"Uma das contribuições mais fundamentais do estudo das filosofias africanas é o alargamento da noção e do conceito de humanidade" - Entrevista com Valter Duarte Odará
Adilbênia Freire Machado
Professora (UFRRJ)
27/11/2023 • Entrevistas
Dr. Valter Duarte [1], ou Dr. Odará, como gosta de ser chamado, foi entrevistado neste mês de novembro pela profa. Dra. Adilbênia Freire Machado (UFRRJ) [2] especialmente para o mês da consciência negra da Anpof. Odará é filósofo (com graduação, mestrado e doutorado em filosofia), pesquisador, africólogo, professor substituto da Universidade Federal de Alagoas, educador social, especialista em Filosofia Clássica Africana (Kemética) e em Filosofia Helenística, membro do movimento social negro, quilombista, escritor e educador. Atualmente concentra seus estudos na obra do filósofo Ptah-Hotep, autor daquele que, segundo o mesmo, é considerado o livro mais antigo da humanidade, sobre o qual defendeu sua tese de doutoramento em 2020. Pto-Htp: O Mapa Filosófico da Cultura Clássica Africana fora disponibilizada nas redes nesse ano de 2023.
Nessa conversa Odará nos diz de onde vem, como seu caminho o levou ao encontro com a filosofia ocidental e, posteriormente, como encruzilhou-se com as filosofias africanas. Seu encontro / encanto com a Filosofia Clássica Africana, ou seja, a Filosofia Kemética. Odará apresenta esse percurso de forma crítica, apontando as dificuldades do povo negro de acessar a universidade, assim como permanecer nela. É bonito ver que Odará, como afirma, retomou seus estudos sobre o Egito incentivado “desde a infância, pelas obras artísticas do Olodum e do Ylê Ayê, que ocuparam a maior parte minha infância”. Ou seja, em seu doutorado ele retorna à sua infância tecida pela oralidade / musicalidade de nossas filosofias. Pensar / viver nossa ancestralidade é movimento contínuo e, também, de retorno à criança que nos habita.
Seguindo a entrevista, Odará apresenta suas reflexões sobre como as filosofias africanas (desde o período clássico) contribuem para a descolonização do conhecimento e para construção de uma filosofia plural e antirracista. Posteriormente faz uma breve apresentação de sua tese, que nos parece ser a primeira sobre Filosofia Kemética no Brasil. Por fim, ao responder se acredita que a filosofia no Brasil está mudando a partir das insurgências das filosofias que foram negadas ou jogadas às margens, Odará afirma que “as vitorias das referidas insurgências estão fundando a filosofia no Brasil.” Uma das razões é que “agora, encontramos uma série de autores e autoras buscando se desvencilhar dessas amarras epistemológicas, para realizar análises críticas dos fenômenos sociais com os quais os deparamos”.
Poderia nos dizer de onde tu vens e como o seu caminho encruzilhou-se com a filosofia ocidental e, posteriormente, com as filosofias africanas?
Uma pergunta ideal para começarmos, Dra. Adilbênia. Vou tentar ser sucinto, já que eu teria que lidar com dois gigantescos problemas: Primeiro, o de delimitar o que queremos dizer ao utilizar os termos “Filosofia”, “Ocidente” e “África”. Pois nós, que estudamos filosofia e qualquer pessoa que estude o fenômeno da linguística, temos plena consciência de que não se trata de uma questão apenas de palavras e os sentidos que a elas são atribuídas no dicionário; E o segundo problema é aquele de resgatar décadas de vivência em poucas páginas dirigidas a uma entrevista.
Acho importante iniciar agradecendo o convite e parabenizando todas as pessoas comprometidas em realizar ações efetivas de transformação social e de construção de uma sociedade pluriversal (nos termos definidos pelo Dr. Mogobe Ramose). Muitas dessas pessoas lerão essas linhas e eu gostaria que você se sentisse abraçado e abraçada, onde quer que esteja.
Agora, voltando ao primeiro problema, de modo bastante sucinto, informo que faço parte do grupo de intelectuais que utiliza os referidos termos (“Filosofia”, “Ocidente” e “África”) sob protesto, inclusive os termos “negro” e “afrodiaspórico”. Pois são termos que não foram cunhados por esses povos para descreverem a si mesmos, e sim rótulos criados por colonizadores para descrevê-los, a partir de uma concepção colonizadora. Utilizo-os apenas pelo bem de nossa comunicação, enquanto não se constituem alternativas coletivas de demarcação conceitual e identitária.
