Mulheres, poder e políticas: entrevista com Loiane Verbicaro

Juliana Pantoja Machado

Professora Substituta de Direito da UFPA; Mestre em Direitos Humanos, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional; Mestre em Filosofia

01/03/2024 • Entrevistas

Entrevista publicada em parceria com a Revista Humanitas - edição 172

Ampliar a diversidade de gênero e raça em cargos de comando é fundamental para que transformações estruturais ocorram nas instituições políticas e jurídicas do país. Ideais para  reduzir as desvantagens sistemáticas entre as mulheres.

Em 2023, mais uma vez, o STF (Supremo Tribunal Federal) teve seu protagonismo por meio das discussões sobre a possível indicação de uma mulher negra para a vaga da Ministra Rosa Weber que estava por se aposentar.  A nomeação não se consumou mas trouxe a oportunidade de estimular o debate público sobre questões como raça, gênero e o imaginário coletivo que associa o poder à imagem de homens brancos.

A Pró-reitora de Ensino da Graduação da Universidade Federal do Pará, Loiane Prado Verbicaro já declarara, tempos atrás, em uma entrevista concedida ao programa Trabalho em Revista, sobre os desafios do Poder Judiciário, que esta não é uma era de mudanças, mas uma mudança de era. Nesta, tornou-se “fundamental pensarmos as exclusões históricas, as hierarquias, as desigualdades, a pobreza, o racismo e o sexismo, sendo estratégico ressignificar o sistema vigente que invisibiliza essas narrativas.”

Nesta entrevista concedida à Revista Humanitas em parceria com a Anpof, a jurista e filósofa Verbicaro relata suas experiências em cargos de gestão na educação superior, ressalta o apagamento da atuação e do conhecimento das mulheres em campos como a filosofia e na academia, e ainda propõe ações invocando o Marco Referencial para a Igualdade de Gênero em Instituições de Ensino Superior no Brasil. A ideia é que a partir do locus de produção de conhecimento e de formação que é a universidade aconteça a construção de uma prática social transformativa e mais igualitária. Confira!
 

Ao longo da sua carreira, você ocupou posições importantes na educação superior. Nessa jornada, foi possível observar alguma diferença no tratamento destinado a mulheres e homens? Quais foram as principais barreiras com as quais se deparou?
Loiane Prado Verbicaro:  Primeiro, é importante pontuar que as mulheres têm mais tempo de educação formal, mas não logram alcançar os cargos de destaque e nem os salários conquistados pelos homens. Não há, portanto, acesso igualitário aos cargos de liderança, visibilidade e protagonismo. Há desvantagens sistemáticas e históricas que modulam as trajetórias das mulheres, como resultado do caráter estrutural da opressão de gênero presente nas práticas e discursos (incluindo os implícitos), replicados, consequentemente, nas instituições, nas esferas de poder, nos sistemas de justiça e também nos espaços educacionais. Isso resulta em um déficit de participação das mulheres em cargos estratégicos, assim como em silenciamento, interrupções, construções hierarquizadas, sexismo, estereótipos de gênero, agressão psicológica e de cunho sexual, desconforto, vilipêndio intelectual, deslegitimação, desrespeito e insegurança das mulheres de transitar por esses espaços. A violência de gênero prejudica o florescimento das capacidades, contaminando a autoconfiança e autoestima. E quando as mulheres ocupam cargos estratégicos, o machismo estrutural fica evidente em várias dimensões, desde relatos que reiteram violência (política) de gênero, com ausência de sororidade, desqualificação da trajetória profissional e pessoal e tentativas de excluí-las dos cargos, impondo padrões lineares e uniformes de trajetórias, desconsiderando a diversidade de suas vivências, experiências e histórias. No meu caso, o meu letramento de gênero veio depois de já ter assumido cargos na gestão acadêmica, o que dificultou, para mim, a identificação, desde o início, de situações de violência de gênero. Fazendo uma retrospectiva desses episódios que me causaram desconforto no passado, entendo que foram atitudes tentando deslegitimar ações, decisões e espaços de uma mulher gestora. Infelizmente, só puder compreender tempos depois. Hoje, identifico claramente os episódios de violência, ficando evidente o entranhamento do patriarcado e do machismo estrutural nas mais diversas situação e tentativas de causar constrangimento à liderança exercida.
 

