"Pesquisar sobre o outro, diferente de mim, sempre foi um desafio e uma proposta", entrevista com Helena Theodoro

Georgia Amitrano

Professora (UFU)

20/09/2024 • Entrevistas

Entrevista publicada em parceria com a Revista Humanitas - edição 179

Helena Theodoro é a primeira mulher negra a terminar um doutorado em Filosofia no Brasil. O título foi conquistado em 1985. Pouco mais de 35 anos depois, as pessoas negras ainda representam apenas 31,7% do corpo discente de mestrados e doutorados em Filosofia no Brasil, segundo pesquisa de Fernando de Sá Moreira[1]. Theodoro, que hoje é professora visitante do PPGF/IFCS da Universidade Federal do Rio de Janeiro, estará no XX Encontro Anpof, no dia 1º de outubro deste ano, em Recife/PE, discutindo História da Filosofia ao lado da profa. Dra. Katiúscia Ribeiro (PUC/SP) e do prof. Dr. Ernani Chaves (UFPA).

Nesta entrevista concedida à profa. Dra. Georgia Amitrano (UFU), integrante da diretoria da Anpof, a professora Helena, autora de “Iansã”, “Os Ibéjis e o Carnaval”, “Martinho da Vila reflexos no espelho” e enredista do Acadêmicos do Salgueiro em 2022, compartilha a sua rica trajetória de vida que culminou no seu interesse em pesquisar a relação entre a ética dos sambistas e a relação com as tradições africanas que ela vivia no terreiro de candomblé e na família.

Theodoro, que tem pós-doutorado em História Comparada, também compartilha nesta conversa o sentimento de estarmos caminhando para um mundo que se afasta da visão hierárquica eurocêntrica. Por outro lado, ao indicar a atualidade da sua tese (defendida em 1985), ela lamenta que, apesar de muitas conquistas, a comunidade negra brasileira ainda não tenha alcançado os direitos de cidadania plena. 


Duas perguntas se entrelaçam: como é ser a primeira mulher negra a conquistar o título de doutora em Filosofia? (Esse título veio através da Universidade Gama Filho, em 1985). Como é  ser a primeira intelectual brasileira também e escrever uma tese cuja base é a filosofia africana, “O negro no espelho”?

Ser a primeira mulher negra a terminar um doutorado em Filosofia me deixou muito feliz por atender às expectativas de meus pais, Léa de Araujo Theodoro e Jurandyr Theodoro, negros com curso superior, militantes do movimento negro carioca, fundadores do Renascença Clube e que me criaram com uma consciência de minha negritude e com um orgulho muito grande de pertencer à tradição cultural africana e indígena, já que minha avó paterna pertencia aos povos originários. Desde muito cedo convivi com a família salgueirense de minha mãe e aprendi a valorizar nossas culturas e saber que vinhamos do Egito, descendendo de reis e rainhas e donos de muita sabedoria.

Escrever minha tese de doutorado sobre um terreiro de candomblé e o pensamento da escola idealista alemã de Max Scheller foi o resultado do conhecimento que aprendi em casa dos valores civilizatórios africanos e de como a Europa utilizou nossa tecnologia para enriquecer e se destacar no mundo, já que trouxemos as tecnologias do ouro, pedras preciosas, algodão, couro, cobre, arroz etc, além das especiarias para a América do Sul, principalmente o Brasil, que recebeu cerca de seis milhões de negros escravizados no Cais do Valongo- Rio de Janeiro. O pensamento africano construiu nossas casas, comidas e costumes, projetando nossa maneira de viver para o mundo e fazendo do Rio de Janeiro o principal centro de referência do carnaval, com nossas escolas de samba, blocos e afoxés.


Outra questão se coloca a partir de sua formação desde a juventude, pianista, resistência e militância? Como essa dimensão, que vem de sua família e se desdobra na rádio MEC, se tornou um suporte na sua pesquisa?