Meu contato consciente com o fenômeno filosófico se deu em 2003, quando cursei Direito em uma faculdade particular da cidade de Aracaju (minha terra amada), capital de Sergipe. As disciplinas Introdução à Filosofia e Sociologia I foram aquelas com as quais eu mais de identifiquei no curso. Naquele momento eu não sabia que filosofar passaria a ser o meu ofício, mas considero um marco, porque foi meu primeiro contato com ela de maneira consciente. Esse ano demarca o momento da descoberta de que havia algo chamado “filosofia” e de que aquilo me despertava forte interesse, embora eu tenha me dedicado apenas o suficiente para passar nas disciplinas. No momento eu não encontrava utilidade naquilo que me fora apresentado. Na época eu cumpria uma meta pessoal e familiar, que era me qualificar em algum curso universitário e o Direito me pareceu uma boa escolha. Passaram-se três períodos para eu descobrir que aquela não era a formação que estava buscando, para responder às diversas questões existenciais que me inquietavam.
Fui uma criança questionadora desde muito cedo e o mundo tem sido alvo de minhas investigações desde que me entendo como um ser vivo, antes mesmo de me entender como um ser humano (minha primeira infância foi marcada por um contexto sócio-educativo formal e informal que ensinava às crianças negras e indígenas que elas eram seres vivos humanoides/não-humanas e que a cor da pele delas era a evidência dessa absurda noção de realidade).
A vivência colonial, testemunhando injustiças e violências gratuitas e sistemáticas, testemunhando e vivenciando condições materiais e imateriais sub-humanas impostas a grupos específicos de seres humanos em detrimento de outros me fizeram transitar incessantemente pelo ambiente filosófico (de maneira inconsciente), em busca de sentido para aquele tipo de realidade. E, nesse sentido, agradeço profundamente ao movimento negro institucional, sobretudo ao MNU-BA e outras entidades do movimento negro institucional e as irmanadas, como o Ylê Ayê e o Olodum (por exemplo), cujos trabalhos corajosos apresentaram para mim e milhares de crianças afro-diaspóricas da minha geração o que significava ser humano e que nós, em realidade, fazíamos parte desta categoria de viventes. Até aqui, estou falando de uma vivência inconsciente com ambas as filosofias. E para tratar diretamente da questão, vou precisar fazer uma breve digressão.
O contato consciente chegou mais tarde, em 2006, durante uma aula de história, em um curso preparatório para o pré-vestibular, organizado pelo professor Ivan Freire, um dos melhores professores de matemática do Estado de Sergipe (inclusive aproveito para fazer essa homenagem, pois ele se organizou com uma equipe de professores igualmente bem qualificados para promover um curso preparatório de alto nível e a baixo custo, garantindo uma preparação educacional adequada para pessoas de baixa renda). Após três períodos cursando direito e percebendo não ser o curso que buscava para responder às diversas questões que me atravessavam, por exemplo: fui técnico de boxe em nível competitivo por muito tempo e notava que todos/as atletas (pessoas ditas negras e indígenas, residentes nas periferias de Aracaju e outras regiões do nordeste), por mais talentosos/as que demonstrassem ser (conseguimos importantes títulos nacionais e internacionais, incluindo medalhas em campeonatos pan-americanos e mundial, além de concorrer a vagas para as Olimpíadas do Rio de Janeiro), percebia que especificamente esses e essas atletas não tinham uma carreira duradoura na Seleção Nacional e que um número alarmante dessas pessoas, com esse perfil, não conseguia se tornar bem sucedidas após a “aposentadoria”, não sendo solicitadas para ministrar aulas em quaisquer ambientes, apesar de sua elevadíssima qualificação e da impressionante qualidade de seus conhecimentos enquanto artistas marciais. Um padrão que continua se repetindo até o momento em que você lê essa entrevista.
