O Ensino Remoto e a Filosofia: entrevista com Samuel Mendonça
Patrícia Del Nero Velasco
Professora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e do Mestrado Profissional em Filosofia da UFABC; Coordenadora do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar (2022-2024)
05/08/2021 • Entrevistas
Esta entrevista foi publicada originalmente no número 145 da Revista Humanitas.
Cerca de um mês depois do primeiro caso confirmado de COVID-19 no Brasil, o Ministério da Educação publicou a Portaria nº 343, que “dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus - COVID-19”. Cinco meses mais tarde, foi promulgada a Lei nº 14.040. Nela, se estabeleciam as “normas educacionais excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade pública” vigente.
Marco do primeiro ano de pandemia da Covid-19 no Brasil, o ano de 2021 certamente será lembrado pelo índice de mais de 500 mil mortes decorrentes do novo Coronavírus no país; será, outrossim, recordado pela consolidação de um cenário irreversível enquanto perdurar a pandemia, a saber, a adoção do ensino remoto por instituições educacionais de todos os níveis de ensino.
Estudos de formas de ensino não presencial e do uso de novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) na educação há muito são desenvolvidos[1]. E muitas são as controvérsias acadêmicas, tendo em vista, de um lado, a defesa de uma integração crítica das TIC que viabilize o uso democrático destas tecnologias; de outro, argumentos que ressaltam as relações interpessoais presenciais como pressuposto inalienável para uma efetiva e significativa formação, acrescidos – no contexto pandêmico – da reconhecida exclusão digital de inúmeros estudantes, decorrente das discrepâncias socioeconômicas brasileiras.
Políticas nacionais
Para refletir sobre o ensino remoto e algumas questões correlatas, ouvimos Samuel Mendonça, pesquisador vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Campinas. Ele é bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), professor da disciplina Políticas Públicas em Educação, e também líder do grupo Política e Fundamentos da Educação (CNPq/PUC Campinas).
Na qualidade de atual presidente da Sociedade Brasileira de Filosofia da Educação (2018-2022), Mendonça esclarece aspectos do debate sobre as TIC e as diferenças entre ensino remoto e educação à distância, critica a política nacional de sucateamento das universidades públicas e sustenta a indissociabilidade entre as dificuldades na implementação do ensino remoto e os problemas socioeconômicos do país. Confira, a seguir, a entrevista que ele concedeu à revista HUMANITAS.
HUMANITAS – Sabe-se que no âmbito da pós-graduação em Educação há muito se discute o uso das TIC. Quais são as principais posições neste debate?
Samuel Mendonça – As novas TIC são uma realidade dos programas de pós-graduação em Educação e, dentre as posições investigadas, a formação de professores é um vetor importante. Como aprimorar a formação destes com o uso de tecnologias no caso de instituições que não dispõem de acesso à internet ou mesmo de plataformas para a pesquisa acadêmica? Embora os debates sobre o tema ocorram há décadas, nota-se disparidade entre instituições do país por escassez de condições materiais. O uso de tecnologias se intensificou em 2020 com a Pandemia da Covid-19 pela necessidade de uso de plataformas de ensino remoto, híbrido ou mesmo semipresencial, e é possível argumentar que nunca se buscou tanto por alternativas tecnológicas como nos últimos meses. De um lado, nota-se empenho de instituições e de professores para a manutenção de aulas por meio do ensino remoto ou até mesmo híbrido. Por outro lado, é fundamental lembrar que parte significativa de estudantes de mestrado e doutorado não dispõem de ferramentas adequadas para o pleno desenvolvimento das atividades acadêmicas. Reconhece-se que se trata de busca de afirmação de novos paradigmas educacionais quando se fala em TIC, e é possível dizer que a pandemia forçou o desenvolvimento de políticas existentes, mas, que eram evitadas por muitos professores por razões diversas. Há muito se debate também sobre o aprimoramento de políticas educacionais específicas para as novas TIC. Sabe-se que o acesso a computadores é insuficiente para o êxito dos recursos de tecnologia. Sabe-se, igualmente, que as condições inadequadas de trabalho de professores da Educação Básica são impeditivas de seu aprimoramento como agente para o uso dela. Enfim, pode-se argumentar que falta uma política pública abrangente, que perpasse desde recursos materiais para as escolas e, sobretudo, a melhoria das condições de trabalho dos professores para a sua adequada preparação para o uso de recursos que altera o ensino e a aprendizagem.
