A tragédia do Rio Grande do Sul como alerta ético-ambiental: um apelo à responsabilidade - Nota do GT Hans Jonas da Anpof e do Centro Hans Jonas Brasil
13/05/2024 • Notas e Comunicados
Neste momento tão difícil e trágico em que os habitantes do estado do Rio Grande do Sul, Brasil, são afetados por enchentes avassaladoras, causadas não pelo acaso ou pela vontade divina, como alguns querem fazer crer, mas pela ação humana cumulativamente irresponsável, o GT Hans Jonas da ANPOF, nascido em Pelotas-RS, uma das cidades que estão sendo gravemente afetadas neste momento, vem a público manifestar total solidariedade a todo o povo gaúcho.
A responsabilidade política
Tal catástrofe climática demonstra a gravidade do desafio ambiental e a urgência de que os governos assumam, em suas diferentes instâncias e com todas as suas capacidades, o compromisso de prevenção e previsão de acontecimentos dessa magnitude, os quais, segundo os números, vêm se tornando comuns e, segundo os cientistas, se agravarão nos próximos anos, tornando-se não apenas mais constantes, como também mais nefastos. O negacionismo e o descaso das autoridades em relação aos fatos e às previsões científicas são parte do triste processo de agravamento da crise. Negar esses dados, pelas evidências, é sintoma de uma negligência delinquente que, infelizmente, corroeu as bases da nossa democracia nos últimos anos, agora em árduo processo de reconstrução.
O desafio da justiça climática
A crise ambiental se articula diretamente com as desigualdades históricas que têm mantido países, regiões e povos à margem das benesses do chamado progresso científico e tecnológico, mas, no geral, pagando por ele. Nesses termos, a justiça climática deve se aliar à reflexão sobre a responsabilidade, de forma que as políticas econômicas geradoras de injustiças sociais e, também, as mudanças climáticas sejam superadas. É urgente politizar o aquecimento global e a emergência ambiental, mostrando que esses não são apenas problemas ambientais, mas éticos e políticos. Isso implica, além de tudo, a crescente consciência de que os países do Norte global devem contribuir com os países do Sul para que esses sejam capazes de enfrentar as consequências danosas dessa crise, cujas bases são o colonialismo predatório mantido historicamente. Do outro lado, são os pobres são os primeiros a sentirem as suas consequências e os últimos a encontrarem meios para superar as perdas e prejuízos, o que contribui para o prolongamento da exclusão social que tem mantido essas populações em situações de vulnerabilidade.
Assim, a justiça climática leva ao reconhecimento do fracasso da ilusão do progresso que ocupa os discursos políticos e econômicos há muitas décadas. Mas, sobretudo, trata-se de reconhecer que quem mais destrói deve pagar mais para limpar e quem faz as vítimas deve ajudar a salvá-las, socorrê-las e, sobretudo, evitá-las. Para isso, é urgente reorganizar a economia em função do bem-estar humano e extra-humano, afinal, não estamos diante de duas crises separadas, mas de uma única e complexa crise socioambiental, que coloca em xeque o atual modelo civilizatório.
É urgente ampliar a participação das comunidades e pessoas historicamente marginalizadas e vulneráveis, como mulheres, indígenas, negros, crianças, jovens e idosos que têm sido as primeiras vítimas do que se chama de “triplas injustiças”: menos responsáveis, sofrem efeitos mais graves e, consequentemente, com a escassez de recursos, vêm sua miserabilidade aumentada. Em termos macropolíticos, é urgente livrar os países do Sul global das apropriações imperialistas, para que possam mobilizar recursos em vista da diminuição das desigualdades e o atendimento das vítimas da crise climática.
