"Quanto mais a área crescer, ficar mais diversificada e forte em todas as regiões do país, mais a gente fortalece a filosofia brasileira" - entrevista com Susana de Castro

26/10/2022 • Entrevistas

Susana de Castro, presidente da Anpof, durante o XIX Encontro Anpof. Professora da UFRJ encerra o seu mandato no próximo mês de dezembro. Crédito: Rafaella Pessoa
 

Por Sarah Bonfim, doutoranda em Filosofia (Unicamp) 

e monitora do XIX Encontro Anpof

Susana de Castro encerra seu mandato à frente da presidência da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia no próximo mês de dezembro após dois anos de gestão. Susana, professora do departamento de filosofia da UFRJ e coordenadora do laboratório Antígona de Filosofia e Gênero, trabalha com filosofia da educação e metafísica e, nos últimos anos, com feminismo decolonial. Nessa conversa, que aconteceu durante o XIX Encontro Anpof em outubro em Goiânia, ela destaca os desafios enfrentados pela sua gestão – que se deu em meio à pandemia de Covid-19. A professora também comenta sobre a importância da Associação em oferecer suporte a debates, eventos e iniciativas da comunidade filosófica, ação fundamental para manter a comunidade unida em meio ao isolamento. 

Susana ainda destaca o papel essencial da filosofia em épocas de crise, uma vez que a reflexão crítica é inerente à natureza filosófica. Para a presidente, é justamente a capacidade de reflexão crítica que coloca a filosofia como alvo de ataques e, principalmente, de sanções de políticas públicas, como é o caso da ausência da obrigatoriedade da filosofia no currículo de educação básica. Por fim, ela faz um balanço da gestão, destacando o caráter coletivo das decisões e da importância de se pensar uma “Anpof do tamanho do Brasil”.  

Quais os principais desafios enfrentados e qual o legado que essa gestão deixa? 

O desafio dessa gestão foi estar em um mandato que foi basicamente virtual. Por causa da pandemia, todas as nossas reuniões foram online. Mas a nossa experiência foi de uma gestão que conseguiu fazer bastante, pois os nossos debates internos ocorreram online. Coletivamente, os processos decisórios eram discutidos sempre por reuniões virtuais e quando isso não era possível, usamos e-mail ou WhatsApp. Então fora isso, a comunicação não foi prejudicada pela pandemia, apenas não houve a possibilidade de nos reunirmos presencialmente. Mas eu acho que na modalidade remota a gente conseguiu fazer as nossas decisões de forma colegiada, que é o mais importante, não?

Em um dos debates promovidos em 2020, você afirma que a Anpof perdeu os espaços de debate e que a associação foi esvaziada ao longo do tempo. Embora a pandemia da Covid-19 tenha imposto muitos desafios, você acredita que ela tenha funcionado como um incentivo para a associação voltar a fomentar espaços – ainda que virtuais – de debates?

Nesse encontro da Anpof, dezenas de livros o lançados. Então, a pandemia foi um período de recolhimento, e ao mesmo tempo de muita reflexão. A comunidade filosófica se debruçou sobre os desafios que representaram a pandemia e continuam representando. Por exemplo, como a ecologia, que se agrava a cada dia. As questões também relacionadas com a política, com a possibilidade de a gente conviver com o fascismo em nosso país. Vimos aparecer todas essas produções [durante esse período] e é da nossa natureza filosófica trabalhar muito em momentos de crise. Quando há uma crise, a filosofia é muito convocada, porque a sociedade demanda entender as razões por trás das crises e não há só uma razão. A natureza desses fenômenos é muito mais complexa. Então, durante esse período, nós tivemos que conviver com a finitude, a morte, a fatalidade, o luto, a melancolia, o fascismo, a violência de gênero. Aumentou muito os feminicídios. Então, a cada situação de crise produziu-se debates e houve muitos espaços que a nossa gestão procurou abrir para essas discussões.

Qual foi o suporte dado pela Anpof na elaboração de reflexões sobre a pandemia de Covid-19?

