Filosofia, Humanidades e Ciências da Natureza

Nythamar de Oliveira

05/05/2020 • A BNCC e o futuro da filosofia no Ensino Médio

05 Jun 2018

Em entrevista polêmica à Folha de São Paulo (2 de junho de 2018), o pesquisador português Antonio Coutinho afirmou que a filosofia não é ciência e está fadada a desaparecer.[1] Embora eu mesmo tenda, pessoalmente, a concordar com quase tudo que foi pontuado pelo imunologista em sua fala –sobretudo no que tange à importância da ciência e dos investimentos em pesquisa científica na nossa sociedade hoje—, discordo do seu prognóstico. Com efeito, a filosofia não é ciência, assim como a arte, a religião e a cultura não o são, mas há um sentido de progresso da ciência que se deve, justamente, em grande parte ao trabalho da filosofia e das chamadas ciências humanas. Nesse sentido, a filosofia, assim como toda a grande área das Humanidades, só estará fadada a desaparecer se o próprio ser humano vier a ser erradicado da face da terra.

Ora, desde um ponto de vista histórico, sabemos que a ciência moderna emergiu dentro das Humanidades, fomentada pela crítica sistemática de filósofos renascentistas a modelos dogmáticos e obsoletos da Escolástica. Houve um grande progresso, desde o período romano até o final do Medievo, na concepção e evolução das sete artes liberais, agrupadas em trivium (gramática, retórica e lógica) e quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música), que balizaram e consolidaram a universidade em função das Humanidades. Com a emergência da ciência moderna, a própria filosofia abdicou de seu suspeito papel de "rainha das ciências" para assumir, paulatinamente, uma reivindicação de razão mais modesta de interlocutora das ciências empíricas, ou como sugeriu Habermas, de "guardadora de lugar e intérprete", buscando compreender o mundo circundante e traduzindo-o da forma mais adequada a seus fins civilizatórios.[2] Como observara Foucault, foi precisamente pelo nascimento de uma moderna concepção do humanum, que tal saber tornou possível a emergência das ciências empíricas (biologia, economia, filologia) no século XIX e, subseqüentemente, das ciências humanas (psicologia, sociologia, antropologia).[3] Ao tematizar a "natureza humana" enquanto sujeito e objeto do conhecimento, autores modernos como Kant distinguiram o caráter empírico dessa natureza humana de sua finalidade racional, o animal rationabile do animal rationale, aquilo que o ser humano é (enquanto ser dotado de razão) daquilo que deve ser (um ser racional e razoável, isto é, que deve agir livremente segundo a razão).

Assim, podemos repensar o futuro das Humanidades pela reformulação da questão filosófica com o problema do conhecimento humano como um todo. Embora haja uma tendência, desde os chamados pré-socráticos até os nossos dias, a aproximar a filosofia da arte, da ciência ou da religião, a filosofia não se deixa reduzir a nenhuma delas, mesmo que tenha sempre influenciado e sido influenciada diversamente por todas elas. Etimologicamente, como é bem conhecido de todos, a palavra "filosofia" (do grego philo + sophia) significa "amor à sabedoria" ou "amizade ao saber", na medida em que os primeiros filósofos gregos buscavam conhecer cada vez melhor a si mesmos e o mundo que os cercava. Assim, a filosofia se apresenta como um questionamento radical acerca da realidade última das coisas: o ser, os entes, a verdade, o bem, o belo, o eterno. Por isso mesmo, historicamente, as primeiras investigações filosóficas se confundiam com os primeiros questionamentos sobre a natureza (physis) do universo: a terra, a água, os céus, os corpos celestes, o fogo, o repouso, o movimento, as mudanças de estações e a repetição de fenômenos (como os eclipses, as estações etc). Até a emergência da ciência moderna com Copérnico, Galileu e Newton nos séculos XVI e XVII, a filosofia da natureza se ocupava do mesmo objeto de investigação da própria ciência da época. Por outro lado, desde Homero, os poetas trágicos e líricos, havia nas teogonias e cosmogonias um forte elemento mítico-religioso que seria pouco a pouco desconstruído pela filosofia, mesmo quando mantinha uma identificação mais próxima à arte e à literatura. A problemática relação entre arte e ciência só pode, aliás, ser compreendida à luz das transformações filosóficas dos termos techne (arte) e episteme (ciência), sobretudo a partir de Platão e Aristóteles. Grosso modo, podemos dividir os grandes domínios e objetos de estudo da filosofia em cinco subáreas distintas:

(1) Metafísica, Ontologia

(2) Lógica, Epistemologia, Filosofia da Mente e Linguagem, Filosofia da Ciência

(3) Ética e Filosofia Política

(4) Estética

(5) Filosofia da Religião

(1) A metafísica trata do "ser enquanto ser", isto é, de investigar o que é, o que há, o que existe, a realidade, o que é possível e necessário, e de elucidar a questão fundamental do ser. De uma maneira mais abrangente, a metafísica pode ser tomada num sentido geral (ontologia) que trata da questão do ser dos entes (em grego, onta) ou num sentido especial, tratando especificamente de Deus (teologia filosófica), da alma humana (psicologia filosófica e antropologia filosófica) e do mundo (cosmologia filosófica).

