“O recado é claro: manter as pessoas com medo”, diz professora Camila Jourdan, condenada à prisão pela participação nas Jornadas de Junho

Nádia Junqueira Ribeiro

Doutora em Filosofia (Unicamp) e assessora de comunicação/Anpof

01/09/2018 • Entrevistas

Dos mais de 1,4 milhões de ativistas que foram às ruas nas chamadas Jornadas de Junho, em 2013, 23 caíram nas mãos da polícia e sofrem dura punição. Foram investigados e processados nos últimos quatro anos até serem condenados, no último dia 17 de julho, a até sete anos de prisão. A sentença foi assinada pelo Juiz Flávio Itabaiana, da 27ª vara criminal do Rio de Janeiro. Entre os crimes, o documento lista dano qualificado, resistência, lesões corporais, posse de artefatos explosivos, formação de quadrilha e corrupção de menores.

Os condenados recorrem em liberdade, pois a decisão foi em primeira instância. Entre eles, está a professora do Departamento de Filosofia da UERJ, Camila Jourdan, que deve lançar, ainda este ano, um livro sobre a história que culmina na condenação. Nesta entrevista, ela fala à Anpof sobre o processo, considerado por ela como uma absurdidade jurídica, na medida em que não tem base legítima e foi construído a partir de ilegalidades. Ela indica que o alvo desta condenação é a própria possibilidade de organização e mobilização e que tratar movimento político como formação de quadrilha e participação política como crime de corrupção de menores são condenações que abrem precedentes muito graves. Para ela, é importante questionar o que se pretende condenar e a resposta indicada é interditar a possibilidade de repetição de um levante popular como o de 2013.

Ela também crítica a participação da imprensa no processo, como o fato de as TVs receberem o processo antes mesmo dos advogados, além do fato de ter sido exposta desde então. Ela comenta que desde então tem uma vida com direitos restritos, em suspenso, revirada e exposta. Nesta entrevista, Camila Jourdan analisa o contexto político em que se dá essa condenação e indica que ela é uma resposta política a 2013 e tudo o que significou. A professora, que aguarda decisão em segunda instância, afirma que essa condenação não diz respeito apenas aos 23 e que falhamos muitas vezes em notar os totalitarismos disfarçados sob a capa de democracia nos quais nos encontramos. Para ela, essa questão deve ser de todos. “Não é preciso esperar a injustiça chegar à sua casa e derrubar a sua porta para se mobilizar”.


O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro condenou à prisão, no dia 17/7, 23 ativistas acusados de participarem em atos violentos em 2013 e 2014. Você é uma delas. Quais incongruências e injustiças encontram nessa decisão?
 

Bom, todo este processo é desde o início uma grande absurdidade jurídica, que não tem nenhuma base legítima e que apenas se manteve até hoje tendo em vista o domínio desenfreado do Estado de Exceção no qual nos encontramos. É impressionante como podemos ser condenados com base em construções de narrativas fundadas em livres interpretações a partir de escutas e depoimentos nada confiáveis, de pessoas com interesses pessoais em denunciar alguns dos acusados. O processo é cheio de ilegalidades, escutas ilegais, infiltrados ilegais e apreensões ilegais. Eu diria mesmo que o Estado forjou todas as provas que pretendeu encontrar para poder ter uma criminalização exemplar em relação às manifestações populares de 2013/2014.


Particularmente, a sentença é extremamente dura: de 5 a 13 anos em regime fechado. Isso é o máximo que poderia ser dado paras as acusações em questão, o que ignora inclusive o pedido de absolvição de cinco de nós por parte do Ministério Público; ignora o fato de sermos todos primários e baseia essa desconsideração em um suposto perfil criminoso dos acusados, descrito em termos que remontam às análises psicológicas de Lombroso no século XIX, como “pessoas com personalidade distorcida e voltadas ao desrespeito pelos poderes constituídos”.

