"Fortalecer o Ensino de Filosofia é fortalecer a área", Taís Pereira avalia o percurso da Anpof Educação Básica

Mel Ciqueira Santos

Graduanda em Filosofia na Unicamp

07/10/2024 • Entrevistas


Foto: Eric Gomes/Theia Produtores Associados

A professora Dra. Tais Pereira, atual coordenadora da Anpof Educação Básica, atua nas áreas de filosofia política, ensino de filosofia e produção de material didático para o ensino de filosofia. Ela é professora do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), professora permanente do Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN) e professora colaboradora do Programa de Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO), polo UNIRIO.

Nesta entrevista, concedida na ocasião do XX Encontro Anpof em Recife, Taís faz uma análise do percurso e da atuação da comissão Educação Básica da Anpof, criada no último encontro da associação em Goiânia, no ano de 2022. Ela trata do papel da filosofia no combate aos desafios que marcam a educação básica no Brasil contemporâneo, destacando, principalmente, os desafios impostos pelo Novo Ensino Médio. A professora comenta ainda sobre a importância dos mestrados profissionais em filosofia na aproximação da universidade e da educação básica e chama atenção para a presença concreta das pesquisas sobre ensino de filosofia no XX Encontro Anpof.

 

Em entrevista concedida a Nádia Junqueira na ocasião da fundação da comissão, você afirma que a atuação da filosofia nos debates nacionais sobre o lugar da disciplina nos currículos escolares ainda era tímida. Hoje, mais de um ano depois da formação da comissão, como você retrataria a atuação da filosofia na discussão desta questão?

Acho que durante algum tempo o debate sobre o ensino de filosofia parecia muito vinculado a área da educação. Para a filosofia, parecia que esse debate específico estava ligado a um braço que a educação poderia dar conta ou dentro de um debate mais amplo sobre a educação. Não que não houvesse esforços, e há muitos esforços. A gente tem, no âmbito da pós-graduação, por exemplo, os mestrados profissionais, a mobilização dos próprios professores, mas me parece que, ao longo desse um ano, essas atuações começaram a ser mais articuladas. Tivemos um processo. A comissão de ensino de filosofia dessa gestão nasceu justamente por conta dos debates sobre a falência do Novo Ensino Médio, o grande problema que estava havendo, concretamente, com a implementação dele. Passamos por uma consulta pública, por reformulações, por projetos de leis pela câmara e pelo senado.

A coisa não ficou como nós gostaríamos, mas eu acho que nesse processo de discussão, de abertura de debate, houve uma maior articulação entre esses diversos atores, que compunham a defesa do ensino de filosofia. Não só a presença da filosofia no currículo, mas uma presença afetiva. Uma sensibilização maior de que o ensino de filosofia é importante, não apenas no âmbito de uma formação cidadã, mas para alimentação da própria área, para graduação, para pós-graduação, para que a área consiga se manter viva, plural e possa se expandir pelo Brasil. Acho que quando a filosofia entra no currículo em 2008, a gente tem a expansão também de licenciaturas e das pós-graduações. Então, temos uma maior sensibilização de que essas coisas não são separadas mais.

 

A comissão dedicada ao ensino de filosofia surge em um movimento de reestruturação da política nacional de Ensino Médio. Qual é, para você, a maior contribuição que a filosofia pode fazer na construção de políticas de ensino condizentes com os desafios enfrentados no cenário brasileiro?

A filosofia tem a sua especificidade e precisamos delimitar essas pesquisas, mas no âmbito da discussão das políticas educacionais isso não é suficiente. Acho que a filosofia precisa conversar com outras áreas que se debruçam sobre o ensino. A gente teve, por exemplo, uma maior aproximação com entidades parceiras como a Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (Abecs). Demos continuidade a uma parceria com o grupo que defende as ciências humanas na educação básica. Isso porque a filosofia está dentro de um contexto também de desvalorização das humanidades de uma forma geral na formação.

Acho que temos duas grandes frentes em termos de área. Dar continuidade às pesquisas de ensino de filosofia, sobretudo, eu diria, a partir do que se faz nas escolas. Acho que isso é muito importante. Não dá para a gente fazer pesquisa sobre ensino de filosofia sem ver as condições em que a filosofia pode se dar na escola. Porque é para um público que não necessariamente vai se tornar filósofo e está inserido no contexto escolar com todas as emergências de uma escola.  A questão da própria precariedade da carreira docente, a desvalorização da carreira docente. A gente vê um decréscimo das matrículas das licenciaturas. Temos um horizonte muito ruim se olhamos a proporção de matrículas nas licenciaturas. Talvez, e aí eu não estou falando só de filosofia, possamos, num cenário muito ruim, ter falta de professor mesmo, falta do professor formado e isso tem um impacto muito grande. Então, acho que temos essa primeira frente, pensando essa pesquisa conjugada com o que se faz na escola. Entender o professor também como um pesquisador nesse local. Não necessariamente porque ele está na pós-graduação, mas porque no momento em que ele atua e reflete sobre a sua prática, ele também está fazendo um processo ali de pesquisa, de reflexão. Acho que isso precisa ser levado em consideração e a sua relação não pode ser marcada por hierarquia.

