trabalhei por um tempo limpando apartamentos de alguns de meus alunos para quem eu estava dando aulas. Eu coloquei isto no meu site para mostrar que é possível vir de uma origem econômica modesta e se tornar uma filósofa. Nos meus escritos eu tenho argumentado que isso, na verdade, é uma coisa boa, um recurso epistêmico, ter conhecimento de um tipo de trabalho e de um tipo de vida que a maior parte das pessoas em nossa sociedade têm.

Meu primeiro artigo numa aula de filosofia foi uma crítica a Hannah Arendt, que adotou uma hierarquia entre trabalho e obra dos gregos antigos. Ela utiliza ‘obra’ para se referir ao que é criativo e produtivo intelectualmente, mas utiliza ‘trabalho’ para se referir ao que é meramente reprodutivo e intelectualmente estéril. Argumentei que ela estava equivocada e me embasava em minha própria experiência. O trabalho que mulheres geralmente executam requer grande habilidade intelectual: cuidar de crianças, educá-las para serem adultas e cuidar dos idosos. Existem dois grandes livros sobre isso: “Maternal thinking”, de Sara Ruddick e “Caring to know” de Vrinda Dalmiya. O que o trabalho delas nos ajuda a mostrar é que todo tipo de trabalho envolve trabalho mental. Até mesmo o repetitivo trabalho requer habilidades mentais para que a pessoa se mantenha sã fazendo isso!

 

photo 2018 10 25 22 45 53

photo 2018 10 25 22 47 11

Crédiitos fotos: Nunah Alle

DO MESMO AUTOR

Anpof cria comissão dedicada ao Ensino de Filosofia - Entrevista com Taís Pereira

Nádia Junqueira Ribeiro

Doutora em Filosofia (Unicamp) e assessora de comunicação/Anpof

18/05/2023 • Entrevistas