Minha formação foi muito eclética, já que meus pais tinham uma consciência política muito ampla, entendendo que o outro diferente de nós nos enriquece. Desde cedo vivenciei a beleza da música clássica, da música popular brasileira, de cantos indígenas, de pontos de umbanda e do candomblé, constatando a riqueza da diversidade humana , além de aprender que o outro diferente de mim traz conhecimentos novos e mais sabedoria. Meus pais acompanhavam o movimento pelos direitos políticos dos negros americanos, já que minha mãe era intérprete de inglês e cantava lindamente, gostando muito dos blues norte-americanos e que me apresentou desde cedo a Nina Simone, Sara Vaughan e muitas outras cantoras negras americanas. Tive acesso a revistas negras dos EEUU e a todo o pensamento de Martin Luther King, Franz Fanon  e Leopold Senghor, além da visão de um mundo socialista, onde todos deveriam ter direito à moradia, escola, saúde ,trabalho e lazer.

Pesquisar sobre o outro, diferente de mim, sempre foi um desafio e uma proposta. Meus pais me possibilitaram conhecer os diferentes estados brasileiros, pois estivemos do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, já que meu pai trabalhava como diretor do Departamento de Orçamento Hospitalar do INSS e foi responsável  pela criação dos grandes hospitais federais do país, além de lançar a proposta da Farmácia Popular. A cada hospital construído, meu pai enviava passagens para mim e minha mãe conhecermos o lugar, afirmando sempre que o Brasil continha o mundo inteiro em seus estados. Desde cedo conheci a diversidade cultural brasileira, entendendo as relações entre corpo e território, consolidando  a visão africana da diversidade, verificando que o negro do Rio de Janeiro era diferente do baiano e do sulista. Vivenciar a riqueza cultural do país foi muito gratificante e ilustrativo.


Sobre gênero, música e raça, qual a importância do samba na construção de um pensamento filosófico brasileiro? Esse pensamento é possível sem o samba?

O Rio de Janeiro e a Bahia foram espaços muito presentes em minha vida. Nasci na Tijuca, numa família ligada ao samba. Uma parte maior ligada ao Morro do Salgueiro, ao GRES Acadêmicos do Salgueiro e a outra parte, que morava na Ilha do Governador, ao GRES União da Ilha do Governador. Meus primos eram compositores dessas escolas e as festas da família, sempre no quintal da Tia Alice, rua Dona Maria 33, Tijuca, reunia cantores,compositores e ritmistas das duas escolas, tendo as mulheres cantando, dançando e cozinhando. O quintal da Tia Alice era o espaço da família extensiva africana, reunindo amigos que viravam tios e tias de todos nós. Minha Tia Santinha era casada com Dondon, que tinha sido jogador de futebol no Clube Andaraí e era exímio dançarino e que ensinava a criançada da família a dançar e cantar o samba. Os compositores e cantores do Salgueiro estavam sempre ao lado de meu primo Dauro do Salgueiro. Entender como o samba carioca tinha crescido com a chegada do grupo baiano, tendo Tia Ciata no comando, foi algo que aprendi logo através das histórias dos mais velhos e dos amigos da Portela, Mangueira e de Vila Isabel, sempre presentes.

A partir dos anos 1980, passei a participar da Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil (SECNEB) em Salvador e a frequentar o Ilê Axé Opo Afonjá, terreiro de candomblé nagô. Fui iniciada e passei a fazer contato com Mestre Didi, Juana Elbein dos Santos, Mestre Agenor, Muniz Sodré e Marco Aurélio Luz. Em 1981 iniciei um doutorado em Filosofia, após a perda de meu filho caçula. Muitas mudanças ocorreram em minha vida e a maneira de viver, agir e pensar da família e o meu estudo de filosofia, me levou a entender que os sambistas tinham uma maneira peculiar de ser e que ela se pautava nas tradições africanas que eu vivia no terreiro e na família. Ao analisar mais profundamente a formação da pessoa no candomblé nagô, constatei a preocupação nesta construção com o bom caráter e a boa ética, dois conceitos/princípios dos povos iorubá: Iwa Pèlé e Iwa Rere. Estes conceitos estão presentes nos terreiros de candomblé e nas escolas de samba. Fazem parte de uma tradição do povo africano, sendo entendido como parte das relações simbólicas estabelecidas no cerne de uma determinada cultura,presente no corpo literário de IFÁ, forjados nas sociedades iorubás na Nigéria, que foram ressignificados no Brasil. Acredito serem uma peculiaridade das escolas de samba, que relacionam corpo e territorialidade, com preocupação com a qualidade de vida da comunidade e sendo espaço de trabalho, encontro e lazer.