Naquele momento, com uma consciência racial limitada, qualificada naquilo que o Dr. Molefi Asante classifica como “consciência de pele”, eu apenas reconhecia que a cor da pele de uma pessoa era um fator que definia (e ainda define) a forma como as pessoas tratam umas às outras e quais papeis/status/funções sociais a colônia que chamamos de Brasil espera dessas pessoas. Esse nível de consciência me inspirou a buscar formas de entender as origens do fenômeno mencionado e de buscar estratégias para tentar solucionar a questão. A psicologia me pareceu como uma alternativa possível. E, assim, desisti do curso de direito e comecei a me preparar para ingressar novamente à universidade. E aqui eu finalizo minha digressão e retorno diretamente à questão:
Como eu dizia, em uma aula de história, o então professor, Otacílio Neto (outro profissional extremamente qualificado), comentou sobre a existência de uma figura chamada Sócrates, que realizara uma mudança social radical, a partir daquilo que ele apresentou à sociedade da época, algo até então desconhecido por seus contemporâneos. E esse é meu primeiro contato com a filosofia Ocidental. Passei a comprar livros de filosofia nas bancas de revistas e sebos e ler avidamente o máximo que podia sobre o assunto. Nessa trajetória inicial (que antecede minha graduação), percorri as reflexões de Nietzsche, Sartre e Montesquieu e encontrei a chave que poderia me auxiliar na caminhada em que eu buscava trilhar.
O meu contato consciente com a filosofia africana se deu de modo mais tardio: em minha trajetória filosófica profissional, depois de transitar por uma ampla gama de filósofos ocidentais durante a graduação, optei pela Filosofia Helenística e pela Lógica como chaves de entendimento da realidade, uma escolha que considero acertada e que me poupou caminho de volta à filosofia clássica Africana. As conhecidas limitações da filosofia ocidental, que se mostra tanto incapaz, quanto indisposta de descrever os fenômenos já mencionados e outros de mesma origem, me levaram a voltar no tempo e no espaço, em busca de respostas.
Deparei-me com a Filosofia Estoica, sua maneira ímpar de descrever a realidade e seus dispositivos intelectuais projetados para enfrentar de maneira efetiva e positiva situações extremas de convivência entre seres humanos e outras questões profundamente intimistas. O que me rendeu a produção de um Trabalho de Conclusão de Curso, uma Dissertação e a posterior composição de um livro que revolucionou a forma como se interpreta a escola ao redor do mundo (sendo inclusive premiado pela Universidade de Stanford). Durante mais de 10 anos de pesquisa (terminei a graduação com quase o dobro do tempo e enveredei diretamente para o mestrado), acabei me deparando com a descoberta de que Zenão de Cítio, criador da escola Estoica, era um homem negro, melanchros, segundo Diógenes Laércio. Porém o mistério envolto sobre sua vida e suas produções me fizeram buscar mais longe respostas para os fenômenos que procurava entender e solucionar.
Na ocasião do doutorado, conheci uma aguçada intelectual negra carioca, Bianca Pereira da Silva, que estudava Paul Ricoeur em sua pesquisa de mestrado e, paralelamente, estudava a escrita literária de Maria Carolina de Jesus. Percorrendo sua biblioteca, encontrei o livro A Filosofia e a Lei 10.639/03, do filósofo e professor Dr. Renato Noguera. E essa leitura foi decisiva. Pois nela percebi que os textos relacionados às questões raciais (que li durante a vida e paralelamente ao meu processo formal de educação) seriam finalmente úteis à minha formação e sairiam dos bastidores das conversas internas comigo mesmo.
Passei a retomar os estudos sobre o Egito, incentivados, desde a infância, pelas obras artísticas do Olodum e do Ylê Ayê, que ocuparam a maior parte minha infância (o isolamento social já era uma realidade para as crianças ditas negras e indígenas) e o tempo isolado fora preenchido com a ávida leitura de diversos textos, sobretudo as obras sobre o Egito, publicadas pelo Museu Nacional. E isso culminou na pesquisa de doutoramento, na qual inicio um processo taxonômico dos principais temas constituintes daquela que é conhecida por intelectuais afrocêntricos como a Filosofia Clássica Africana, partindo do trabalho do filósofo Ptah-Hotep.
Como você acha que os estudos em torno das filosofias africanas no Brasil contribuem com uma filosofia plural e antirracista?
O Dr. Ramose nos alerta que a dúvida sobre a legitimidade dos exercícios filosóficos africanos (e, também, aqueles dos povos indígenas) tem como base primordial a negação do status de humanidade desses povos. Um fenômeno conhecido entre nós como epistemicídio, que é uma das consequências do racismo, o qual é definido pelo Dr. Ifatunde Oguntade como um sistema de exploração, discriminação e de opressão enviesada, a partir do qual um grupo busca negar a todos os membros de outro grupo sua justa porção de recursos, oportunidades e privilégios. Uma noção de mundo que gerou a realidade que vivenciamos atualmente.