Vale ressaltar inclusive que essa utilização jurídica foi repudiada pelo Conselho Federal de Psicologia. As acusações de “formação de quadrilha” e “corrupção de menores” foram tratadas em bloco, mesmo que a última só tenha surgido na acusação ao final do processo de julgamento e sem direito de defesa, portanto, por parte dos acusados. Queremos obviamente a anulação desse processo e dessas sentenças absurdas que atingem, de fato, a sociedade como um todo, na medida em que o alvo da condenação é a própria possibilidade de organização e de mobilização.

Poderia nos explicar como os fatos desenrolaram desde a prisão preventiva em 2014? Como foi a batalha que travaram na justiça e quais dificuldades enfrentaram (inclusive o enfrentamento com a sociedade e imprensa, por exemplo)?


Se formos contar tudo desde o início, a história é longa. Estou inclusive publicando um livro sobre isso que deve sair ainda em setembro. Eu fui presa na véspera da final da Copa do Mundo. A porta da minha casa foi derrubada – eu estava dormindo – e foi uma prisão extremamente agressiva. Os policiais invadiram a minha casa, não tinham mandado de busca e apreensão e mesmo assim reviraram a minha casa toda e enfim eu fui levada algemada, no mesmo dia que os demais. Obviamente tinha-se, com isso, o objetivo de evitar manifestações no dia da final da Copa do Mundo, forjando-se supostas lideranças. Inclusive isso também não funcionou, vale notar que houve sim manifestação no dia da final, reprimida de maneira extremamente violenta.

Voltando às prisões, as acusações eram as mais absurdas possíveis. No mandado de prisão vinha escrito que nosso crime era de informática. Depois é que apareceu a acusação de formação de quadrilha e a de corrupção de menores só apareceu durante o processo de julgamento. Muitas das pessoas acusadas sequer se conheciam, como poderíamos ser uma quadrilha? Aliás, é preciso ressaltar que tratar movimento político como formação de quadrilha, participação política como crime de corrupção de menores são condenações que abrem precedentes muito graves. Mas é isso, a própria acusação vai mudando ao longo do tempo.
 

A TV recebeu o nosso processo antes mesmo dos nossos advogados e fez uma reportagem dizendo que nós tínhamos sido presos porque pretendíamos explodir o Maracanã no dia da final da Copa do Mundo. Como isso? Quero dizer, como alguém pode acreditar nisso? Mas, com isso, fiquei 14 dias presa. Saímos com um habeas corpus que nos permitiu responder em liberdade, mas como medidas cautelares também de exceção, que suspenderam nosso direito de ir e vir, pois não podemos sair da comarca, e nossos direitos políticos, já que não podemos participar de qualquer ato político. Foram três anos nessa situação, aguardando sentença, com a vida totalmente revirada, em suspenso e exposta.


Três dos acusados que participaram de um ato público cultural tiveram a prisão decretada neste meio tempo por “quebra de medida cautelar”. Um deles chegou a ficar seis meses preso. As outras duas precisaram ficar foragidas, com as fotos divulgadas no disque denúncia. Diante disso, é impossível não se perguntar: por que tudo isso? O que se pretende evitar com isso? Ou melhor: o que se pretende condenar com isso? A resposta é simples: a possibilidade de que um levante popular como o de 2013 venha a se repetir. O Estado e os poderes constituídos não acreditam elesmesmos nas mentiras que contam. Sabe-se muito bem que não somos terroristas, que não pretendíamos explodir o Maracanã, que não temos poderes mágicos para comandar uma insurgência sem centro e sem lideranças como a ocorrida em 2013. Então o que está sendo condenado é a possibilidade da revolta e o recado é claro: manter as pessoas com medo.