Hoje a sua atuação contempla uma agenda de pesquisa baseada na perspectiva de gênero...
Sim. E é uma preocupação central da minha atividade na gestão acadêmica trabalhar para a equidade de gênero na Universidade. Dessa forma, fico sempre atenta aos discursos, argumentos, ações e decisões que possam representar barreiras à equidade de gênero. Sabemos que os estereótipos de gênero relacionam o masculino à razão, à força, ao poder, à imponência e virilidade; e à mulher, à sensibilidade, à fragilidade e à docilidade, além dos padrões idealizados. A naturalização desses papéis acaba legitimando e naturalizando padrões de autoridade e subordinação que se espraiam para todas as esferas da vida. Apesar de todo esforço institucional, a verdade é que continua havendo assédio, sexismo, misoginia, além de tantas outras formas de discriminação, como racismo, homotransfobia no espaço universitário. Como os marcadores de gênero, raça e sexualidade não são tematizados devidamente, isso torna a discriminação mais difícil de ser percebida e enfrentada.
 

Ao analisarmos os cenários de desigualdades nas esferas de poder, podemos perceber uma intersecção entre gênero e raça que promovem barreiras ainda mais profundas para a ocupação desses espaços pelas mulheres. No Brasil, dado o histórico de racismo e sexismo, como a discriminação se apresenta para essas mulheres?
Nossa sociedade tem a mácula de um passado escravagista e colonial, que após a abolição da escravidão negligenciou os povos negros recém-libertos, que não foram minimamente contemplados por políticas públicas de inclusão. Nesse sentido, importante destacar a profunda e entranhada desigualdade social como o maior legado da escravatura e do autoritarismo no país. Grassou, no Brasil, do Século 16 ao Século 19, uma escandalosa injustiça amparada pela artimanha da legalidade. A escravidão foi bem mais do que um sistema econômico como nos apresenta Lilia Schwarcz: ela moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez da raça e da cor marcadores de opressão e de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma sociedade marcada por hierarquias sociais. A escravidão nos legou uma sociedade autoritária e iníqua, a qual tratamos de reproduzir, o que nos gerou uma série de problemas para a nossa agenda republicana, em prejuízo ao aperfeiçoamento democrático e sua promessa de igualdade. Nesta perspectiva, ocorreu uma naturalização da condição de subalternização e da desigualdade de direitos das pessoas negras, notadamente das mulheres, cujas vidas são marcadas pela precarização, de modo especial no mundo do trabalho, onde elas raramente ocupam posições de prestígio. Assim, o racismo caminha ao lado do sexismo, exercendo sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra, com opressões cruzadas.
 

A pesquisa “Estatísticas de Gênero”, do IBGE, divulgada?em março de 2021, mostrou que, no Brasil, o nível de escolaridade das mulheres é mais elevado que o dos homens:?entre eles,?21,5% frequentaram o ensino superior enquanto que, entre elas, o percentual é de?29,75%. No entanto, quando analisamos o número de mulheres em cargos de chefia, no serviço público,  na política, em cargos mais altos das universidades, mulheres bolsistas- produtividade, os números são sempre muito menores que os dos homens. Considerando esse panorama e o sistema que opera centralizando e avalizando o trabalho, o pensamento e as pesquisas desenvolvidas por homens brancos, combater o epistemicídio, ensinado por Sueli Carneiro, é uma das ferramentas que devemos utilizar? Como podemos efetivar tais mudanças?
Há uma sub-representação das mulheres nas posições de liderança. Elas são apenas 14% da Academia Brasileira de Ciências. Nesse cenário dramático, é imperativo combater o privilégio epistêmico e o epistemicídio, compreendido como silenciamento, subalternização e invisibilização dos saberes não hegemônicos. É importante um deslocamento do pensamento hegemônico para a construção de novos espaços de fala para a inclusão de sujeitos que foram excluídos (silenciamento do subalterno, interdição dos grupos vulnerabilizados historicamente) a partir da lógica da normatização hegemônica. Ao promover uma multiplicidade de vozes o que se quer é quebrar o discurso autorizado e único, que se pretende universal, e criar contradiscursos e saberes. Portanto, um caminho importante é a revisão do cânone acadêmico marcado pela quase total exclusão de autoras e reflexões sob a perspectiva de gênero e das interseccionalidades. Essa exclusão gera uma série de repercussões capazes de reiterar as assimetrias nas instâncias de poder. Nesse ponto, acho importante referenciar a crítica da filósofa Seyla Benhabib às implicações epistemológicas e normativas da moderna teoria moral e política que promoveram um silenciamento e exclusão das mulheres do espaço público a partir de uma concepção dominante de racionalidade que permitiu a legitimação de discursos que invisibilizaram a mulher na história, empurrando-a para a esfera privada do cuidado e da intimidade, para o domínio da natureza, para o interior da casa, para a missão de nutrir e reproduzir. “Desde Platão, passando por Descartes até Kant e Hegel, a filosofia ocidental tematiza a história do sujeito masculino da razão”. Então, a história como registrada até agora é a sua história. Há, portanto, uma “cegueira de Gênero na História da Filosofia”, com desdobramentos nas mais diversas áreas do conhecimento. Dessa forma, é fundamental pensarmos as exclusões históricas, as hierarquias, as desigualdades, a pobreza, o racismo e o sexismo, sendo estratégico ressignificar o sistema vigente que invisibiliza essas narrativas, e aqui me inspiro no pensamento de Patricia Hill Collins, Spivak, Grada Kilomba e Djamila Ribeiro.
 

