Nota de pesar pelo falecimento de Daniel Clement Dennett
20/04/2024 • Notas e Comunicados
por Leonardo Ferreira Almada, em 20 de abril de 2024
(Instituto de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFU)
No último dia 19 de abril de 2024, faleceu, em Portland (Maine), aos 82 anos, e por conta de complicações decorrentes da doença pulmonar intersticial, Daniel Clement Dennett III, filósofo contemporâneo cuja relevância e influência são difíceis de estimar.
Dennett nasceu em 28 de março de 1942, em Boston, Massachusetts. Filho de Ruth Marjorie e de Daniel Clement Dennett Jr., Dennett mudou-se, ainda na primeira infância, para o Líbano. Consta que seu pai, doutor em Estudos Islâmicos pela Universidade de Harvard, foi enviado ao Líbano para desempenhar funções de contraespionagem pelo Escritório de Serviços Estratégicos dos Estados Unidos da América, desempenhando, para todos os fins, a função de Adido Cultural da Embaixada Americana em Beirute. Sua mãe também possuía um alto grau de educação formal, tendo graduação e mestrado em Inglês pela Universidade de Minnesota. No Líbano, Ruth foi professora de Inglês da Escola Comunitária Americana em Beirute. Após o falecimento do pai de Dennett por acidente aéreo, em 1947, sua mãe o levou de volta para Massachusetts. Foi apresentado à ideia de filosofia ao mesmo tempo em que foi apresentado à ideia de ser um filósofo, em um acampamento de verão, aos 11 anos de idade. Certamente após observar o comportamento e as ideias de Dennett, um dos conselheiros do acampamento o interceptou, dizendo-lhe: “Você sabe o que você é, Daniel? Você é um filósofo”.
As previsões do conselheiro se confirmaram e, em 1963, Dennett recebeu seu bacharelado em Filosofia pela Universidade de Harvard, tendo sido aluno de notáveis filósofos e professores, dentre os quais Willard van Orman Quine. Em 1965, recebeu seu PhD em Filosofia pela Universidade de Oxford, tendo sido aluno de Gilbert Ryle, a quem costuma se atribuir o surgimento formal da filosofia da mente como disciplina. Sua tese, intitulada A mente e o cérebro: descrição introspectiva à luz dos achados neurológicos: intencionalidade, pode ainda hoje ser considerada como um trabalho extremamente arrojado e inédito. O trabalho contribuiu de maneira significa para pensar uma nova maneira de equacionar o clássico e sempre reiterado problema das relações mente-corpo, incorporando, com brilhantismo, dados neurológicos, descrição introspectiva e o conceito fenomenológico de intencionalidade.
Nasceu, nesse momento, uma magistral carreira, repleta de inovações incessantes ao longo de quase 6 décadas.
Desde a defesa de sua tese, em 1965, até 1971, Dennett lecionou na Universidade da Califórnia (Irvine). Em 1971, ingressou na Universidade Tufts, aí permanecendo ao longo de muitas décadas, intercalado com períodos de visita à Universidade de Harvard e várias outras grandes Universidades. Na Universidade de Tufts, participou da fundação, em 1985, do Center for Cognitive Studies, tendo permanecido, ao longo da vida, como um de seus codiretores.
O modo como lidou com os problemas sobre os quais se debruçou deve servir de inspiração para todo o aspirante à posição de filósofo: à maneira de um autodidata, Dennett ultrapassou fronteiras disciplinares, servindo-se frequentemente de todo o conhecimento disponível de que dependia para pensar problemas que, como sabemos, não se restringem a restrições que não as do conhecimento.
Seus esforços e talentos foram amplamente reconhecidos, seja sob a forma de bolsas de pesquisa (recebeu uma bolsa Fulbright, duas bolsas Guggenheim e uma bolsa no Centro de Estudos Avançados em Ciências do Comportamento), convites para participar de Comitês e Academias. Dennett recebeu o convite para integrar o Comitê para a Investigação Cética, o título de Humanista concedido pela Academia Internacional de Humanismo, e o título de Humanista do Ano de 2004 pela American Humanist Association, além do Golden Plate Award, em 2006, oferecido pela American Academy of Achievement.