Dada a situação pandêmica, os termos “ensino remoto” e “educação à distância” nunca estiveram tão em voga. Poderia elucidar as diferenças entre um e outro?
A educação à distância existe há muitos anos nos mais distintos países e consiste na preparação de materiais enviados aos estudantes para o estudo que se realiza sem o contato com a figura do professor. No caso do Brasil, pode-se citar o Instituto Universal Brasileiro como referência da modalidade. Criado em 1941, buscou formar profissionais por meio dos cursos profissionalizantes, supletivos e técnicos. No entanto, como política pública, a modalidade educação à distância se apresentou na Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 9.394 de 1996, por meio do art. 80 “[...] o Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino à distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada” (BRASIL, 1996, p. 43). Sua regulamentação ocorreu por meio do Decreto nº 2.494, de 10 de fevereiro de 1998. O ensino remoto emergencial, por outro lado, diz respeito a um tipo de resposta que instituições educacionais se viram obrigadas a implementar no contexto pandêmico em 2020. Paiva (2020) argumenta, a partir de Hodges e de Tomazinho, que o ensino remoto emergencial se diferencia da educação à distância por se tratar de estratégia pontual de entrega de instruções de modo alternativo ao ensino presencial devido às circunstâncias de crise. Como se trata de algo provisório, então, as soluções são variadas, podendo abarcar soluções totalmente remotas, mas também com algum tipo de interação e mesmo o chamado ensino híbrido, isto é, aquele que se materializa ao mesmo tempo para um público de forma presencial e para outro de forma remota. O que se espera do ensino remoto emergencial é a superação da crise para a retomada do formato presencial de ensino.
Em 6 de dezembro de 2019 foi publicada uma Portaria (nº 2.117), regulamentando a oferta de carga horária na modalidade de EaD na organização pedagógica e curricular de cursos de graduação presenciais, até o limite de 40% da carga horária total do curso. Considerando as políticas educacionais do atual governo, o que a referida portaria representa e quais seus impactos para a universidade pública e para o ensino universitário em geral?
Penso que a gestão do Ministério da Educação, desde o início do atual governo, em 2019, pretende a fragilização e o sucateamento das instituições federais. Foram diversas as insensatas falas do então ministro que assinou tal Portaria contra as universidades públicas. Tal sucateamento tem sido realizado com o corte de recursos, com o impedimento de novos concursos, com a interferência na nomeação de reitores. Embora estes exemplos possam parecer desconectados do espírito da Portaria, penso que são parte de um projeto que pretende enfraquecer as instituições. É visível a dificuldade governamental em lidar com instituições que vivem do diálogo, do debate. Assim, é preciso fragilizá-las. O ensino presencial propicia o encontro entre pessoas e, claro, diminuir a carga horária presencial é estratégia que fragiliza a construção coletiva, marca da qualidade do trabalho de diversos cursos de graduação de universidades federais. Além disto, 40% de qualquer curso concebido para a modalidade educação à distância significa a necessária reestruturação dos referidos cursos, então, a Portaria promove ingerência pedagógica vertical e não construída pelo coletivo de professores. Não só as universidades federais sofrem com o sucateamento planejado, mas, todos os cursos universitários no geral, e de forma mais contundente os cursos das áreas de ciências humanas. Que estes são alvo do governo federal e a Filosofia de forma particular, basta lembrar a declaração emanada do então Ministro da Educação Weintraub: “Esse dinheiro que vai para faculdades como de filosofia, sociologia, ele [Japão] coloca em faculdades que geram retorno de fato. Enfermagem, [Medicina] Veterinária, Engenharia, Medicina". Dizer que a Filosofia não promove retorno ao contribuinte é atestado de quem desconhece a Filosofia.