Uma das contribuições mais fundamentais do estudo das filosofias africanas é o alargamento da noção e do conceito de humanidade. Dito de outro modo, realizar esses exercícios e promover esses estudos nos mais diversos níveis da educação e nos mais variados ambientes sociais é uma atitude efetiva de reconhecer nesses povos a capacidade de produzir conhecimento capaz de descrever a realidade com altos graus de precisão e análises críticas capazes de produzir soluções efetivas para os mais variados problemas que a humanidade enfrenta.
E sobre esse aspecto, é importante ressaltar ainda o seguinte: Independente de qual seja a noção de filosofia a partir da qual a pessoa se fundamente para abordar a realidade, o exercício filosófico produz consequências diretas na realidade que experimentamos. Qualquer pessoa atenta o suficiente consegue perceber o oximoro entre a concepção de filosofia enquanto uma atividade eurística e a realidade que vivenciamos.
Uma evidência nítida é o fato de que nós (em larga maioria) enxergamos o mundo e definimos a realidade a partir das lentes e dos conceitos ocidentais. Se o exercício filosófico é um exercício meramente intelectual, como chegamos a esse ponto? Como chegamos ao ponto de acreditar no absurdo segundo o qual as mulheres são seres inferiores aos homens e que a pele clara faz de um ser humano alguém superior a outro ser humano que tem a pele escura, se não por exercitarmos e reproduzirmos a concepção aristotélica de mundo? Como chegamos a creditar que apenas a cultura ocidental é “clássica” e “universal”, enquanto as demais são “étnicas”, “subjetivas”, “folclóricas” e “primitivas” (para nos limitarmos aos termos que escutamos e reproduzimos mais comumente), se não por reproduzirmos as teorias produzidas nos séculos XVIII e XIX, e que aprendemos nas escolas, nos cursos profissionalizantes e no cotidiano de nossa cultura colonial?
Nesse sentido, encontramos uma segunda vantagem no ensino da filosofia (ou filosofias) africana e indígena, que nos permite a produção de uma nova realidade. E a mudança de paradigma realizada por essa atitude nos permite uma reorientação intelectual. Não se tratando, portanto, de uma mera ampliação do currículo. A teoria afrocêntrica, por exemplo, que nos alerta acerca dos fenômenos da Agência e da Localização, constitui-se de modo crescente como uma crítica radical à ideologia eurocêntrica, que se mascara como “universal” em todos os campos do conhecimento, desde a comunicação intercultural, passando pela retórica, a filosofia, a linguística, a psicologia, a educação, a antropologia e a história, para citar algumas. O Dr. Asante nos alerta que essa crítica é radical apenas no sentido em que sugere uma reviravolta, uma perspectiva alternativa acerca dos fenômenos.
Nas palavras dele, “trata-se de pegar o mundo e revirá-lo de um modo que possamos enxergar todas as possibilidades de um mundo onde a África, por exemplo, é sujeito, não objeto”. Nos permitindo perceber que aquilo que a filosofia ocidental chama de “objetividade” nada mais é que um tipo de subjetividade coletiva da cultura europeia mascarada por uma retórica de poder e hierarquia social. Em poucas palavras, a perspectiva afrocêntrica nos propõe uma crítica radical ao paradigma eurocêntrico que mascara como universal a perspectiva da Europa sobre os fenômenos. E busca todas as possibilidades de um mundo onde a África e seu povo sejam entendidos como sujeitos e não objetos. Sendo o mesmo caso para análises de mundo a partir da perspectiva dos povos indígenas, encarando os mesmos como sujeitos, não como objetos.
Um exercício que nos auxilia a sanar o problema de encarar a realidade por apenas um ângulo. Uma das fraquezas de nossa era, a qual o Dr. Molefi Asante rotula como “academicismo provincial”. Em termos não acadêmicos, tal proposta nos permite criar outras realidades, na qual nos percebemos rodeados e rodeadas por outros seres humanos, com suas complexidades e idiossincrasias, igualmente dignos de respeito, de direitos e de deveres. Trata-se, portanto, da ampliação da nossa capacidade perceptiva.