Nós olhamos para a época da ditadura e nos espantamos com a repressão que havia naquele momento, mas falhamos muitas vezes em notar os totalitarismos disfarçados sob a capa de democracia nos quais nos encontramos. Há censura, há tortura, há perseguição política e, se precisar, há execução sumária por parte do Estado brasileiro hoje. Basta olhar o que houve recentemente com Marielle, basta olhar o que ocorre nas favelas e periferias diariamente, basta lembrar que Rafael Braga está preso. Os 23 não são os únicos. Existem pessoas sendo acusadas pela lei antiterrorismo atualmente, de modo igualmente forjado e absurdo como o nosso processo. Mas e aí, o que estamos fazendo sobre isso? O que a sociedade organizada e aqueles que têm voz estão dizendo sobre isso? Parece que não adianta simplesmente denunciar, pois não choca ou surpreende mais ninguém.


Essa naturalização crescente é também um efeito da cultura do espetáculo, os processos midiáticos permitem exceções justificadas pela fabricação dos consensos e das bolhas de informação. Uma das características mais fundamentais do estado de exceção hoje é sua articulação com a sociedade do espetáculo. Isso significa dizer que certas atrocidades jurídicas são apenas legitimadas pelo casamento entre poder judiciário e poder midiático. Não por acaso a TV teve acesso ao nosso processo antes mesmo dos advogados e acompanhou a nossa prisão com uma cobertura fantasiosa na qual “revelava” a livre interpretações de escutas telefônicas. Vimos isso se repetir de vários modos na história recente e é algo que continua ocorrendo.


À época vocês participavam do Ocupa Cabral. Hoje em dia o governador está, inclusive, preso. De 2014 para cá, nosso país enfrentou difíceis fatos políticos, inclusive um aumento expressivo da repressão contra os movimentos sociais. Como enxergam essa condenação em nosso contexto político, de forma mais ampla?

O texto da condenação faz inclusive menção a isso. A nossa condenação é justificada por ser supostamente inaceitável que o então governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que se encontra neste momento preso, tenha ficado com seu direito de ir e vir restringido pelo movimento "Ocupa Cabral" do qual alguns dos ativistas participaram. É claro que chama a atenção o fato de que tudo que foi denunciado naquele momento se mostrou verdadeiro. Como então as manifestações que alertavam sobre isso podem ser criminosas? Ficaram comprovadas todas as consequências nefastas que os megaeventos, Copa e Olimpíadas, acarretaram no estado do Rio de Janeiro, verdadeiramente saqueado. Eu, como funcionária pública, fiquei um ano sem receber salário por causa disso, inclusive. E foi contra estes eventos que os movimentos políticos em questão se insurgiram.


Mas não importa se tínhamos razão, ocorre que o poder constituído não pode abrir precedentes para as manifestações populares. A resposta penal a 2013 precisa ser rígida para que seu legado seja esquecido, ou melhor, para que o povo não ouse jamais se levantar contra as atrocidades que o Estado realiza, e isso é um consenso entre os poderosos. A grande tragédia do PT foi ter ajudado a instaurar o estado de exceção que se voltou contra ele próprio. A gente precisa ter essas coisas bem claras. As leis que possibilitam as perseguições e criminalizações políticas foram instauradas ainda no governo do PT. E já se tentou muito falsificar a nossa história, relacionando-a com o contexto do golpe institucional sofrido pelo governo do PT em 2015/2016, quando o levante popular de 2013 já havia sido reprimido e criminalizado.


Por isso também é necessário contar a nossa história para entender o que significa a nossa condenação. Nós denunciamos os rumos do país quando o PT ainda estava no poder, aliado com setores como o PMDB, cometendo os descalabros da Copa do Mundo, das Olimpíadas etc. Estes setores depois abandonaram o PT, e a história mostrou que nós estávamos certos. Mas ainda com o PT e seus aliados aconteceram as articulações para denunciar os manifestantes pelo crime de associação criminosa. O mesmo que ocorreu aqui no Rio neste sentido ocorreu também em São Paulo. Depois, os setores da burguesia que estavam de braços dados com o PT lhe passaram uma rasteira, mas naquele momento estes setores, juntos, deram sustentação à escalada de repressão às manifestações populares e estabeleceram leis que permitem a criminalização dos movimentos sociais.