O suporte seu deu ao abrir os espaços para a discussão. Então, a gente tem toda uma rede de comunicação que produz podcasts, entrevistas, canal no YouTube, colunas que divulgam debates, as redações, as entrevistas. Eu acho que o nosso grande desafio, que fica para a próxima gestão, é a ampliação da nossa comunidade, porque a gente acaba ficando numa bolha da comunidade filosófica. É interessante que por mais que a gente publique alguns ensaios, alguns artigos em alguns jornais de grande circulação, é importante fazer com que a sociedade possa também entender que a Anpof está aberta para poder contribuir para essa ação mais direta nesses momentos de crise.

No happy hour do Costa Mattos, você fala em trazer a público as pesquisas feitas em filosofia, torná-las acessíveis. Como você vê, dois anos depois, a contribuição da sua gestão em divulgar iniciativas que prezam pela diversidade e pluralidade das produções filosóficas?

Internamente, na nossa bolha, na nossa comunidade, eu acho que a gente ampliou bastante o debate. Eu acho que a gente mostrou que a filosofia está robusta para poder enfrentar temas que talvez fossem considerados não-filosóficos, como questões de raça, da colonialidade, de gênero. Talvez houvesse o entendimento tácito, até então, de que essas não fossem questões filosóficas. Eu acho que a comunidade, de uma maneira geral, mostrou que elas são questões filosóficas e questões relevantes para pensar o Brasil atual e abrir as discussões na nossa universidade. A gente tem currículos de filosofia que são engessados, que são uma reprodução de um currículo canônico, que é europeu e americano. E a gente está tentando mostrar que esse currículo pode contemplar também saberes oriundos de outras partes do planeta que não a Europa e os Estados Unidos. Então a gente está tentando abrir espaços para multiplicar e diversificar o currículo na filosofia e validá-lo. Porque não adianta nós termos no nosso campo de estudo autores e autoras que abordam temas que são relevantes, que têm fundamentação teórica, com referências e referenciados e você não tem quem te oriente, não tem uma revista que publique o seu artigo, porque assim não há discussão. Ainda são passos que estamos dando, no sentido de tornar legítimo e possível que alguém entre na filosofia e estude pensamento ameríndio, pensamento africano contemporâneo e que não haja constrangimento com a escolha temática. Não importa que nós tenhamos multiplicidade de interesse, mas não podemos silenciar outras formas de fazer filosofia. 

Qual o balanço que você faz da integração nacional dos programas de filosofia, da produção filosófica acadêmica diante do atual contexto político?

Ao longo desses dois anos sempre que nós tínhamos algum tipo de evento ou debate online, a gente sempre procurou respeitar os critérios de regionalidade e paridade de gênero. Então, em momento nenhum foi dado um destaque maior a uma determinada região do país. Porque a gente não queria reproduzir nas nossas ações um desequilíbrio. Todas as vozes, todas as regiões do país, têm igual direito à representação filosófica na Anpof. E eu acho que esse é um grande legado. Nós somos um país com dimensão quase continental e com diversidades regionais. Nós temos departamentos de filosofia espalhados por todo o país, com programa de filosofia de alta qualidade e capacidade, e por isso não deveria haver disparidades regionais no nosso modo de pensamento. Quanto mais a área crescer, ficar mais robusta, diversificada e forte em todas as regiões do país, mais a gente fortalece a filosofia brasileira. É isso que nos empenhamos em fazer, e eu acredito que a próxima gestão vai continuar com esse compromisso.

Nos últimos dois anos, iniciativas como a Rede Brasileira de Filósofas, o projeto Uma Filósofa Por Mês e o Blog Mulheres na Filosofia ganharam espaço e relevância. Você acredita que seja papel da Anpof criar elementos que difundam iniciativas como essa?