Casos como o do garoto Miguel Santana, que, com cinco anos de idade, não foi percebido como uma criança, isto é, como um ser merecedor de cuidados e tutela, é apenas um dos milhares de exemplos que poderíamos citar para demonstrarmos a concretude das consequências produzidas pelo fenômeno filosófico e pela manutenção das atuais concepções de mundo (e sobretudo de filosofia). A questão social do racismo não se trata apenas de uma questão moral. Ela é também uma questão epistemológica e, enquanto tal, uma questão eminentemente filosófica. Sendo, portanto, o campo da filosofia um dos nossos alvos de intervenção para lidar, de modo efetivo e resolutivo, com esse problema.
Como a filosofia kemetiana contribui para descolonização do conhecimento, especialmente, da filosofia?
Como eu mencionei anteriormente, o método afrocêntrico desvela dois fenômenos que permaneceram fora do nosso radar epistemológico e de nossa consciência, encobertos pela retórica: A Localização e a Agência. A noção de “mão invisível da história”, do “espírito universal” como entidades fantasmagóricas que coordenam o fluxo de acontecimentos nos fez perder de vista que toda descrição acerca da realidade, seja ela científica, cultural, estética, filosófica, em resumo, as formulações humanas acerca do mundo foram constituídas a partir de um lugar temporal, epistemológico, conceitual, linguístico e cultural. O que significa dizer que podemos reconhecer uma identidade nessas formulações.
O processo de colonização pelo qual passamos promoveu não só um deslocamento geográfico do povo dito africano e das pessoas ditas negras. Houve, simultaneamente, um deslocamento linguístico, epistemológico, psicológico, cultural, desses povos. Ao ponto de que as descrições amplamente disponíveis e propagadas sobre esses povos são formulações compostas por outros povos sobre eles. Chegamos ao absurdo de afirmar e acreditar na desagência dos referidos povos na história da humanidade. Quando encontramos nos livros de história a trajetória africana e indígena anterior ao surgimento do povo europeu reservada aos capítulos da pré-história e, quando encontramos nos diversos livros de introdução à filosofia relatos históricos segundo os quais a razão é uma invenção da Europa, estamos diante desse fenômeno de deslocamento.
Reorientar-se e habilitar-se desse processo são tarefas que exigem alguns passos. Um dos primeiros é perceber que nas bases do discurso do “milagre grego” e no discurso do berço grego da filosofia e, por extensão, da razão, está uma retórica de abuso do poder e um objetivo político colonial, não um exercício histórico, tampouco filosófico.
É importante ressaltar que, atualmente, o fato de um ser humano ter nascido em algum país da África e exercer o ofício da filosofia não faz dele/dela alguém que pratica filosofia africana. Como a Dra. Oyewumi e outras/outros intelectuais notam, não se trata apenas de uma questão geográfica, mas de uma questão também (e, principalmente, cultural, psicológica, linguística, etc.). Uma vez que a colonização ocidental realizou o deslocamento já mencionado, encontramos no continente africano e demais países a concepção ocidental como hegemônica e via única para o entendimento do mundo. De modo que, mesmo no continente africano, a concepção e os conceitos ocidentais são considerados como referência para descrição do mundo e das lógicas de pensamento.
Se quisermos realizar o processo de reorientação efetiva e investigar, no continente e nas diásporas, quais elementos eminentemente africanos estão mesclados com os elementos ocidentais e indígenas, precisamos ser capazes, antes disso, de descrever quais são as características da forma matricialmente africana de entender o mundo. E isso pode ser melhor executado a partir das fontes que antecedem o contado dos povos africanos com os povos ocidentais.
Lembremos, primeiro, que os povos africanos sãos os mais antigos da humanidade. E que quando nos lançamos em busca desses registros, encontramos em Kemet um conjunto numeroso de registros, a partir dos quais somos capazes de traçar, na diáspora e no próprio continente africano, hoje, quais elementos ainda permaneceram, quais sofreram modificação e quais foram abolidos durante o processo violento e colonizatório pelo qual passamos.
Em outras palavras, Kemet (antigo Egito) encapsula nos seus registros, os elementos matriciais de um modo de pensar, de ser e de entender o mundo dito hoje africano, sem interferência das maneiras ocidentais de pensar. Constituindo, portanto, aquilo que intelectuais afrocêntricos/afrocêntricas chamam de “filosofia clássica africana”.