Nossa condenação é uma resposta política a 2013 e a tudo que ele significou, às suas pautas, que são guerras ainda em curso – contra a máfia dos transportes, denunciando as mortes nas favelas, compondo a luta da educação –, e não é de modo algum um detalhe que tenhamos tantos professores entre os 23, e é justamente porque tratam-se de lutas ainda em curso que nossa condenação é tão significativa.


Sobre esta condenação para você: quais as possibilidades que ainda tem da prisão ser revertida, o que é necessário para isso e como isso pode afetar sua vida e carreira?


Bom, minha vida já foi afetada, tanto do ponto de vista pessoal, quanto profissional. Em certa medida, nós já fomos condenados e punidos, e isso bem antes de qualquer sentença. Do ponto de vista profissional, eu deixei de fazer muita coisa, muitos planos que eram extremamente importantes pra mim. Do ponto de vista pessoal, só a exposição midiática já me transforma em um alvo. A verdade é que a academia, de maneira geral, é uma instituição conservadora. Muitas pessoas têm medo de perder seus privilégios, estão em uma posição na qual a fala delas é ouvida, mas têm medo de se colocar e de perderem essa posição. O fato é que, além do âmbito judicial, também no âmbito micro, por assim dizer, sou afetada por isso.


É uma outra guerra sendo travada. Sendo assim, a própria declaração pública de apoio já é hoje um ato de coragem e também por isso agradeço os apoios que venho recebendo, e é certo que eles existem, são múltiplos, e permitem de fato que eu possa continuar resistindo – bem como agradeço também, francamente, a possibilidade dessa entrevista para a ANPOF. Nossa possibilidade de absolvição passa pelo reconhecimento da sociedade organizada, da própria academia, de que esta condenação diz respeito a todos nós. Não se pode prender uma sociedade inteira, e não são apenas os 23 que estão sendo condenados.


Estamos recorrendo em segunda instância e em liberdade da sentença. Mas eu posso ir presa no final da segunda instância, pois a condenação do Lula abriu esta possibilidade. Entretanto, além disso, amanhã pode ser qualquer um de nós, pode ser você, seu filho ou alguma outra pessoa que você ame. Basta se insurgir contra as injustiças, e, acreditem, elas são crescentes e afetam cada vez mais pessoas que se achavam inatingíveis, de tal modo que em algum momento você pode se deparar com o fato de que se insurgir contra elas é mais uma questão de sobrevivência do que de escolha. Não é preciso esperar a injustiça chegar à sua casa e derrubar a sua porta para se mobilizar. A nossa possibilidade de condenação passa por sermos apenas nós, mas, repito, não é possível criminalizar uma sociedade inteiramente, foi por isso que inventaram esta farsa jurídico- midiática segundo a qual somos lideranças, para que haja alguém que possa ser preso.


Mas se não formos apenas os 23, não há esteio social para uma condenação como essa. Essa é a principal característica do estado de exceção: o jurídico é também político e nossa possibilidade de liberdade supõe agora nossa possibilidade de mobilização política. Eu não quero jamais fazer um discurso derrotista, porque se nossa condenação é exemplar, é isso que ela visa também, passar um recado de que não vale a pena, de que seja você quem for, se enfrentar o Estado e as injustiças do poder constituído, sua vida será destruída. Mas a verdade é que se você simplesmente se cala, sua vida talvez já esteja destruída de qualquer modo. Nossas vidas estão todas encarceradas no modo de vida atual, na sociedade em que vivemos. Apenas quando se tenta enfrentar isso, as prisões se tornam mais evidentes, mais violentas, mas isso não significa que aqueles que estão conformados estão em uma situação melhor exatamente. A liberdade não é inata.

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