E a gente tem uma outra frente, que é a de mobilização política. Talvez o ensino de filosofia possa nos ajudar no sentido de mostrar a filosofia para o grande público. Talvez pensar algo como uma espécie de divulgação filosófica aos moldes de divulgação científica, porque temos muitos discursos públicos que falam muito mal da filosofia, como se fosse algo óbvio. E a gente precisa — e aí a pesquisa não é suficiente — de uma atuação efetiva. Criar possibilidades para a filosofia estar no espaço público, para que as pessoas reconheçam esse saber rigoroso, que se coloca, que se questiona, que é um exercício de pensamento sobre o mundo. Que isso possa aproximar as pessoas. Eu acho que se a gente tiver essas duas frentes idealmente consolidadas, a filosofia vai ter um grande papel no processo formativo e também, quem sabe, ter impacto nas políticas públicas.

 

Atualmente, contamos com dois programas de mestrado profissionais em filosofia. Qual é para você a importância dos programas de pós-graduação profissionais na construção de vínculos entre a universidade e à educação básica?

A gente tem um grande mestrado em rede que é o PROF-FILO e temos também o mestrado no CEFET-RJ. Eu tenho a felicidade de participar dos dois. O mestrado profissional depende da escola. Em geral, se pensa o mestrado profissional como uma formação continuada, mas eu acho que é mais do que isso. É essa questão que você colocou sobre a aproximação. O professor não apenas dá aula, ele cria materiais, ele pensa sobre esses materiais, ele adapta materiais, ele articula essa criação, com a experiência vivida em cada turma completamente diferente. Essa experiência é muito rica e pode se traduzir numa pesquisa.

Tivemos ao longo dessa [gestão da] Anpof entrevistas com os coordenadores dos dois mestrados profissionais. Acho que eles vão dizer isso muito melhor do que eu: o professor João André Fernandes, atual coordenador do CEFET, e o professor Eduardo Barra, que é o coordenador do PROF-FILO. Então, eu convido que as pessoas ouçam. Mas eu acho que o mestrado profissional é pensar esse ensino de filosofia enraizado, vivido, experimentado.

Acho que a experiência dos mestrados profissionais, a formação desses professores e dessas professoras traz muita coisa pra gente pensar. Mais uma vez, não é a universidade dizendo: “Olha professor, seria bom você fazer isso. Olha, tem um currículo, tem um material”. Não, os professores já fazem isso, então a universidade é esse locus, esse espaço comum para que essas diversas experiências tomem corpo em termos de pesquisa, de discussão, e aí, nesse sentido, a gente tem sim uma aproximação bastante relevante, entre a escola e a pós-graduação.

Eu acho que essa talvez seja uma grande característica dos mestrados profissionais: os mestrandos — e espero que os doutorandos, espero que venham os doutorados profissionais — são colegas. Não estou falando mais com alguém que está entrando na área, é alguém que já está na área, que tem uma experiência riquíssima e pode divulgar. E “divulgar” é em um sentido muito amplo, porque essas experiências são tão ricas que podem ser publicadas como artigos, podem ser publicadas como relatos de experiência, podem ser materializadas em material didático — que a gente chama hoje de produtos educacionais. É um momento também que a filosofia necessariamente dialoga com outros temas porque está na escola. A filosofia não está lá no quadradinho dela e, então, tem que discutir pauta antirracista, tem que discutir questões de gênero. Então é muito rico, a filosofia ali trocando também com essas demandas que estão muito vivas dentro da escola.

 

Ainda sobre a atuação da Anpof na defesa da disciplina de filosofia no Ensino Básico. Quais iniciativas promovidas pela comissão você destacaria neste sentido?

Eu tenho que começar falando que essa comissão, na verdade, nem saiu da mente da diretoria. Essa gestão teve como pauta justamente a escuta. Saber o que a comunidade estava precisando, demandando, para, a partir daí, pensar em possibilidades enquanto representantes da pós-graduação.