O colapso do atual modelo socioeconômico
Não por acaso, a tragédia do Rio Grande do Sul, entre tantas outras que se alastram pelo país e pelo mundo, exprime o colapso do atual modelo socioeconômico baseado na exploração desmedida dos recursos naturais, na flexibilização da legislação ambiental, na exploração dos mais pobres e na concentração da riqueza. Além disso, o atual modelo de urbanização também precisa ser reavaliado, especialmente porque nossas cidades são erguidas sob a segregação social, racismo ambiental e predação da natureza, constituídas a partir de intensos deslocamentos de pessoas, da concentração das oportunidades, da constituição de reservas de mão-de-obra sempre empobrecida e disponível, em áreas de economia deprimida e sem nenhum ordenamento urbanístico, em ambientes insalubres e perigosos. Soma-se a isso a extrema vulnerabilidade da população, moradora de baixadas úmidas, encostas de morros, alagados e beiras de rios, suscetíveis às enchentes e aos deslizamentos provocados por chuva intensa ou a escassez de água em situações de seca. Ao mesmo tempo em que produziu cidades ecologicamente insustentáveis, o atual modelo econômico também reproduziu cidades baseadas na especulação imobiliária e na criação de guetos voluntários, verdadeiros feudos contemporâneos, de onde a elite poluidora derrama seus dejetos sobre a parte menos favorecida da população. O caso do Rio Grande do Sul, como vêm afirmando diversos especialistas, evidencia a urgência de repensar as formas de ocupação do solo urbano e de usar o solo rural, a fim de evitar as catástrofes e minimizar os seus impactos.
Justiça interespécies
Diante das cenas trágicas que nos chegam do Sul do país neste momento, precisamos lembrar que o perigo que nos afeta é também o perigo que nos une. Tais cenas, na medida em que vêm despertando comoção e solidariedade de todo o Brasil, também comprovam que todos os tipos de vida importam – o que nos lembra que não podemos continuar destruindo os habitats naturais, terras, rios, ares e mares, nos quais a vida se mantém, sob o risco constante de extinção, agravado pelas práticas danosas da atual civilização tecnológica. Deve-se incluir, por isso, entre as políticas de mitigação do aquecimento global, o debate sobre a justiça multi e interespécies, levando em conta os interesses de todas as espécies vivas, das quais somos codependentes. Animais humanos e não-humanos, e também os vegetais partilhamos uma solidariedade de interesse, entre os quais está a preservação do todo biótico do planeta.
Educação ambiental e climática
É urgente que se invista na educação ambiental e climática da população, promovendo e valorizando iniciativas que contribuam para a compreensão da crise climática e para o enfrentamento de suas consequências. Isso deverá incluir a inserção de disciplinas nos diversos níveis da educação formal e a realização de processos educativos e campanhas que ajudem as pessoas a entender a gravidade da situação, implementar ações práticas no cotidiano e participar da elaboração, acompanhar e cobrar políticas públicas de proteção ambiental, exigindo a inserção desses objetivos nos programas de governo em seus vários níveis. Esse é um desafio ainda maior em ano de eleições municipais, como é o atual.
A tarefa cósmica da Filosofia
Esses desafios são, como se sabe, éticos e políticos e, diante deles, também a Filosofia é convocada àquilo que Hans Jonas chamou de sua “primeira tarefa cósmica”: contribuir para a preservação do frágil equilíbrio sobre o qual se assenta a possibilidade da vida neste planeta e que agora, pelo aquecimento global, encontra-se em risco. Ao evocar o sentido profundo da responsabilidade como alicerce da ética, Hans Jonas ressalta tanto a vulnerabilidade da vida quanto a interdependência do bem humano com o bem de todas as demais criaturas. Isso implica, em nossos dias, combater a atual dieta socioeconômica que produz tais calamidades. Cabe à Ética, enquanto disciplina filosófica, chamar à reflexão crítica visando contribuir para a alteração do estilo de vida baseado na produção e no consumismo promotoras da cultura da gula e do excesso.
Pela gravidade dos fatos que levam à morte e ao sofrimento tantos cidadãos gaúchos e perante a tristeza que nos assola neste momento tão dramático, convocamos toda a comunidade filosófica para atuar energicamente a favor do cuidado com a natureza – tornada sujeito moral - segundo os desafios impostos pela ética da responsabilidade e pelo ideal da justiça climática.
Brasil, 11 de maio de 2024.
GT Hans Jonas da ANPOF
Centro Hans Jonas Brasil