De acordo com o Painel TIC COVID-19, as principais barreiras enfrentadas pelos estudantes neste ano foram a dificuldade para esclarecer dúvidas com os professores, a falta ou a baixa qualidade da conexão à Internet, além da ausência de estímulo para estudar. Quais são os reflexos do ensino remoto no processo educativo, os problemas e as perdas advindas de sua implementação?
As perdas resultantes do necessário isolamento social para a Educação Básica ou Superior ainda serão contabilizadas, mas, sabe-se que são praticamente irreparáveis. Para um conjunto significativo de estudantes da Educação Básica ou mesmo do Ensino Superior, a impossibilidade de acesso à internet significou o corte de um processo de construção do conhecimento que já apresentava problemas. Em um país tão desigual como é o caso do Brasil, em que não se prioriza a educação, com explícita desvalorização da atividade docente, uma geração de crianças está afetada por um ano de distanciamento das escolas. Não se perde apenas o conhecimento técnico, mas, oportunidade de convivência, de diálogo, de exercício de cidadania, dado que escolas e universidades são espaços da vida social. Por outro lado, para um conjunto social, os danos são menores. Há instituições que conseguiram preparar seus professores para o uso de tecnologia e o ensino remoto tem se mostrado capaz de suportar as dificuldades da urgência da pandemia. O paradoxo é que o êxito deste conjunto social aumenta a desigualdade que já é expressiva no Brasil. Caberia ao Ministério da Educação gerenciar a crise educacional propiciando recursos para os casos de estudantes sem acesso à internet. Sabe-se, porém, da paralisia do governo Federal na Pandemia. A aposta na chamada imunidade de rebanho, via contaminação de pessoas, fez com que não fossem tomadas decisões para minimizar o problema, de modo que o cenário de mais de 500 mil mortos resulta de um plano de governo que não procurou comprar vacinas, não orientou para o distanciamento social e recomendou que as pessoas andassem sem máscaras e que mantivessem suas vidas, mesmo com a aglomeração, realizada pelo Presidente da República semanalmente. Este plano afetou todos os setores da sociedade e a educação de forma direta. Pode-se concluir que o ensino remoto ineficiente resulta de um plano ineficiente de combate ao Coronavírus.
O ensino remoto pode ser, em alguma medida ou perspectiva, efetivamente significativo?
Quando realizado com quem tem acesso aos recursos tecnológicos, pode ter algum tipo de eficiência. É preciso lembrar que se trata de caminho temporário e que, por certo, não substitui o ensino presencial. Então, em termos de uma opção emergencial, poderia sim ser usado para viabilizar algum tipo de convivência entre estudantes, da mesma forma leituras e debates sobre temas poderiam ser feitos. No entanto, pensar o tema significa envolver as condições materiais de estudantes brasileiros nas diferentes regiões. Nesse sentido, sem auxílio emergencial, com o aumento do desemprego, fica difícil pensar o ensino remoto como significativo pelas oportunidades que não têm sido oferecidas para muitos estudantes. O aumento da desigualdade afetou o ensino remoto. O momento que vivemos é de uma guerra em que o Estado brasileiro decidiu se aliar ao vírus, então, não visualizo ensino remoto na compreensão de que milhares de estudantes estão excluídos desta possibilidade. Não pode ser significativo para o Estado brasileiro um tipo de ensino que não corresponda ao que determina a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases, no que se refere ao direito à educação.
No que diz respeito ao ensino de Filosofia, há alguma especificidade a ser considerada no ensino remoto?