(2) A lógica diz respeito às regras de inferência (esp. dedução e indução) do pensamento analítico, diferenciando inferências  válidas (silogismos) e inválidas (falácias ou sofismas). A epistemologia é a teoria do conhecimento, isto é, a parte da filosofia que procura justificar racionalmente crenças verdadeiras – a despeito de Gettier e epistemólogos que demonstraram a incompletude da concepção tripartida do conhecimento como crença verdadeira justificada (knowledge as justified true belief). A filosofia da linguagem cuida de questões sobre o significado e a verdade de proposições lingüísticas, geralmente associada a problemas de filosofia da mente, tais como estados mentais e atitudes proposionais em abordagens que colocam em xeque o dualismo e concepções que não se alinham com o naturalismo e o materialismo empiricamente informados. A filosofia da ciência examina a fundamentação e a justificativa das ciências e seus respectivos métodos de investigação. Assim, a filosofia da neurociência e a neurofilosofia se tornaram, no início do século XXI, particularmente paradigmáticas para a concepção da filosofia da ciência em seus programas de pesquisa interdisciplinar.  

(3) A ética é o estudo filosófico da ação moral e trata de questões sobre a conduta humana, a sua normatividade, concepções de bem, virtudes, utilidade, dever e implicações práticas. A filosofia política tenta fundamentar a sociabilidade humana enquanto seres que vivem racionalmente em sociedade, assim como busca justificar a melhor forma de constituição política ou o melhor regime de governo, enfocando instituições (família, sociedade, estado, em contraposição a organizações), problemas de indivíduo e sociedade. A filosofia do direito procura justificar a normatividade das codificações jurídicas, o que é direito e o que são direitos, uma teoria crítica do direito e da democracia constitucional, uma teoria da justiça, uma teoria do Estado e teorias afins (constituição, democracia, direitos humanos, políticas públicas), muitas vezes a ponto de se confundir com a filosofia política.

(4) A estética (do grego aisthesis, sentidos) trata da arte, do belo, do sublime e de todas as formas de expressão artística (literatura, música, teatro, pintura, escultura, cinema etc) em sua fundamentação filosófica: o que é, afinal, uma obra de arte? Será que toda filosofia –na medida em que lida com textos, obras, autores e com a escrita—não poderia ser nivelada com a própria literatura? Há uma tendência entre autores pós-modernos, pós-estruturalistas e muitos filósofos continentais a responder afirmativamente a tal pergunta, o que poderia justificar um certo desprezo, nesses pensadores, por questões científicas, rigorosas e objetivas.

(5) A filosofia da religião trata do divino, do sagrado, da divindade e de suas manifestações através da religião. Os problemas da fé, do misticismo, do absoluto, da alteridade absoluta, da imortalidade da alma e da morte são geralmente tematizados nesse campo de pesquisas filosóficas, sem necessariamente pressupor quaisquer interesses confessionais ou religiosos.

Outrossim, a filosofia tem sido, por mais de dois milênios, a mais abrangente e inovadora de todas as empreitadas de pesquisa interdisciplinar com as mais variadas artes, ciências e tradições religiosas. É neste sentido preciso que sua tarefa deve consistir hoje, mais do que nunca, em fomentar as interfaces transdisciplinares e multidisciplinares das diferentes ciências, subáreas e programas de pesquisa da grande área das Humanas. Mais recentemente, desde a segunda metade do século passado, assistimos a profícuas empreitadas interdisciplinares que resultaram na criação e implementação de programas de pesquisa em Bioética, Ética Aplicada, Direitos Humanos, Sustentabilidade, Neuroética e Ciências Cognitivas.

Talvez o maior erro que encontramos na atitude antifilosófica ou anti-humanista de alguns cientistas seja o de confundir os métodos e as categorias empregados em diferentes áreas do saber. Nessa mesma linha de combate da querela de métodos (Methodenstreit) opõe-se, por um lado, o positivismo das ciências exatas ou da natureza (Naturwissenschaften) ao historicismo, por outro lado, das ciências humanas ou do espírito (Geisteswissenschaften). Mas essa é uma falsa dicotomia, na medida em que podemos evitar os excessos metodológicos de ambas posições extremas. De resto, tanto o positivismo quanto o historicismo se tornaram posturas reducionistas pouco defensáveis em círculos acadêmicos. Sem esquecer, em última análise, que alguns dos mais atrozes crimes contra a humanidade foram perpetrados por cientistas.

  

[1] <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/06/filosofia-nao-e-ciencia-e-esta-fadada-a-desaparecer-afirma-pesquisador.shtml

[2] FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas.  São Paulo: Martins Fontes, 1992

[3] HABERMAS, Jürgen. A Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete. In: Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.