Essa não é uma questão da nossa gestão especificamente, ela é uma herança das gestões passadas principalmente a do professor Adriano Correia, daqui de Goiânia. Ele entendeu que se nós não tivermos um papel também de divulgação e se nós reduzirmos o papel da Anpof à realização de um evento e, eventualmente, de uma ou outra interferência, diminuímos o potencial de debate, de discussão que a área tem intrinsecamente, porque é uma área muito rica em reflexão e crítica. Então nós já herdamos das gestões do professor Adriano um entendimento de que é importante nós investirmos nesses canais de comunicação: podcasts e redes sociais. Há eventos acontecendo no Brasil inteiro e como é que você vai divulgá-los em todas as partes do país? Você já abre a seção de eventos da Anpof, e fica sabendo que terá um evento sobre Hannah Arendt em Manaus ou sobre Levinas no Rio Grande do Norte. Isso tudo para que a comunidade conheça tudo que está sendo feito. Eu acho que isso é muito importante, pois mostra nosso impulso, nossa pujança e nossa capacidade de produção acadêmica. Uma das coisas que a nossa gestão vai deixar é o relatório anunciado na mesa sobre filosofia e gênero, um documento que analisa a produção das mulheres nos últimos dez anos, a partir de uma coleta de dados feita no currículo Lattes. Vamos poder mostrar para a comunidade que há um gap com relação à produção feminina, no que diz respeito, pelo menos, na área de feminismo e gênero. Tem tido uma procura muito grande, e, no entanto, a gente não vê esse reconhecimento por parte dos órgãos de fomento, que seria o de criar uma área de pesquisa e gênero. Eu acho que essa seria uma etapa importante para a comunidade.

Gostaria, por fim, que você fizesse um balanço pessoal de como foi estar presidente da Anpof. Imagino que, pessoalmente, deve ter sido difícil e muito desafiador pois ser uma líder mulher em uma comunidade profundamente masculina tem os seus desafios. E que você deixasse uma mensagem para a próxima gestão. 

Eu espero ter oferecido a minha contribuição para a área da filosofia. A gente faz esse trabalho de caráter voluntariado, não há nenhum tipo de remuneração por isso, mas nos dá a oportunidade de compartilhar algumas práticas, principalmente algumas ideias. Eu tive a feliz situação de ter um grupo muito, muito colaborador. Estávamos sempre nos ajudando. Então não me senti sobrecarregada, e é importante deixar claro que eu não fugi da minha responsabilidade, porque veja, nunca trabalhei de maneira hierárquica, mas nunca disse que eu não sei o que o peso da responsabilidade significa, porque afinal de contas, se alguma coisa está errada, ou desse errado, talvez eu fosse responsabilizada. Então eu tinha que estar o tempo todo muito atenta a todas as ações que foram sendo feitas, e isso tem um custo pessoal. Você está praticamente vinte e quatro horas por dia, sete dias da semana atenta às redes sociais, ao WhatsApp, dando conta do que está acontecendo nos campos de atuação da Anpof. Mas reitero que o grupo foi sensacional, foi fundamental no apoio que eu tive. E principalmente, a criação de uma mudança que autorizou o cargo de tesoureiro. Então até a gestão passada o presidente da Anpof era responsável também pelo ordenamento das despesas, e eu, felizmente, não tive isso, porque seria realmente uma sobrecarga enorme. Tivemos uma gestão democrática, descentralizada, porque a gente pensa melhor quando a gente pensa no coletivo. E o grupo foi sensacional, fantástico. 

Eu espero que o nosso legado seja esse: de uma gestão colaborativa e participativa. Apoiando iniciativas tal como a educação básica e ensino médio, entendendo a importância que tem um professor ou professora de filosofia no chão da escola, entendendo que a filosofia é sempre alvo de ataque, porque ela pode e faz uma reflexão mais crítica. Ela proporciona uma capacidade de análise mais complexa dos fenômenos. Inclusive, estamos apoiando a campanha pelo retorno da filosofia no ensino médio, em caráter obrigatório, pois entendemos a importância da filosofia. E espero que a gente dê prosseguimento, avançando na inclusão de todas essas temáticas que se mantiveram fora do campo filosófico, que são as temáticas relacionadas a um modelo de filosofia não europeu, não eurocêntrico. A filosofia é marcada pela diversidade de saberes, que constitui também as nossas raízes enquanto país. Tenho certeza de que a futura gestão vai dar prosseguimento a isso e a gente vai ter dois anos de muito debate e muita análise.