Além de tantas outras premiações e títulos, Dennett recebeu, em 2012, um prêmio especial (o Prêmio Erasmus) para uma personalidade que tenha contribuído de maneira excepcional para a disseminação do significado cultural da ciência e da tecnologia para um público vasto. Com efeito, a capacidade que Daniel Dennett teve de transmitir complexos conhecimentos científicos para o grande público o imortaliza de maneira particular. A dimensão e significação do seu trabalho de divulgador científico impactou diretamente na maneira como recebi a triste notícia de seu falecimento. Fui informado do falecimento de Daniel Dennett por meio de uma amiga, que me relatou profunda tristeza pela partida de um autor com quem tanto aprendeu, e graças ao qual ela se introduziu nos universos da filosofia da mente e da psicologia da crença. De fato, Dennett traz consigo o mérito de ter sido capaz de empreender, a um só tempo, e em alto nível, a filosofia e a divulgação científica. Intercalando clareza, erudição e profunda agudeza de espírito, Dennett ‘jogou para escanteio’ os conceitos e os textos de uso acessíveis apenas a iniciados, e trouxe, para um nível teórico relativamente compartilhado, os leitores técnicos e o público leigo.
Ao longo de seus mais de 20 livros e centenas de artigos e ensaios, Dennett constituiu modelos e ofereceu contribuições valiosas (e, não raro, polêmicas) sobre um amplo ‘conjunto’ de problemas teóricos em tópicos de mente/consciência, evolução, natureza da inteligência, agência, consciência e cultura, além de ter sido um dos grandes teóricos do ateísmo, do naturalismo darwiniano e do humanismo. Uma das marcas mais características de sua produção está associada à habilidade com que transitou em um solo interdisciplinar em vista da constituição de um pensamento global: trata-se, mais especificamente, da a convicção em relação à articulação de fatos biológicos, psicológicos e sociais.
Daniel Dennett suscita leituras apaixonadas, seja por parte de seus fervorosos defensores seja por aqueles que assumem a dificílima tarefa de reagir a suas polêmicas teses. Sentindo-se sempre muito à vontade no manuseio de informações assimiladas das mais diversas ciências biológicas e cognitivas, Dennett depreende, desse contato, teses como a de que (i) a mente/a consciência são tão naturais quanto qualquer outro fenômeno natural e de que (ii) a evolução das espécies depende de adequadas condições biológicas, químicas e físicas, ou seja, de que mesmo fenômenos grandiosos, como a nossa capacidade de usar a consciência para fazer filosofia, não encontra sua resposta para além do que a seleção natural abarca. É com base nesse manancial de conhecimentos teóricos que advém sua rejeição quanto à tese dos ‘novos misterianistas’, para os quais devemos pressupor uma distinção irredutível entre os qualia da experiência subjetiva de primeira pessoa e o ponto de vista objetivo de terceira pessoa. É com base nesse manancial que advém sua rejeição em relação à própria ideia de problema difícil da consciência, e a simultânea compreensão de que não há relação de irredutibilidade entre propriedades mentais conscientes e cérebro. É também com base nos materiais que assimila das ciências naturais com as quais lida que Dennett oferece uma abordagem ‘computacional’ dos processos de tomada de decisão, buscando jogar, assim, uma ‘pá de cal’ em uma das teses a que costumamos ter mais apego, a saber, a de que somos dotados do amplo e irrestrito poder do livre-arbítrio.
Não apenas por suas ideias, mas também por sua postura, Dennett fará muita falta. Quer concordemos ou não com suas teses, dificilmente nós, profissionais e/ou cultores da filosofia, poderemos discordar de sua compreensão de que, em filosofia, andamos quando sabemos colocar as questões certas.