O termo “clássica” é tomado em seu sentido amplo, isto é, o sentido de “modelo”, “matriz”. Embora o processo colonial tenha nos levado a interpretar o referido termo como sendo sinônimo de “ocidental, greco-latino” e estas sejam as primeiras acepções que encontramos na maioria dos dicionários, a cultura greco-latina é clássica (pelo menos em primeira instancia) apenas para os povos ocidentais, enquanto que a cultura indígena matricial é clássica para os povos indígenas e assim com as demais culturas e povos.
Esse passo inicial de entendimento nos leva à percepção de que a história do exercício sistemático e cuidadoso do pensamento humano é mais extensa do que aquela registrada pelos pouco mais dos 2.800 anos de história da filosofia Ocidental. E isso nos leva à busca pelos mencionados registros, escritos e não escritos, que a humanidade nos legou, produzidos há vários milênios antes dos registros ocidentais do pensamento humano. E é nesse momento que a filosofia kemética se apresenta com extrema importância.
Embora detratores e detratoras, permeados pela concepção ocidental, interpretem esse movimento de retorno à cultura e de resgate de conceitos e de concepções de mundo clássicas africanas como uma busca utópica por trazer de volta uma realidade mumificada pelo passado (uma atitude que pode ser fruto de ingenuidade ou de má-fé), o movimento de resgate cultural proposto pelo método afrocêntrico tem como principal objetivo buscar nessas culturas, recursos imateriais a partir dos quais possamos encontrar respostas para as diversas questões diante das quais estamos sendo postos e postas. É um movimento duplo de, considerar a legitimidade das formulações intelectuais desses povos como legítimas e como fontes de descrições precisas acerca dos fenômenos que compõem a realidade. Esse é um exercício tão importante quanto difícil de ser realizado.
Já percebeu que quando uma pessoa de ascendência africana diz algo, muita gente questiona de todas as formas possíveis sobre a verdade daquela afirmação, mas quando uma pessoa de ascendência europeia diz algo, essa mesma grande quantidade de pessoas simplesmente acredita, sem ao menos reexaminar a questão? Já percebeu também que essas pessoas só concordam com uma pessoa estudiosa africana quando há um estudioso europeu que apoia aquilo que foi dito? Esse é apenas um dos efeitos de realizarmos apenas o exercício filosófico a partir da matriz colonial ocidental. Nesse sentido, trata-se de um processo de tratamento terapêutico (no sentido filosófico do termo).
O segundo movimento é o de reverter o processo de deseducação pelo qual passamos e buscarmos entender, de maneira consciente, quais são os fundamentos e os princípios das práticas, conceitos e performances tradicionais africanas, que foram preservadas (apesar do processo sistemático de silenciamento e de proibição), mas que ainda reproduzimos através das práticas culturais tradicionais (conhecidas como “folclóricas”, “primitivas”, “populares”, “urbanas” e todas as alcunhas depreciativas que o ocidente se ocupou de rotulá-las).
O retorno ao passado histórico em busca de conceitos e de recursos imateriais em busca de soluções para os problemas atuais é uma ação bastante comum entre seres humanos. Assim, embora Kemet não seja a fonte mais antiga das civilizações africanas (já que podemos encontrar uma série de outras civilizações anteriores, como a civilização Tarsi e a civilização Badari), Kemet contém as fontes mais numerosas. O retorno a tais fontes, portanto, garante-nos uma rica e abundante fonte de recursos imateriais, a partir dos quais podemos buscar soluções para os desafios que enfrentamos.
Você acabou de divulgar a sua tese “Pt?-?tp: O Mapa Filosófico da Cultura Clássica Africana”. Me parece ser a primeira tese sobre Filosofia Kemética aqui no Brasil. Poderias nos falar sobre as propostas da tese?
Realmente. Realizei a defesa em 2020. Foi uma experiência enriquecedora, que trouxe mudanças radicais e positivas na forma como pessoas ao meu redor passaram a entender a realidade. Não tenho notícias de outra tese sobre o assunto. Alguns trabalhos mencionam superficialmente o tema, existe uma dissertação (curiosamente difícil de ser encontrada online) tratando dos possíveis paralelos entre a filosofia estoica e aquela desenvolvida por Pt?-?tp (Ptah-Hotep), há também a dissertação da Dra. Katiúscia Ribeiro, que traz uma introdução ao tema. Porém não encontrei outra tese tratando especificamente do tema, abordando-o como uma obra filosófica.