Pode falar um pouco sobre “Os Ibejis e o Carnaval” e “Iansã, rainha dos ventos e das tempestades”, obras importantes suas?

Os Ibejis representam meus netos, que são gêmeos e representam um presente numa família negra. Em meu livro infantil busquei mostrar nossas tradições africanas, de como nos relacionarmos com o cosmos e com o simbolismo do carnaval, onde as escolas de samba representam o nosso univero negro, dando ao povo da rua, uma CASA, sem ser a que retrata o controle e a rigidez da casa européia, mas uma CASA AFRICANA:  a escola de samba. Os sambistas formam uma família, num espaço onde se reverenciam os ancestrais e a continuidade do povo daquele território, na dança do Mestre-sala e da Porta-Bandeira, que representam o princípio masculino e o princípio feminino em movimento (EXU), sob a égide da bandeira (ancestrais) que criaram o espaço de vida e alegria.

As quadras das escolas trazem a energia das tradições daquela comunidade, anunciada pela batida de seus corações(a bateria). O livro traz um diálogo intergeracional, onde a avó e os netos conversam, trocam carinho e sabedoria, processo absolutamente necessário em nossas famílias negras.

Quanto ao livro Iansã, buscamos ressignificar o que representa o autoconhecimento que temos de nossas peculiaridades, numa viagem de nós para nossa ancestralidade e peculiaridades. Este livro faz parte de uma coleção que coordenei na Editora Pallas, onde os autores falam de suas experiências com seus orixás.


Diante de suas obras, então como é ser referência em cultura afro-brasileira e receber tantas honrarias?

Considero uma imensa responsabilidade ser referência, mas fico muito contente em ver que muitas outras pessoas olham as tradições negras e indígenas como tão importantes como as tradições européias. Sinto que estamos caminhando para um mundo mais ameno e mais afetivo, desligados da visão automatizada e hierárquica do mundo eurocêntrico.


E, por fim, o que você faria diferente hoje se reescrevesse “O negro no espelho”?

Apesar da minha tese ser de 1985, eu não gostaria de mexer em nada, já que apesar das conquistas que conseguimos, ainda falta muito para que a comunidade  negra brasileira tenha os direitos de cidadania plena, que não nos foi dada com o término do processo escravagista. A comunidade negra continua sem boas condições de escolaridade, de trabalho e de saúde. Apesar de hoje sermos muitos doutores e mestres negros, de termos uma vasta literatura negra, ainda temos muita dificuldade de reconhecimento e participaçao efetiva na política brasileira. 

Nossas universidades continuam mantendo padrões do século dezenove e olhando os alunos negros como aqueles que não deveriam estar naquele espeço. São poucos os literatos negros na Academia Brasileira de Letras, criada por um negro: Machado de Assis. Apesar dos muitos rostos negros na telinha da TV, os personagens continuam trazendo os estereótipos de malandragem, esperteza e maldade. Somos o segundo país de população negra do mundo, mas sem representatividade social, econômica ou política. Os problemas ainda são imensos, apesar dos ganhos. A Luta continua cada vez mais intensa.


[1] https://diplomatique.org.br/lugar-de-negro-na-pos-graduacao/#:~:text=A%20presen%C3%A7a%20negra%20nos%20corpos,2022%2C%20dados%20mais%20recentemente%20consolidados.

Acesse aqui o pdf da entrevista na ítengra

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