Especial 8M: Entrevista com a Rede Brasileira de Filósofes Trans
24/03/2025 • Entrevistas
A convite da Anpof, nós, da Rede Brasileira de Filósofes Trans, escrevemos um texto em formato de entrevista sobre o 8 de março e sua importância para nossa comunidade e para o campo da Filosofia. Compreendemos que essa data marca uma série de lutas históricas pela emancipação social feminina e pelo combate às violências de gênero. Compreendemos, também, que há uma lacuna no que se refere à comunidade trans durante esse período, e que é urgente que nossas pautas e lutas políticas sejam não apenas levadas em consideração, como também agregadas e reconhecidas enquanto fundamentais para o movimento (trans)feminista.
O que é a Rede Brasileira de Filósofes Trans? Como ela surgiu?
A Rede Brasileira de Filósofes Trans emerge no intuito coletivo de fortalecer, ampliar e celebrar o conhecimento desenvolvido por pessoas trans na filosofia. Existimos nos espaços institucionais de produção de conhecimento, somos estudantes nas graduações de Filosofia e em processos de pesquisa acadêmica nos programas de pós-graduação; somos docentes nas instituições de ensino básico, ensino superior e cursos livres sobre temas na Filosofia. Foi durante o XX Encontro da Anpof (ocorrido em outubro de 2024, no Recife) que iniciamos a mobilização para a construção desta rede, movides pelo desejo coletivo de reunir as pessoas trans da comunidade filosófica e, assim, formularmos coletivamente a presença, permanência e intervenção de pessoas trans em todas as áreas e frentes de atuação profissional da formação em filosofia.
Como a Rede Brasileira de Filósofes Trans reflete sobre o dia 8 de março?
O movimento 8M marca, dentre outras coisas, a necessidade de reconhecer e celebrar a presença de mulheres em espaços de produção de conhecimento, assim como de denunciar a violência de gênero que acompanha esses mesmos espaços. Com a mesma motivação, tanto de celebração como de denúncia, organizamos a Rede Brasileira de Filósofes Trans. É importante destacar o sentimento de apagamento e invisibilização que nós, enquanto pessoas trans, percebemos durante o mês de março, reconhecido como o mês da mulher, mas afinal, de qual mulher estamos falando? Assim como ocorre durante o mês de junho, do Orgulho LGBT, as plurais vivências trans não costumam ser levadas em consideração e se encontram à margem. No campo da filosofia, não é diferente.
Os feminismos pautam historicamente questões concernentes também às transgeneridades, ainda que isso nem sempre seja reconhecido. Desde a descriminalização do aborto até a autonomia corporal, observamos coincidências entre nossas demandas, que nunca deixaram de ser compartilhadas.
No que diz respeito às transfeminilidades e travestilidades, encontramos um histórico de apagamento que induz à uma redução genitalista, demonstrando uma dificuldade de reconhecimento por parte das cisfeminilidades e cismasculinidades. Isso acaba por oferecer um ambiente hostil, tal como forasteiras, em um debate e violência de gênero que não atravessa apenas mulheres cis.
Enquanto às transmasculinidades, percebemos um movimento equivocado de aproximação com a cismasculinidade e de afastamento das cisfeminilidades. Somos excluídos de lugares e pautas que, por muitas vezes, ajudamos a construir. Chamamos de equívoco porque reconhecemos que adentrar o campo das transgeneridades não nos protege de violências de gênero e tampouco nos concerne um lugar privilegiado em relação às mulheres cis.
Frisamos a importância de ampliar o debate sobre as transmasculinidades, transfeminilidades, travestilidades e não-binariedades durante o 8M e demais momentos históricos feministas. Sendo necessário questionar os símbolos e construções binárias elaboradas pela colonialidade, visto que as pessoas trans não binárias vivenciam também a violência de gênero em sua complexidade. Violências que têm muito em comum com as vivenciadas pelas transfeminilidades, travestilidades e transmasculinidades, isso é, a violência atuada pelo mundo cisgênero.
Nesse sentido, além de atentarmos para as demandas comuns, é urgente abrir o feminismo para uma construção na recusa e na diferença, descentralizando a mulheridade nos relatos a respeito dos processos de subjugação cispatriarcal, bem como de imaginação e prefiguração política para pensarmos e existirmos de outro modo. É preciso ao feminismo, assim como se deu em relação com o feminismo negro, que incorpore e ressoe também as pautas específicas de pessoas trans, travestis e não binaries, concernentes às infâncias trans, ao transfeminicídio, ao nome social, ao uso dos banheiros, à saúde trans, a evasão escolar e acadêmica de pessoas trans. Em resumo, que o feminismo se torne também transfeminista.
Qual é o objetivo da Rede em relação à produção de conhecimento na Filosofia?
Temos como objetivo não apenas o incentivo de que nossa comunidade, em sua ampla diversidade, se interesse pelo campo da filosofia, como também de visibilizar e criar rede entre as pessoas trans que já ocupam esse campo. As transgressões de gênero não são inéditas nos saberes filosóficos. Ao criarmos rede entre nós, especialmente em espaços e datas feministas, abrimos espaços também para o transfeminismo. Para tanto, estamos em processo de organizar um acervo digital com as monografias, dissertações e teses produzidas por pessoas trans na Filosofia. O acervo em construção pode ser acessado livremente em nosso site, e estamos recebendo continuamente as produções por e-mail.
Quais são os desafios enfrentados pela comunidade trans/travesti no ambiente acadêmico?
Sabemos que o ambiente acadêmico comporta hostilidade para com pessoas trans e essa hostilidade se agrava de acordo com marcadores de raça, gênero, sexualidade, territorialidade e classe. Nosso ingresso no ensino superior é de antemão dificultado pelas violências às quais somos submetides durante nossa formação escolar, e nossa permanência nessas instituições despreparadas torna-se, portanto, um desafio cotidiano. Nesse sentido, defendemos a implementação de políticas afirmativas de ingresso e permanência de pessoas trans em cursos de graduação, programas de pós-graduação e concursos públicos. As “cotas trans”, como estão sendo popularmente apelidadas, devem abranger toda a comunidade trans e isso não pode ser menos real no campo da Filosofia. Precisamos pautar cotas trans em nossos meios, em nossos programas de pós-graduação em Filosofia, em nossas reuniões de departamento.