É importante ressaltar que não se trata de um trabalho que se pretenda esgotar as possibilidades de sua abordagem. Ele será reexaminado, reeditado e expandido. E, como todo trabalho sério de pesquisa, ele demarca uma indicação de caminhos, uma provocação a reflexões e uma reformulação de perguntas. É mais um passo no ritual exuístico e sankófico de aprimoramento da realidade, recomendado pelas mais velhas pessoas africanas em diáspora forjando esse adinkra ao redor do país, talvez indicando às gerações futuras o que deveria ser feito para reverter o atual estado de coisas.
O objetivo geral da obra é o de expor e sugerir meios de solução para a ausência de produções filosóficas referentes aos povos africanos e para a falta de alternativas epistemológicas concernentes às personalidades africanas e indígenas, que ampliam nossa noção geral de humanidade. De maneira específica, a meta é propor um exercício filosófico que promova uma cultura antirracista, através do resgate cultural, que amplifica a escuta de vozes que encontram pouco eco nos debates filosóficos nacionais e internacionais; (2) fornecer acesso aos principais temas filosóficos do povo africano, dirimindo a ausência de abordagens filosóficas sobre autores de origem africana no Brasil e respondendo à necessidade refletida na instituição da Lei 10.639/03, que institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e ameríndia em todos os níveis do ensino [3]; (3) formalizar um convite às pessoas leitoras para compartilharmos a responsabilidade de reescrever a história da filosofia de modo a ampliar o elenco de investigações e propostas filosóficas, de maneira a não mais apresentar uma história parcial da filosofia ocidental como sendo uma história completa da filosofia e (4) apresentar em língua portuguesa uma introdução à filosofia kemetiana, a mais antiga que a humanidade tem registro, do povo que possui ancestralidade com povos como os ditos Bantu e Iorubá, grupos étnicos trazidos à força do continente Africano para o Brasil e que contribuiu para a construção e o estabelecimento deste país, promovendo a ampliação do conceito de humanidade no Brasil.
O trabalho está dividido em duas partes. A primeira, subdividida em três capítulos e pretende demarcar a motivação e a relevância dessa pesquisa no cenário filosófico nacional, a partir da composição de um estado da arte e da apresentação ampla do contexto no qual está inserido o ambiente filosófico clássico africano. Os primeiros capítulos são dedicados a apresentar os motivos específicos pelos quais as produções e o legado do povo kemetiano não chegaram ao nosso conhecimento e o vitorioso percurso pelo qual essas produções e legado traçaram até chegarem em nossas mãos. Por muito tempo, grande parte desse legado esteve retido em bibliotecas ao redor do globo e seu acesso permaneceu restrito a um número bastante reduzido de pessoas. O que me levou à seguinte pergunta: Por que todo o conhecimento de uma civilização cuja produção tem um número de textos escritos muito maior do que qualquer outra civilização antiga está contido em uma única disciplina?
A segunda parte desse trabalho foi composta com o objetivo de apresentar a noção kemetiana de filosofia e apresentar o tratado filosófico de Ptah-Hotep, a partir da seleção de alguns capítulos de sua obra.
Trata-se, portanto, de uma obra introdutória, que visa iniciar um processo de taxonomia da filosofia kemética.
Você acredita que a filosofia no Brasil (ocidentocêntrica, brancocêntrica e falocêntrica) está mudando a partir das insurgências das filosofias que foram negadas e/ou jogada às margens?
Eu diria que as vitorias das referidas insurgências estão fundando a filosofia no Brasil. Antes, nós tínhamos apenas uma filosofia ocidental reproduzida no Brasil com o objetivo não filosófico de manutenção de uma epistemologia colonial, que não punha em questão seus problemas sociais e sua realidade, mantendo seu foco apenas nos fenômenos europeus, sendo apenas essa realidade considerada legítima. Agora, encontramos uma série de autores e autoras buscando se desvencilhar dessas amarras epistemológicas, para realizar análises críticas dos fenômenos sociais com os quais os deparamos.
[1] E-mail: valtermoreira2@gmail.com
[2] Filósofa, mestra e doutora em educação. Docente do Instituto Multidisciplinar e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Coordenadora do Eixo Científico Filosofia Africana e Afro-diaspórica da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN). E-mail: adilbenia@ufrrj.br
[3] Embora estas obrigações estejam dispostas na Lei 11.645/08, sigo a atitude política de me referir a Lei 10.639/03 como marco político protagonizado pelo Movimento Negro.