O ensino remoto de Filosofia no Ensino Médio é inviável por várias razões. Em primeiro lugar pela exclusão de inúmeros estudantes que não têm acesso à tecnologia. Este motivo é suficiente para negar qualquer êxito do ensino da disciplina. Em segundo lugar pelos problemas sociais causados pelo governo Federal na pandemia, tendo se aliado ao vírus, com destaque para a ausência de proteção social e, portanto, distanciando os estudantes das condições básicas para o estudo. A responsabilidade pelo Ensino Médio é dos Estados, mesmo assim, a influência nefasta do discurso do governo federal em favor do vírus fragilizou qualquer tipo de ensino, incluindo a Filosofia. A escola brasileira está de luto pelos mortos! É bom ressaltar que algumas experiências de ensino remoto de Filosofia têm sido feitas e com êxito, mas, trata-se de um conjunto social privilegiado, ainda que numericamente expressivo. Na consideração de políticas públicas, é fundamental incluir a realidade brasileira e, neste caso, há mais descaso que atenção. Por fim, mesmo que o ensino remoto de Filosofia pudesse ser adotado de forma ampla, os prejuízos estariam presentes, dada a necessidade no ensino de Filosofia, do diálogo, do contato com o outro, do olhar, da observação dos gestos e atitudes. Assim, as especificidades do ensino remoto da Filosofia se igualam aos outros componentes curriculares e é preciso reafirmar a necessidade do ensino presencial, do investimento na Educação Básica e no Ensino Superior, na preparação para o uso de tecnologia para todos, com internet eficiente e computadores potentes. As necessidades devem incluir, como se sabe, a valorização da carreira do professor e, para isto, estabelecer a Educação como prioridade I das agências de fomento é estratégia certa a ser adotada.
Referências:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em: 30 mar. 2021.
______.Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 30 mar. 2021.
______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto nº 2.494, de 10 de fevereiro de 1998. Regulamenta o art. 80 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e dá outras providências. Revogado pelo Decreto nº 5.622, de 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2494.htm. Acesso em: 30 mar. 2021.
______. Ministério da Educação. Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.117, de 6 de dezembro de 2019. Dispõe sobre a oferta de carga horária na modalidade de Ensino a Distância - EaD em cursos de graduação presenciais ofertados por Instituições de Educação Superior - IES pertencentes ao Sistema Federal de Ensino. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.117-de-6-de-dezembro-de-2019-232670913. Acesso em: 30 mar. 2021.
______.Ministério da Educação. Gabinete do Ministro. Portaria nº 343, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus - COVID-19.Disponível em:https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-343-de-17-de-marco-de-2020-248564376. Acesso em: 30 mar. 2021.
______. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020. Estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020; e altera a Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009.Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14040.htm. Acesso em: 30 mar. 2021.
CGI - COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Painel TIC COVID-19: pesquisa sobre o uso da internet no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus. 3ª Edição: ensino remoto e teletrabalho, 2020. Disponível em: https://www.nic.br/media/docs/publicacoes/2/20201104182616/painel_tic_covid19_3edicao_livro%20eletr%C3%B4nico.pdf. Acesso em: 30 mar. 2021.
GAZETA DO POVO. Bolsonaro estuda retirar recursos das faculdades de ciências humanas. Disponível em:https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/bolsonaro-estuda-retirar-recursos-das-faculdades-de-humanas/. Acesso em: 30 mar. 2021.
INSTITUTO UNIVERSAL BRASILEIRO. Quem somos. Disponível em:https://www.institutouniversal.com.br/. Acesso em: 30 mar. 2021.
PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira. Ensino remoto ou ensino à distância: efeitos da pandemia. Estudos Universitários, v. 37, nº 1 e 2, 2020. Disponível em:https://periodicos.ufpe.br/revistas/estudosuniversitarios/article/view/249044/37316. Acesso em: 30 mar. 2021.
Patrícia Del Nero Velasco é professora de Filosofia da Universidade Federal do ABC (UFABC) e secretária geral da ANPOF.
[1]Conferir, por exemplo, as produções do GT 16, Educação e Comunicação, da ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. Disponível em: https://anped.org.br/grupos-de-trabalho/gt16-educa%C3%A7%C3%A3o-e-comunica%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 30 mar. 2021.