Foi muito interessante porque, quando nós assumimos enquanto diretoria, o professor Edgar Lira, que é da PUC-Rio e um grande defensor do ensino de filosofia, mandou uma mensagem para o Érico preocupado porque a gente estava em um momento em que já se sabia que o Novo Ensino Médio não deu certo. Então o que fazer com isso? Tinha toda uma discussão sobre revogar ou fazer a reforma da reforma. Boa parte da comunidade acadêmica e dos professores defendiam — inclusive eu — pela revogação do Novo Ensino Médio, mas a gente entende também que a defesa e a mobilização dependem também de outros processos. E o Edgar veio com essa demanda para a gente: “Bom, olha, a gente está diante desse cenário. O que podemos fazer?”. E foi aí que nasceu um primeiro movimento para compor essa comissão. E aí chegamos até uma versão final dessas participações: um grupo com professores dos dois mestrados profissionais, o próprio Edgar e representantes do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar.

A gente atuou principalmente nessa época em que se abriu a consulta pública. Então, nós tentamos, na medida das nossas possibilidades, discutir a própria consulta pública. Porque essa discussão se dá por um conjunto de um questionário, mas as próprias questões são estruturadas, então você tem aí um encaminhamento de como vai ser essa consulta pública. A gente fez uma análise dessas questões, problematizamos as questões. apoiamos também iniciativas de outras entidades que estavam muito atuantes, como por exemplo, o coletivo do Ensino Médio de Qualidade, porque havia uma série de outras entidades e coletivos fazendo essa mobilização. Então, a comissão foi informando também o que estava acontecendo, produzindo algum tipo de material, esclarecendo a questão da consulta, mas também tentando articular forças para que as propostas vindas — que foram os PLs que passaram pela câmara e pelo senado e que eram oriundos das respostas dessa consulta pública — pudessem ter o mínimo de dano possível.

Porque o Novo Ensino Médio, de fato, enfraquece as disciplinas — que agora são componentes curriculares — no caso específico da filosofia, que é um componente vulnerável no currículo escolar, não tenhamos dúvidas. A gente tem um histórico de idas e vindas da filosofia, temos toda uma política de produção do livro didático em que a filosofia, enquanto componente curricular, aparece de forma precarizada. Nesse contexto, as escolas receberam os primeiros livros por áreas do conhecimento. Não havia mais livro de filosofia, existia o livro de ciências humanas sociais e aplicadas — o que caiu, ainda bem, pois o próximo PNLD vai ter um livro de filosofia. A gente via, por exemplo, o lugar da filosofia nesses livros, como era setorizado, muito mais para constar, era uma inclusão precária. A comissão foi construindo discussões para tentar ajudar nesse debate e também esclarecer alguns pontos dentro desse processo.

Assim, não tivemos resultados que a gente considera satisfatórios, no sentido de que não tivemos a revogação do Novo Ensino Médio, mas sim o Novíssimo Ensino Médio. A gente vê que ainda tem muita luta. Tivemos uma redução de carga horária da filosofia em vários estados, uma indução a um certo perfil de fazer filosofia priorizando áreas como ética e filosofia política no currículo escolar. Enfim, ainda tem muito debate para fazer, mas eu acho que essa comissão acaba sendo a semente de algo que pode florescer, desenvolver ainda mais a discussão ligada a educação básica no âmbito da Anpof.

 

Como você enxerga o futuro do debate a respeito do ensino de filosofia com o estabelecimento de uma comissão na Anpof voltada para o debate desta questão?

Ontem fundamos a Associação Brasileira de Ensino de Filosofia, a ABEFil, na Anpof Educação Básica. Essa associação foi uma construção coletiva de entidades regionais que já atuavam na militância do ensino de filosofia. A Anpof apoiou essa construção, desde o evento de Goiânia, em 2022, e surge uma entidade hoje que é parceira da Anpof.  A gente vai ter uma eleição amanhã, mas independentemente da chapa que vencer, as duas chapas se comprometeram, por exemplo, a estar próxima da ABEFil. Eu acho que isso já é um movimento muito interessante. Estamos vendo que o ensino de filosofia é pauta necessária também na pós-graduação.

Se a gente olha, o número de comunicações que temos sobre ensino de filosofia na Anpof é imenso. Os nossos colegas geralmente fazem esse levantamento. O professor Edgar Lira, que eu já mencionei, e o professor Christian Lindberg, da Universidade Federal de Sergipe, geralmente fazem essa contagem e é algo em torno de 10% de todos os trabalhos da Anpof. O ensino de filosofia está concretamente na Anpof. E eu acho que, diante desse cenário, da necessidade de se fortalecer enquanto área, para fortalecer também o ensino de filosofia — me parece que fortalecer o ensino de filosofia é fortalecer a área — eu acho que o futuro, por mais desafiador que seja, pode ser enfrentado coletivamente. Se a gente consegue essa articulação entre os três níveis, se a Anpof continuar aberta na sua defesa do ensino de filosofia, mas a defesa da presença efetiva, da inclusão não precária da filosofia, eu acho que a gente pode ter assim bons resultados, acho que é uma expectativa boa.

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