Essa perspectiva se propõe a questionar a estrutura que legitima certas narrativas, grupos, falas, discursos, silenciando os alijados das relações dominantes de poder.
O fato é que as estruturas não serão alteradas se as vozes historicamente silenciadas continuarem silenciadas e ausentes dos espaços de poder a partir dos quais as estruturas podem ser alteradas. Aponto para a importância de contradiscursos questionadores do potencial universalizante (estratégia com que se invisibiliza formas de opressão – abstração, distorção, normalização) que excluiu os que ficaram de fora da normatividade hegemônica.
 

Nesse contexto de continuidade de ações que tendem a reproduzir desigualdades históricas, a indicação inédita de uma mulher negra a ocupar a mais alta corte de justiça de nosso país, Supremo Tribunal Federal, ajudaria a desafiar a lógica segregacionista imposta? Nesse sentido, é possível continuar afirmando que a indicação acontece apenas por competência e não para manutenção de privilégios estruturais?
É importante começar dizendo que a indicação de mais um homem para ocupar a vaga que era de uma mulher no STF (Supremo Tribunal Federal ) revela a intensidade do desafio que temos pela frente. Em 132 anos de existência, o STF só teve três ministras mulheres. Os percentuais baixíssimos seguem nos cargos do Judiciário brasileiro. O argumento para a escolha de mais um homem, com a diminuição da representatividade feminina no STF e, consequentemente, o aumento da desigualdade de gênero, baseia-se na necessidade de indicação de um perfil técnico e que esteja alinhado politicamente ao governo, para garantia da governabilidade. A escolha de mulheres é fundamental para a construção de uma sociedade democrática com justiça de gênero. Há no Brasil muitos nomes de mulheres juristas competentes, com sólida formação e defensoras dos valores e pautas do governo. É importante relembrar que ter a presença de mais mulheres no Judiciário brasileiro, em especial no STF, favorece um olhar mais cuidadoso e sensível sobre as questões de gênero, assimetrias, violências e opressões vividas pelas mulheres, que correspondem a maioria da população brasileira, além de ser essencial para a construção de uma sociedade igualitária. A ampliação da diversidade de gênero e raça é fundamental para que transformações estruturais ocorram nas instituições políticas e jurídicas do país. Considero, portanto, um retrocesso esse recuo na representatividade de mulheres no STF, reforçando o patriarcalismo, compreendido como estrutura arraigada que implica em desvantagens sistemáticas para as mulheres.
 

Para criarmos um futuro transformativo, quais seriam as suas propostas?
Essa resposta é complexa porque envolve mudanças estruturais em várias direções e dimensões. Assim, gostaria de mencionar ações para as Universidades, que são o locus de produção de conhecimento e de formação, sendo, portanto, determinantes na construção de uma prática social transformativa e mais igualitária. E aqui menciono o Marco Referencial para a Igualdade de Gênero em Instituições de Ensino Superior no Brasil. Com inspiração neste documento referencial, proponho a criação de Comissões para equidade de gênero, para o desenvolvimento de ações que apoiem a coleta de dados comparáveis para a realização de um plano de ação de gênero, com acompanhamento e monitoramento de políticas institucionais educacionais que versem sobre a equidade de gênero nas atividades de ensino, pesquisa e extensão nas Universidades. Dentre os objetivos, elenco: 1) equidade de gênero considerando as interseccionalidades como raça, etnia, sexualidade, deficiência, identidade de gênero, classe social e regionalidades em espaços de poder e de tomada de decisão nos espaços acadêmicos; 2) apoio à maternidade/parentalidade e aos direitos reprodutivos; 3) combate aos estereótipos de gênero; 4) prevenção e enfrentamento às violências institucionais e de gênero, considerando os direitos sexuais, reprodutivos e humanos; 5) adesão a Protocolos de Enfrentamento da Violência de Gênero; 6)  inclusão do pensamento produzido por mulheres nas ementas das disciplinas e nos programas de cursos; 7) paridade em bancas de defesa, concursos e comissões. O espaço universitário precisa ser inclusivo, acolhedor e democrático. Precisa, portanto, romper com todas as práticas assimétricas de poder. As ações precisam ser ininterruptas e persistentes. Afinal, os desafios são superlativos.


Acesse aqui o pdf da entrevista na íntegra

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Susana de Castro

UFRJ/PPGF; Presidente da Anpof; Integrante do GT Filosofia e Gênero da Anpof

05/11/2021 • Coluna ANPOF